O grito das mulheres

06 de novembro, 2015

(Istoé, 06/11/2015) A voz feminina se impõe nas ruas e nas redes sociais e se torna protagonista na luta pelos direitos civis, pelo fim do assédio, da intolerância e até pela cassação do deputado Eduardo Cunha

As frases da página anterior foram entoadas em gritos menos graves do que os ouvidos em outras manifestações. Dessa vez, a imensa maioria das pessoas que caminhou pela Avenida Paulista até a Praça da Sé, no centro de São Paulo, na sexta-feira 30, era de mulheres. Foi um movimento político, dirigido ao presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e seu infame projeto de lei que limita o acesso da mulher estuprada ao aborto – hoje garantido por lei – e a obriga a passar por uma delegacia. Mas o ato, que também aconteceu em outros estados do País e teve manifestantes de todas as idades, contemplava mais. Elas falaram sobre assédio sexual, racismo, intolerância, machismo. E partilharam tudo nas redes sociais, um palanque tão importante atualmente quanto a praça pública. Na mesma semana, a atriz Taís Araújo deu uma demonstração de coragem ao denunciar as ofensas raciais sofridas na rede. “Há uma confluência de fatores que está fazendo o grito das mulheres emergir da maneira como estamos vendo”, afirma a historiadora Margareth Rago, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em história do feminismo. “Vivemos um momento de crise política e um avanço do conservadorismo, notamos um retrocesso de valores e muita intolerância, que estão mexendo em conquistas que estavam garantidas, como é o caso do PL do Cunha. Para reagir, elas estão se organizando para ter mais visibilidade.” Elas estão dizendo não.

Leia mais:
Mulheres compartilham o que pensam sobre violência, aborto e conservadorismo na política (O Globo, 07/11/2015)
A nova onda do feminismo digital (Terra, 06/11/2015)

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“Há uma nova geração de mulheres lutando não somente para ampliar direitos, mas para garantir o legado dos movimentos feministas”, diz Clara Araújo, vice-coordenadora do núcleo de estudos sobre desigualdade e relações de gênero da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). As manifestações coletivas acontecem em convergência com uma nova postura individual, à medida que mais mulheres tomam conhecimento de seus direitos e se sentem seguras para reclamar. Nesse sentido, as redes sociais possibilitaram a construção de um novo diálogo e tem um papel fund≠≠amental nessa nova postura feminina. “Elas são um elemento de mobilização que estimula as mulheres, pois permite a troca de ideias e opiniões”, diz Clara, da UERJ. A organização em rede favorece a integração e viabiliza outras formas de participação. “A internet possibilita um conhecimento muito mais amplo sobre o que está acontecendo.” A pesquisadora explica ainda que, no Brasil, o índice de associativismo é considerado baixo, apesar de estar aumentando, inclusive entre mulheres, e as redes sociais conseguem alterar esse cenário. Outro aspecto importante é que elas podem observar nitidamente as desigualdades do cotidiano no relato de colegas e potencializar o discurso – o que explica o êxito da campanha #primeiroassedio, em que relataram na internet a primeira vez em que sofreram abuso. Nas redes sociais há uma infinidade de páginas feministas, perfis pessoais que falam das relações de poder entre os gêneros e grupos privados de ajuda entre mulheres e meninas que pedem conselhos em casos de violência e estupro. A própria manifestação citada no começo desta reportagem foi organizada pelo Facebook.

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Manifestações de mulheres contra o deputado Eduardo Cunha e seu projeto de lei que dificulta o aborto aconteceram em diferentes cidades brasileiras entre os dias 28 de outubro e 3 de novembro (Foto: Reprodução)

Com tanta informação tão fácil de ser encontrada, não é de se espantar que as garotas tenham contato com a pauta das lutas femininas cada vez mais cedo. A militância é tanta que há coletivos feministas, grupos típicos de universidades, já nas escolas. E o protaganismo jovem rende frutos concretos: na terça-feira 3 foi lançado o aplicativo para celular Sai Pra Lá, criado pela estudante Catharina Doria, 17 anos, e que permite registrar os assédios sofridos diariamente. A estudante Victoria Lima Dorta, 16 anos, conheceu o feminismo no ano passado por páginas no Facebook e diz ter se identificado com o movimento porque começou a observar que sofria com as mesmas situações que os textos on-line mostravam. “Abriu os meus olhos para o quanto a sociedade trata as mulheres como objetos dos homens, como não temos direito nem sobre nossos corpos e como a desigualdade de gênero é gritante”, diz. “Também me ajudou a entender um pouco melhor outros tipos de opressão como racismo, homofobia e transfobia.”

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As mulheres negras, que historicamente são alvo de racismo e discriminação, têm seu próprio protagonismo na luta por direitos. Prova que as batalhas dessa parcela da população ocorrem todos os dias são as recentes injúrias raciais sofridas pela atriz Taís Araújo nas redes sociais. Na internet, foi ofendida com comentários preconceituosos desde o sábado 31. Ela se manifestou publicamente e o caso foi investigado pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio de Janeiro. Em julho deste ano, a jornalista Maria Júlia Coutinho também foi alvo de internautas racistas. “A luta das mulheres negras vem desde o período da escravidão, quando, mesmo sob muito sofrimento, elas conseguiram chegar a determinados espaços”, diz Maria das Dores do Rosário Almeida, integrante da Articulação de Mulheres Negras do Brasil. Hoje, elas aceitam o corpo, o cabelo, as características físicas de uma forma muito melhor.” Segundo Maria das Dores, apesar de ainda existir uma grande invisibilidade em diversos aspectos, as redes sociais ajudam a revelar o racismo diário. “Taís foi atrás de seu direito e denunciou. Em geral, muitas ainda ficam no anonimato por falta de informação e por medo.” Mas, segundo a militante, nos últimos dez anos aumentou 50% o número de mulheres que se sentem estimuladas a denunciar. “Há um ranço da escravidão que as redes sociais tem nos ajudado a derrubar.”

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Contemplar problemas que dizem respeito a diferentes grupos sociais é um dos pontos mais importantes do feminismo atualmente. A luta pelo fim de qualquer manifestação de intolerância vem de um esforço em acabar com pensamentos binários. Mulheres que exigem ser ouvidas não aceitam uma divisão da sociedade baseada em gêneros, entre homem e mulher, sendo um mais forte do que o outro. “É um pensamento autoritário”, afirma Margareth Rago, da Universidade de Campinas (Unicamp). Mas é principalmente pela crítica ao padrão da dominância masculina que alguns homens têm posturas reativas. Na semana passada, páginas no Facebook que falam sobre direitos e lutas das mulheres foram derrubadas. Entre elas a da YouTuber Jout Jout, que recentemente gravou um vídeo orientando as garotas a fazerem um escândalo sempre que assediadas. Além disso, feministas que se expressam publicamente têm sofrido ameaças e ofensas. Parece ser uma reação à emergência de discussões nas redes sociais, movida também pelo tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), sobre a persistência da violência contra a mulher, em 25 de outubro. “Há, sim, uma reação, por verem esse avanço das discussões como uma ameaça à posição privilegiada que ocupam socialmente”, afirma a socióloga Tica Moreno, da Sempreviva Organização Feminista.

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No cenário político, essa reação surgiu em forma de projeto de lei. No dia 21 de outubro, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados o PL 5069/2013, de autoria do presidente da casa, Eduardo Cunha, que dificulta o caminho da vítima de violência sexual que procura o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). “É a normatização do tratamento desumanizado e discriminatório contra a mulher”, diz Silvia Chakian de Toledo Santos, coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo. O projeto, explica, exige que a mulher faça exame de corpo de delito para que seja comprovado que ela foi vítima de violência sexual e, com isso, tenha acesso ao medicamento. “Quem trabalha na área sabe que nem todas as violências deixam vestígios que possam ser comprovados com laudos”, diz Silvia. Além disso, o documento cria uma condicionante pela qual, para ter acesso ao sistema de saúde, a mulher deve acionar o sistema da Justiça Criminal antes. “É inaceitável já que nem toda mulher suporta a dor de denunciar seu agressor. Muitos abusos ocorrem dentro de casa e o ônus do processo criminal seria um fardo.” O projeto criminaliza ainda a conduta de agentes que, eventualmente, forneçam qualquer orientação à vítima que de alguma forma a induza ao aborto. O PL segue agora para votação no Plenário da Câmara, mas não sem protestos.

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Com manifestações nas ruas, nas redes sociais e com uma mudança de postura nas situações cotidianas, não há mais como calar a luta feminina. Se depender delas, o PL de Eduardo Cunha não passa, muito menos ele continua no cargo que ocupa atualmente. Outras manifestações já estão agendadas pela derrubada do projeto. “O desafio agora é que outros movimentos sociais possam incorporar em suas agendas as discussões do universo feminino: questões ligadas ao controle do corpo e da sexualidade da mulher”, afirma a socióloga Tica Moreno. “A história mostra que as mulheres estão sempre à frente da resistência no conservadorismo. É um movimento que precisa ser reconhecido.” E, ao que parece, se surgirem outros empecilhos para se alcançar a tolerância e a igualdade de direitos, elas vão gritar, mais uma vez.

Fotos: Keiny Andrade/Folhapress; Leo Coelho/FramePhoto/Folhapress; PEDRO ANTONIO HEINRICH/AG. FREE LANCER/ESTADÃO CONTEÚDO; Veetmano Prem/Fotoarena/Ag. O Globo, Rafael Hupsel;  

Camila Brandalise e Fabiola Perez

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