Projeto reúne testemunhos de africanos escravizados

09 de janeiro, 2016

(O Globo, 09/01/2016) Gracia Maria da Conceição Magalhães nasceu e morreu livre no século XVIII. A história que ata as duas pontas de sua vida, contudo, é de aprisionamento e servidão. Antes de acumular uma considerável fortuna catalogada em testamento, Gracia deixou forçosamente a Guiné, região africana onde nascera, para se tornar escrava no Brasil.

Leia também: Um relato da escravidão, em primeira pessoa (CartaCapital, 09/01/2016)

Nas entrelinhas do documento em que define com minúcia o destino de seus bens — do qual faziam parte uma casa de farinha, uma espingarda, ferramentas e, ironicamente, dois escravos —, o professor Nielson Bezerra, da Uerj, deu início à reconstrução de sua história. Concluiu que Gracia conseguiu comprar, com o seu trabalho, não apenas a própria alforria, mas também a de Manoel Gomes Torres, sob uma condição: a de que ele se tornasse seu marido e vivesse com ela. Moraram na Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu (hoje Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense).

A história inédita de Gracia da Guiné integra as quase quatro centenas de testemunhos que, em fevereiro, se somarão aos cem já disponíveis na página virtual do projeto Shadd, batizado em homenagem à abolicionista Mary Ann Shadd. A iniciativa é uma coleção de histórias de indivíduos arrancados do Oeste da África e transportados para Europa e Américas para serem escravizados entre os séculos XVI e XIX. Parte significativa delas é narrada em primeira pessoa. As fontes incluem autobiografias, registros judiciais e outros documentos, explica o editor Paul Lovejoy, professor da Universidade de York, no Canadá.

— Essas histórias nos permitem entender as vidas de indivíduos. Não como escravos, mas como pessoas. O material biográfico nos permite ouvir as “vozes” de pessoas que experimentaram a escravidão. Uma vez que o foco é a África Ocidental, a maioria das pessoas nasceu livre e sofreu a escravidão num ponto de suas vidas, mas, em muitos casos, se tornou livre — detalha Lovejoy.

Foi assim com Osifekunde, nascido por volta de 1795 em Ijebu-Ode, onde hoje está a Nigéria. Capturado em seu país, ele também foi trazido ao Rio de Janeiro, mas, depois de duas décadas no Brasil, mudou-se para a Europa, acompanhando o seu senhor, um homem francês. Lá, onde já não havia mais escravidão, conseguiu a liberdade e conheceu o etnógrafo Pascal d’Avezac-Macaya, a quem relatou práticas culturais iorubás. Autor de livro sobre o assunto publicado em 1845, o cientista conseguiu uma passagem para que o africano fosse a Serra Leoa, mas Osifekunde declinou. No país onde abandonara a vida de escravo, tinha deixado também a família.

— A história de Osifekunde é particularmente interessante por percebemos as aspirações de uma pessoa em todas as suas contradições. Tendo a condição de livre, seu amor por seu filho era maior do que o amor por sua própria liberdade na França. Isso o faz vir ao Brasil mesmo com o perigo de voltar a ser escravo — conta Bruno Véras, historiador pernambucano orientado por Lovejoy em sua tese de doutorado no Canadá.

O trabalho de Véras debruça-se sobre Mahommah Gardo Baquaqua, autor da única autobiografia escrita por um ex-escravo africano que viveu no Brasil. Nascido na África Ocidental e enviado ao Brasil após ser escravizado, ele terá a sua obra “Uma interessante narrativa” publicada com cartas inéditas em português ainda neste ano, pela Civilização Brasileira. Véras e Bezerra são responsáveis pela tradução, do inglês. O personagem é também tema de um recém-lançado site exclusivamente sobre a sua trajetória, assim como Gustavus Vassa, um liberto cuja biografia teria influenciado o movimento abolicionista na Inglaterra.

— A história dos africanos é, ainda hoje, cercada de muita mitificação e estereótipos negativos. Muitos dos que foram trazidos ao Brasil e às Américas no contexto da escravidão eram letrados em árabe e ajami — diz Véras, que busca patrocínio para exposição sobre essas histórias. — Antes de serem escravos, eram pessoas e assim se pensavam. Antes de serem braços, eram ideias, visões de mundo e espírito. Biografias nos permitem enxergar isso.

“NOVAS PERSPECTIVAS”

Uma das histórias a que se refere foi escrita por Mohammed Ali Sa’id. Seu livro, publicado em 1873, narra a infância em Borno, a captura na adolescência e a vida após a escravização. “Minha motivação nesta publicação que acredito ser boa: um desejo de mostrar ao mundo as possibilidades que podem ser realizadas pelo africano, e, na esperança de que meu humilde exemplo possa estimular alguém, pelo menos do meu povo, aos esforços sistemáticos no sentido da cultura intelectual e melhoria”, diz, na introdução. Sa’id passou por Rússia, Oriente Médio, Europa Oriental e América do Norte, onde se tornou professor de inglês, nos EUA. Falava 11 idiomas.

Centenas de novos relatos podem ainda ser achados em arquivos ao redor do mundo. Mais de 12 milhões deixaram a África em direção às Américas no período do tráfico atlântico.

— Muito do trabalho sobre a diáspora africana se baseia em trabalhos estatísticos ou a partir de múltiplas experiências individuais. Não há nada de errado com isso, mas um dos nossos objetivos é conscientizar as pessoas de que é possível contar a diáspora africana usando experiências concretas, e que a abordagem biográfica pode levar a novas perspectivas — afirma Sean Kelley, professor da Universidade de Essex, no Reino Unido, e integrante do Shadd.

Dandara Tinoco

Acesse em pdf: Projeto reúne testemunhos de africanos escravizados (O Globo, 09/01/2016)

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas