Cuidados domésticos ainda atrapalham carreira acadêmica das mulheres, diz cientista Tatiana Roque

07 de janeiro, 2016

(Portal de Periódicos, 07/01/2016) Mulher, ciência, matemática, filosofia, política: estes são os elementos que “dão samba” na história da professora Tatiana Roque, do Instituto de Matemática da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ela é uma das editoras da revista DR (sigla para a expressão “discutir a relação”), espaço online que criou com um grupo de mulheres para debater política e cultura, problematizando também questões do universo acadêmico-científico. No final de 2015, a convite do professor Márcio Tavares D’Amaral, Tatiana escreveu o artigo “As mulheres e a objetividade”, em que aborda o modelo vigente – calcado em habilidades tidas como masculinas (“foco, concentração, distanciamento, precisão, enrijecimento do corpo, dureza frente à aridez e à solidão do trabalho intelectual”) – e questiona: “Por que até hoje os homens ocupam posições de destaque e poder nos meios científicos, especialmente nas ciências ditas duras?”.

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Tatiana Roque, autora do artigo “As mulheres e a objetividade” (Foto: Aline Macedo)

Nesta entrevista, ela conta sobre sua formação, trajetória profissional e interesse nas questões de gênero associadas à ciência. Graduada em Informática, com mestrado em Matemática Aplicada, notou que não seguiria pela matemática pura ao escrever sua dissertação. “Era áspero, exigia uma dedicação que atrapalhava outras faces da vida que sempre me foram muito caras, como o samba e a política”, diz Tatiana. Assessorando o então vereador Augusto Boal (fundador do Teatro do Oprimido) e estudando com o filósofo Claudio Ulpiano, ela mergulhou no pensamento de Foucault, Deleuze, Guattari, Stengers e pensou em abandonar a matemática. “Mas a filosofia do e é mais interessante do que a do ou”, ponderou Ulpiano.

Tatiana passou para o concurso para professora da UFRJ e fez doutorado em História e Filosofia da Ciência, completando sua formação no centro de estudos Sphere, na França, dedicando-se em especial à abordagem qualitativa e à história e filosofia da teoria dos sistemas dinâmicos. De volta ao Brasil, criou uma pós-graduação, escreveu um livro sobre História da Matemática, e dirigiu seu olhar crítico para questões relacionadas a grupos minoritários. Ela acredita que práticas históricas permeiam o modo de fazer ciência e que, diante de desafios atuais como a sustentabilidade e a justiça social, a universidade tem o papel e a oportunidade para inventar novos parâmetros. Leia a entrevista completa:

Portal de Periódicos: Conte-nos sobre seu interesse em debater a relação entre o modelo científico e questões de gênero.
Tatiana Roque: Antes do doutorado, eu já tinha passado no concurso para professora do Instituto de Matemática da UFRJ, onde havia um grupo forte de ensino de matemática, fundado pela Maria Laura Leite Lopes, com interesse pela história da matemática. Na volta da França, continuei dando aulas no Fundão e criamos, eu e colegas com que trabalho até hoje, uma pós-graduação em Ensino de Matemática, que agora tem um curso de doutorado em Ensino e História da Matemática e da Física. A ausência de material adequado para ensinar história da matemática, que não reproduzisse narrativas triunfantes sobre o desenvolvimento da tal rainha das ciências, acabou me levando a redigir notas de aula, para sintetizar e comentar novas leituras feitas pela comunidade internacional de pesquisadoras e pesquisadores em história da matemática. Esses textos, aos poucos, foram transformados em livro: História da Matemática, uma visão crítica desfazendo mitos e lendas (Zahar, 2012; 512 páginas – R$ 74,90).
Até aí, nada de gênero… Nem nas reescrituras da história, digo, no objeto. Os novos olhares para as práticas matemáticas do passado explicitaram enormes injustiças, principalmente com os árabes. Quanto às mulheres, não me convencem muito tentativas de pinçar um exemplo ou outro, mais ou menos falsificado. Melhor assumir que, pelo menos até o século 19, participamos pouco, ou somente como coadjuvantes, do glorioso caminho da ciência. Por quê?

No artigo “As mulheres e a objetividade”, você trata de um modelo de ciência que se constituiu como masculino. Em que medida, atributos associados ao feminino podem contribuir para a construção de novos parâmetros de pensamento?
Ao ler o artigo, alguém perguntou se estou dizendo que as mulheres não são objetivas. Claro que não disse isso! Interessante como essa pergunta denuncia uma preocupação: há uma crença na objetividade como virtude e seu valor no fazer científico. A objetividade é tomada como um conceito atemporal e uma habilidade imprescindível para a prática científica. Mostrar que a objetividade tem uma história, bem delimitada no tempo, intimamente relacionada a determinados valores epistêmicos, implica vê-la de outra forma. Não se trata de dizer que a ciência deva ser subjetiva, o que seria bobagem. Mas notar como um certo modo de fazer ciência – que se afirmou durante o século 19, com implicações na afirmação de uma perspectiva sobre sua intervenção na sociedade – trouxe a clivagem entre objetividade e subjetividade.

[Lorraine] Daston e [Peter] Galison mostram, de modo surpreendente, que a objetividade implica unificar diferentes valores epistêmicos que operam, ao mesmo tempo, um recalque da subjetividade – tida como vontade livre, tentação do sujeito a se projetar para fora de si. Era preciso que a subjetividade se constituísse como algo privado, de foro íntimo, ao passo que a objetividade se afirmava como habilidade para decifrar o mundo e seu funcionamento. Os homens de ciência passaram a se ver como obstáculo ao saber científico. O livro Objectivity [de Daston e Galison, sem tradução no Brasil] não aborda diretamente a questão das mulheres na ciência, apenas em algumas passagens:
“no ethos da objetividade mecânica é difícil não perceber o incentivo ao trabalho duro ou os tons masculinos das expressões ‘desvendar a natureza’ ou ‘homens de ciência’, que era sinônimo de cientistas (p.202)”

Acho interessante sublinhar virtudes epistêmicas específicas que estão em jogo na oposição privado/público, correlata da clivagem subjetividade/objetividade. É impossível não perceber o paralelismo com o confinamento das mulheres à vida privada, já não tão ‘natural’ a partir do século 19, como Virginia Wolf descreve de modo avassalador em Three Guineas. Em 1938, pediram que ela assinasse um manifesto contra a guerra, que trazia argumentos em favor da cultura e da liberdade intelectual. Mas que ideia era essa de cultura e liberdade intelectual construída com o sacrifício das mulheres? Na Inglaterra, havia um fundo financeiro para ajudar os filhos dos chamados “homens cultos” a frequentarem a universidade. Sem poder investir com dinheiro, as mulheres tinham que contribuir com trabalho para que seus irmãos homens fossem à universidade. “Tudo de grande que havia na Inglaterra tinha sido construído para os homens. As mulheres tinham passado suas camisas, preparado suas refeições e costurado em seu canto para tornar tudo aquilo possível. Por isso, o que parecia impressionante e grandioso, era, ao mesmo tempo, estrangeiro e doloroso”. Virginia era educada em casa, confinada à vida privada. Por que agora, já uma escritora conhecida, iria “cerrar fileira com os homens cultos”? Ela se recusa a assinar a carta.

Qual o maior obstáculo para as mulheres avançarem na carreira acadêmica e que tipo de preconceito elas enfrentam? Você teve ou ainda tem dificuldades no meio de pesquisa e ciências, considerando sua atuação em matemática? Quais foram as maiores?
O caminho entra a vida privada e a vida pública ainda é um problema para as mulheres. Na universidade, a maioria de nós é de classe média e temos alguma infraestrutura para nossos filhos e filhas. Mas as tarefas caseiras, os cuidados e as preocupações com os filhos pesam, ainda hoje, diferentemente sobre homens e mulheres – principalmente as separadas. Quando esse obstáculo se atenua é porque outras mulheres, mais pobres e negras, estão trabalhando em nossas casas. O trabalho doméstico ainda é um entrave à libertação das mulheres.

Há obstáculos mais sutis e difíceis de notar. Entendi muito cedo que, para me sair bem no meio intelectual, tinha que ser um pouco macho: ter sempre uma resposta, não titubear, ser afirmativa, fazer valer minhas opiniões com base em argumentos, mostrar capacidade, precisão e inteligência. Na campanha #meuprimeiroassedio, fiquei pensando por que não sofri assedio. Acho que nunca fui vista como uma mulher normal. De certo modo, sempre escondi minha sensualidade, nunca demonstrei fragilidade. E confesso que isso não é bom, é apenas a outra face do machismo.

As habilidades que citei não são masculinas por si só. Mas há muito tempo têm sido exercidas e valorizadas por homens nos espaços de poder que ocupam. Há modos de falar e de se comportar nesses lugares que não são suportados facilmente pelas mulheres. Que mulher já não se sentiu desconfortável num meio em que além da maioria de homens, impera um jeito de falar como tal, um código implícito, um ritual a ser seguido? O tom sempre razoável, o discurso embasado, a argumentação erudita – valores tidos por universais, mas que foram universalmente impostos por homens. Não que eles sejam mais racionais e as mulheres mais afetivas: essa divisão não nos serve, não é espontaneidade que queremos. Queremos lembrar que há uma história, mesmo para habilidades e valores mais consolidados como a racionalidade.

Nos ritos universitários está presente a memória de um espaço construído por e para homens, durante muitos séculos. Pontuar esses ritos já implica romper com a naturalização de determinadas relações com o saber e com o conhecimento. A minguada participação das mulheres nos cursos de Exatas tem a ver com esse processo. Há muitas mulheres fazendo ciência, mas elas ainda não ocupam os mesmos lugares que os homens, que continuam tendo muito mais visibilidade. É impressionante a enorme proporção de homens em lugares de poder na academia, sempre auxiliados por suas eficientíssimas secretárias.

Nome conhecido da ciência contemporânea, Neil DeGrasse Tyson, quando indagado sobre o baixo índice de mulheres na ciência dá uma resposta fantástica. Ele aponta uma similaridade na falta de oportunidades para mulheres e negros. Desde os 9 anos, Tyson queria ser astrofísico e se assustava com as reações ao seu desejo. “Não pensou em ser atleta?”, diziam. Ele queria ser algo fora das expectativas do mundo em relação aos negros. Aconteceu, e ainda acontece, algo parecido em relação às mulheres. Oportunidades iguais não são oportunidades formalmente iguais. Eis a questão – transformar oportunidades formalmente iguais em oportunidade realmente iguais. “Porque é 2015!”. (Com essa frase, o primeiro ministro canadense Justin Trudeau, recém-empossado, justificou o equilíbrio entre o número de homens e mulheres em seu gabinete).

A persistência da violência contra a mulher foi tema da redação do Enem (Exame Nacional de Ensino Médio 2015). Os candidatos também refletiram sobre uma frase da filósofa Simone de Beauvoir. A prova motivou debates, defesas e ataques, mas com pouca fundamentação acadêmica. Como você avalia esta escolha dos organizadores do Enem? E que efeitos pode produzir no espaço acadêmico?

Excelente, parabéns para o Enem. Muito bom introduzir na formação dessas e desses jovens a reflexão de Simone de Beauvoir e o debate sobre feminismo. Contudo, tenho uma crítica à pergunta. Após o trecho famoso de Beauvoir, era preciso marcar a resposta certa. Na década de 1960, a proposição citada contribuiu para estruturar um movimento social que teve como marca a “organização de protestos públicos para garantir igualdade de gênero”. Havia outras opções: estabelecimento de políticas governamentais para promover ações afirmativas, ação do poder judiciário para criminalizar a violência sexual. Ainda não entendi porque as outras respostas não estão certas também.

Você faz parte de um coletivo de mulheres, professoras e pesquisadoras que lançou, recentemente, a revista DR (“discutir a relação”). Conte sobre o perfil da publicação e que relações desejam discutir com a iniciativa?

Participei, com amigas, de inúmeras discussões políticas e tentativas de organização que surgiram depois de junho de 2013. Nesse cenário de brigas e disputas, experimentamos dificuldades associadas à posição das mulheres. Nós, que nunca tínhamos sido feministas, tivemos então a ideia de fazer uma revista só com mulheres, pois começamos a achar difícil discutir política com homens. Havia grupos constituídos em torno de grandes figuras (homens) e, nas discussões, eles pareciam dar lição o tempo todo… Se queríamos colocar um ponto na pauta, não prestavam atenção.

Percebemos que, num debate, para ter efeito político, é preciso explicar, dar “argumentos”, mobilizar “a história” ou “a teoria”. Criamos um espaço para um modo de dizer que recuse a autoridade e a expertise ainda exercidas, majoritariamente, por homens. Estamos cada vez mais convencidas de que não basta que um discurso político seja justo para produzir engajamento. Há um trabalho a ser feito sobre o tom, sobre os modos de dizer. Será que a necessidade de prestar atenção ao “modo de dizer” em um discurso político é coisa de mulher? Como conseguir o reconhecimento de que essa é uma questão plenamente política?

Essas questões parecem estar ligadas a uma longa tradição em que a discussão política era uma atividade reservada aos homens. Resolvemos, então, fazer uma DR e afirmar o sentido político de novas práticas. Fazer DR é se importar com o efeito de nossas falas, sabendo que é sempre possível retornar sobre as palavras, reconhecer seus equívocos, prestando atenção ao modo como o que dizemos afeta a interlocutora. Fazer DR é apostar que a relação é o que importa. Um cuidado, uma atenção às conexões.

Encontramos outras mulheres com questões parecidas, como Vinciane Despret e Isabelle Stengers, que entrevistamos para o primeiro número da DR. Elas têm um livro fabuloso sobre mulheres na academia: Les faiseuses d’histoires – que font les femmes à la pensée? “Faire des histoires” [sem edição em português] é algo como criar caso, dar chilique, criar uma situação. Se uma mulher reclama muito, ouve frequentemente: arrête de faire des histoires! (não inventa moda, não cria caso!).

Vinciane e Isabelle dizem que os ‘homens civilizados’ se expressam por meio de uma racionalidade sobre a qual, invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é racionalizado. Mesmo na Europa, onde se supõe que ninguém use argumentos claramente machistas, as pessoas devem se submeter a discursos sobre um estilo. Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há enunciados como “as mulheres são mais sensíveis”, o que é muito perigoso, pois se se faz disso uma psicologia, vira uma maneira de se desvalorizar e de dar razão aos que detém a racionalidade. Então, como se apropriar de um discurso afetivo para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, mas um discurso tout court (sem mais, sem nada a acrescentar). Um tipo de machismo intervém nas questões acadêmicas quando se diz ‘academicamente não se pode escrever assim’, ‘esse discurso está muito pessoal, muito afetivo’. É uma exclusão muito potente, pois produzida pelo bom academicismo.
Para vencer isso não adianta agir individualmente – seremos sempre vítimas ou loucas gritando sozinhas. É preciso um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer uma intervenção, justamente porque juntas tornaram-se capazes de fazê-la. Aí então poderemos “fazer disso toda uma história”, criar um caso. Essa dimensão da produção coletiva de um afeto tem relação com o fazer político. DR é isso.

Ana Furniel é coordenadora executiva do Portal de Periódicos Fiocruz.
Flávia Lobato é jornalista e editora de conteúdo do Portal de Periódicos Fiocruz.
Roberta Cardoso é editora executiva da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos e editora convidada do Portal de Periódicos Fiocruz .

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