Por detrás das flores: a violência contra as mulheres como reflexo de uma sociedade machista e violenta, por Delton Mendes Francelino

17 de janeiro, 2016

(Barbacena Online, 17/01/2016) Era um dia frio de inverno, São João del­-Rei, Minas Gerais. No meio de uma das principais ruas do centro histórico, uma mulher caída ao chão: sangue no rosto, pés descalços, joelhos feridos. Após correr cerca de 20 metros, fora alcançada pelo namorado que, em fúria, a agredira com socos e chutes. Após deixá­la desmaiada no chão, o homem retorna tranquilamente à casa, pega os pertences, toma o carro, e vai­se. A mulher, rodeada de curiosos, permanece inerte. Mais de 15 pessoas assistiram a tudo, sem qualquer capacidade reativa.

Pode parecer trecho de um conto de uma cidade do interior. Mas, infelizmente, é real e, mais que isso, representa uma das milhares de histórias que acontecem diariamente no Brasil com mulheres, muitas das quais de forma repetida e velada. Como primeiro artigo neste importante canal de notícias, optei abordar um dos temas que mais me preocupam e que representa uma das maiores desgraças antigas e contemporâneas da humanidade: a violência contra a mulher.

Trata-­se de um quadro perverso, perpetuado pelas gerações culturalmente, de forma latente e sólida. Sim, a violência contra as mulheres é uma verdade cultural, ou seja, está entranhada no cerne estrutural da sociedade, inculcada de forma tão presente que em inúmeras situações é hábito, praxe e até ritual.

Torna-­se hábito quando homens, ainda infantes, são incentivados a não desenvolver “talentos” básicos para a convivência íntima e recíproca no lar. Lavar louça, arrumar a própria cama, varrer a casa… são obrigações femininas. A diferença é clara no lúdico, na forma como se brinca na infância; meninas brincam aprendendo função social: cuidar de crianças, fazer comida, cultivar o hábito de zelar a casa. Nós, homens? Brincamos com carrinhos, bolinhas de gude. Experimentamos o voar das pipas com a liberdade do vento. Jogamos futebol na rua sem o receio dos preconceitos.

Enquanto nos acostumamos, homens, com o alvedrio das pipas e das ruas, as mulheres se acostumam com o aprisionamento do lar e dos afazeres domésticos. E não é uma realidade inerente apenas aos séculos passados.

Os dados de pesquisas realizadas por instituições internacionais e nacionais são desalentadores a qualquer pessoa que luta e torce pela justiça. Oficialmente, ou seja, com registro, aproximadamente 65 mil mulheres sofreram algum tipo de agressão em 2015. Mas, veja bem: com registro. Acredito que esse número seja infinitamente maior, e provas disso são claras, basta sair às ruas para perceber.

Seja no simples ato de caminhar nas proximidades de casa, seja na escolha da roupa que desejam vestir, as mulheres são limitadas, cerceadas e abusadas cotidianamente. Quem nunca presenciou o assédio a mulheres que, apenas por passarem próximas a bares e estabelecimentos vários, são acometidas por uma série de palavreados, sem qualquer pudor, sem qualquer respeito e moralidade? Quem nunca presenciou mulheres serem constrangidas por comentários másculos, como: “isso é coisa de homem”/ “mulher não pode fazer isso”/ “se fosse homem isso não teria acontecido”?

Essa realidade é o que chamo de 1ª violência, ou seja, uma forma de violência simbólica praticada por uma significativa parcela da população e Bandidos assaltam agência dos Correios em Alfredo Vasconcelos que, por sua vez, não acredita praticar violência. É o tipo de violência que revela os traços culturais de uma pessoa (ou grupo) e que possibilita e potencializa a agressão física. É violência simbólica que evoca e/ou se transforma em violência física, e por isso também deve ser criminalizada.

Muitos homens discordam e debatem. Não aceitam o discurso da violência. Não admitem que praticam a violência. Desconsideram que as mulheres são vítimas constantes de preconceitos, assédios e moralidades. Acostumamse, desde muito cedo, a apontar nelas as razões da violência que elas mesmas sofrem. Desgraçam­se diariamente ao isentarem de culpa pelos estupros, sofrimento e dor.

Limitadas e acuadas, elas têm receio de sair de casa à noite, de caminhar sozinhas às vezes perto da própria casa. Atravessam a rua sempre que veem um bar. Sentem­se acuadas quando querem vestir a roupa desejada, afinal, podem ser as “motivadoras do próprio estupro”. Namorados e maridos não permitem que suas parceiras e esposas se maquiem, colorindo a boca com o baton desejado. Não permitem que mantenham as amizades de outrora e vivam inteira e definitivamente em prol do namoro ou do casamento e, assim como foram preparadas desde a infância, as mulheres acabam cumprindo sua sina: no lar se criam e no lar se estabelecem.

Claro, existem exceções. Mas são raras… tão raras como exemplos de homens que as estimam e defendem. Ainda hoje o mercado de trabalho não remunera de forma igual homens e mulheres, mesmo que essas ocupem o mesmo cargo, numa mesma empresa. Ainda hoje mulheres motoristas, até em auto escolas, são consideradas incapazes de dirigir. Tal como os primeiros primatas que nos deram origem, o gênero masculino prepondera em discurso e ação, verdadeiro traço instintivo sobre a cultura; dominação e humilhação típicas do machismo, um mal que persevera na educação de nossas crianças, em pleno século XXI.

É bem provável que leitores desse artigo discordem de mim. Muitos certamente pensarão: mas nós, homens, também somos acometidos de várias injustiças. Somos quem têm os trabalhos mais pesados e difíceis. “Cantar” uma mulher na rua não é violência, afinal, elas gostam… é um elogio. Algumas até merecem ser estupradas, pois atiçam o desejo masculino com seus gestos e roupas.

Os exemplos acima são demonstrativos comuns que presenciamos frequentemente. São alguns dos principais agentes discursivos desencadeadores de toda a violência praticada contra mulheres no Brasil e no mundo. Tornar iguais os direitos entre homens e mulheres é um sonho que ainda parece distante, mas cuja essência precisa ser irrigada por todos que sofrem, de alguma forma, com essa realidade. Tal como um jardim em terra seca, é necessário que irriguemos com quantidade maior de luta os brotos de uma verdade e realidade que possam ser lugar comum, frutos ávidos num futuro não muito distante.

Em término, vejo­-me carente de uma das maiores ativistas dos direitos da mulher. Em homenagem a todo o gênero feminino, cito uma de minhas maiores fontes de fé, Simone de Beauvoir: “Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas (…) Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornarem­se seres humanos na sua integridade. “

NOTA DA REDAÇÃO: Delton Mendes Francelino atua como professor e pesquisador nas áreas de ciências ambientais, linguísticas e culturais, sendo mestre em Teoria Crítica da Cultura pela UFSJ e capacitado em permacultura, crítica ambiental e gestão de áreas naturais preservadas. Com objetivos científicos que buscam compreender as relações entre o homem e os recursos naturais, pesquisou e ainda pesquisa as múltiplas afinidades e tradições culturais dos habitantes da bacia do rio São Francisco, de Minas a Alagoas. Seu trabalho de pesquisa, focado, sobretudo, no nordeste, rendeulhe convite para ser membro do conselho de políticas culturais da bacia do Velho Chico.

É diretor nacional do Instituto Curupira, instituição fundada em Barbacena e que hoje possui núcleos de trabalho e pesquisa em Campinas/SP, Norte de Minas e Estados Unidos. Nesse âmbito, também é educador artístico e ambiental, tendo trabalhos reconhecidos voltados para processos educacionais ecológicos via estudos culturais, sobretudo por intermédio da música, teatro e eco poesia.

Com anseios de pesquisa em processos comunicativos, trabalha também com midialivrismo e midiativismo e as características contemporâneas da comunicação na sociedade em rede e acessibilidade à informação. Como resultado desse enfoque, possui trabalho premiado em feira estadual de ciências, sendo colunista de outras mídias, alternativas e formais, em Barbacena e Petrolina/PE

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