“As mulheres são vítimas de negligência”, diz especialista que defende aborto em casos de zika

03 de fevereiro, 2016

(Marie Claire, 03/02/2016) Em entrevista à Marie Claire, Debora Diniz dá detalhes sobre a ação que pede o direito ao aborto antes mesmo do diagnóstico de microcefalia. O projeto pede ainda assistência específica às mães que optam por seguir com a gestação

Depois de ter articulado a legalização do aborto de anencéfalos, em 2002, um grupo formado por acadêmicos, ativistas, médicos, advogados e psicólogos prepara outro pedido que deve ser encaminhado ao Supremo Tribunal Federal dentro de dois meses. Desta vez, a ação tem como objetivo defender o direito ao aborto a gestantes com diagnóstico de zika.

À frente da ação, a antropóloga Debora Diniz, do Instituto de Bioética Anis, disse em entrevista à Marie Claire que todas as grávidas precisam ter acesso ao exame PCR, que atesta a presença do vírus no sangue da paciente já nos primeiros meses de gravidez. Se o resultado der positivo, “a mulher deve ter a opção de interromper ou não a gestação”, mesmo sem a confirmação da microcefalia, que só tem sido identificada por volta da 28ª semana. “Nosso pedido não é para que optem pelo aborto porque o feto apresenta algum tipo de doença, mas por que elas não querem viver uma gestação sob esse sofrimento em meio a uma epidemia”, explica Debora.

A proposta imediatamente gerou contestação por parte de associações de apoio a crianças portadoras de deficiência e de grupos anti-aborto, que acreditam se tratar de uma forma de eugenia.

“Não estamos falando sobre o não nascimento de crianças com a síndrome associada ao zika, mas de as mulheres terem a chance de fazerem suas próprias escolhas em uma condição de imensa fragilidade lançada pela epidemia”, afirma.

Marie Claire – Qual a origem desta ação, começou em apoio a alguma grávida específica?
Debora Diniz – Não. Só depois que nós a anunciamos, passamos a ser muito procurados por grávidas com relatos relacionados ao assunto e interessadas por informações sobre onde procurar ajuda e fazer o exame. Fomos responsáveis por apresentar o pedido de direito ao aborto em casos de anencefalia, há mais de dez anos. Então, a agenda da interrupção da gravidez e da experiência de sofrimento na gestação é muito próxima a nós.

MC – Quais argumentos serão apresentados ao STF (Supremo Tribunal Federal)?
DD – Chamamos de uma ação de direito das mulheres, não de aborto, e ela se divide em dois blocos de argumentos. O primeiro diz respeito aos direitos sexuais reprodutivos. Queremos partir do reconhecimento de que o Estado brasileiro teve uma falência no enfrentamento da epidemia, que é a eliminação do mosquito Aedes aegypti, e isso trouxe consequências inesperadas para a saúde das mulheres e das crianças. Então, o primeiro pedido é para que as áreas de maior crescimento da epidemia, chamadas de endêmicas, tenham políticas de métodos contraceptivos. Ou seja, que o Estado ofereça uma oferta ampla e irrestrita de planejamento familiar acessível a essas mulheres. Nós não podemos pedir para que não engravidem. Isso não é política pública séria. Temos apenas que oferecer métodos de escolha. O segundo bloco de argumento pede que o exame viral para o zika vírus esteja disponível a todas as grávidas no Sistema Público de Saúde e que elas tenham a liberdade de escolher se querem ou não fazê-lo. Nós os chamamos de PCR, e ele testa a presença do vírus no sangue da paciente nos primeiros meses de gestação. É neste ponto que discutimos os aspectos considerados polêmicos da ação.

MC – Como o aborto?
DD – Sim. Se esse exame der positivo, a mulher deve ter a opção de interromper ou não a gestação. Exigimos da Suprema Corte que a decisão seja da grávida. Não estamos falando de aborto por motivo de microcefalia, mas em interrupção da gestação por uma ampla situação de desamparo que as mulheres estão vivendo com a epidemia. Elas não sabem o que vai acontecer e estão sofrendo ao se manterem grávidas. Então, nosso pedido não é para que optem pelo aborto porque o feto apresenta algum tipo de doença, mas por que elas não querem viver uma gestação sob esse sofrimento em meio a uma epidemia, que obviamente oferece um risco. Por outro lado, elas podem também decidir seguir com a gravidez, mesmo que o exame saguíneo tenha dado positivo e que uma ultrassonografia já tenha apresentado alterações no feto.

MC – Como a ação pretende atender a essas mulheres que decidem manter a gestação?
DD – A ação exige que as grávidas recebam assistência específica para um pré-natal de alto risco, que corresponda às diretrizes da OMS (Organização Mundial da Saúde) de uma situação de emergência. Além disso, imediatamente após o nascimento da criança, pedimos políticas sociais focadas nesse tipo de maternidade. Nós vamos ter um conjunto de crianças, não uma geração, com demandas singulares de acessibilidade, educação e saúde.

MC – Com excessão da Inglaterra, outros países que já legalizaram o aborto (França, Espanha e Uruguai) colocaram um limite de até três meses de gestação para que a interrupção possa ser realizada. O processo que vocês vão levar ao Supremo vai pedir que ele seja feito dentro de um período determinado?
DD – Esse é um ponto que nós consideramos de regulação da política pública. Diz respeito a uma avaliação médica sobre o sofrimento dessa mulher, risco à saúde e outros agravos associados. Essa não pode ser uma decisão judicial.

MC – Dentro da ação, quais são as exigências para que a gestante possa pleitear o direito ao aborto?
DD – Isso tudo é determinado pela política pública. Só pedimos à Corte o reconhecimento de que não se trata de um crime. Nós estamos falando muito mais de um campo de desamparo de saúde em relação às mulheres do que do estado de saúde do feto.

MC – Existem muitas questões morais e até religiosas envolvidas na legalização do aborto em qualquer circunstância. Esses sãos os maiores obstáculos para a aprovação definitiva da ação?
DD – A Corte não se move por crenças individuais dos ministros ou por morais específicas de determinadas comunidades. O Estado brasileiro é laico. A questão do aborto é uma questão intensa, afetiva, que move nossas paixões. Isso é legítimo no debate público, mas não no gerenciamento de uma democracia. Essa é uma ação estritamente jurídica, que visa atender direitos fundamentais ameaçados e de saúde pública. Não é uma matéria religiosa.

MC – O caso da microcefalia não é incompatível com a questão da vida do feto. A ação pode abrir precedentes para aborto em casos fundamentados nas escolhas pessoais da mãe?
DD – O STF não concorda com precedentes, ele toma decisões em cima do caso concreto sobre o qual foi feito um pedido específico. Não significa que abrimos a porta para a legalização do aborto no Brasil. Nós estamos em um contexto de epidemia com graves consequências na saúde das mulheres. Ao mesmo tempo em que é tão simples, é muito trágico. É preciso lembrar também que nem toda gravidez é planejada, mas quando uma mulher se vê diante de um diagnóstico de risco grave à saúde como esse, ela se encontra diante de uma situação radicalmente diferente de tudo o que acontece no aborto ilegal e escondido. Socialmente, ela já é uma futura mãe. Por isso, é confrontada pela família, amigos e vizinhos, que pedem explicação sobre o motivo que a faz decidir pela interrupção daquela gestação. Interpelá-la sobre suas escolhas é mais um ato de abandono do Estado e de todos nós.

MC – As associações de apoio a crianças portadoras de deficiência e grupos anti-aborto são contrários à ação, porque acreditam que ela abre espaço para um controle genético como meio de evitar doenças a futuras gerações. O que responde aos críticos que chamam a ação de eugenia?
DD – Eugenia é uma ideologia de um Estado totalitário, opressor e de extermínio. Nós não vivemos nele. Uma mulher quando faz suas escolhas reprodutivas a cada dia, como quando toma uma pílula, não está sendo eugênica sobre o nascimento de futuras pessoas. Não estamos falando sobre o não nascimento de crianças com a síndrome associada ao zika, mas de mulheres terem a chance de fazerem suas próprias escolhas em uma condição de imensa fragilidade lançada pela epidemia. Ela não precisa esperar o diagnóstico da microcefalia. Então, eu tenho duas hipóteses para quem grita eugenia: má-fé ou ingenuidade.

MC – O Estado é o grande responsável por essa epidemia?
DD – Eu não tenho a menor dúvida. Ele é responsável por não ter eliminado o mosquito nas últimas décadas. As mulheres são vítimas de uma negligência persistente do Estado brasileiro.

MC – Algumas declarações do ministro da Saúde, Marcelo Castro, assim como o Plano de Enfrentamento à Microcefalia indicam que a responsabilidade pela prevenção do contágio é individual, da mulher. Você nota esse cenário?
DD – Na verdade, a expressão “responsabilização individual” na saúde pública é quase uma incoerência. Saúde pública nada mais é do que um conjunto de medidas coletivas de prevenção de doença, de diminuição de agravos. Nós não podemos dizer às mulheres que a bacia no quintal é o repelente que elas não usaram. O mosquito da dengue conviveu com a mãe e avó dela. Agora convive com ela em forma de zika.

Daniela Carasco

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