As caras das mulheres que são tratadas como cadáveres vivos

03 de fevereiro, 2016

(Expresso, 03/02/2016) Karishma engravidou aos nove anos, depois de ter sido violada. Foi expulsa de casa pela própria mãe. É um dos casos de coragem e horror relatados pela fotógrafa indiana Smita Sharma, empenhada em denunciar a alarmante violência de gênero na Índia

A violação mata uma mulher física e emocionalmente.” É por isso que interessa continuar a tentar dar-lhes vida, encontrar-lhes um sentido. Na Índia, onde no ano passado aconteceu uma violação a cada 20 minutos, isto é particularmente fundamental, porque ali estas sobreviventes “são tratadas como cadáveres vivos, humilhadas e ostracizadas para toda a vida”.

As palavras são de Smita Sharma, que acompanha a vida destas mulheres, que as fotografa e descobre as histórias de traumas e abusos que carregam consigo. Sharma é uma fotógrafa freelancer indiana e dedica-se com especial empenho a trabalhos no âmbito da violência de gênero, um tema demasiado atual naquele país. Percorrendo a Índia em busca destas histórias, a fotógrafa guarda os rostos das vítimas e acrescenta-lhes de forma crua linhas que explicam as suas expressões duras, por vezes vazias.

Percorrendo o website da fotógrafa, chegamos à fotogaleria “Crônicas de Coragem” e torna-se difícil escolher casos para contar. As idades das sobreviventes são reveladas em números demasiado pequenos: 12, 10, 9 anos. Os nomes estão escondidos por pseudônimos mas as caras, novas mas já visivelmente marcadas, estão expostas. As histórias são diversas: têm o horror – e a coragem – em comum.

Pinky, que tem apenas 12 anos e um olhar duro, foi convidada para visitar a casa de uma vizinha. Quando chegou, esta amordaçou-a e entregou-a ao seu cunhado. Depois de a ter violado, o homem tentou silenciá-la. Uma semana depois do sucedido, Pinky contou tudo aos seus pais, que levaram o caso à polícia.

O caso de Manali, 13 anos, retrata a forma como o poder financeiro se pode sobrepor aos direitos que a todos parecem evidentes. Depois de ter sido raptada e violada por um homem da comunidade Yadav que era influente na esfera financeira, Manali conseguiu fugir – a intenção do violador era vendê-la a uma casa de prostituição – e denunciar o incidente. Mas as consequências não foram as esperadas: a polícia deteve a rapariga durante 12 dias para tentar intimidá-la e forçá-la a retirar a queixa.

M., 13, was trafficked by a man from her neighboring village in northern Uttar Pradesh. She was raped by the man behind…

Publicado por The New York Times – Lens – Photography em Terça, 15 de dezembro de 2015

Rithika encarou obstáculos semelhantes quando tentou contar o que lhe aconteceu. Tem agora 15 anos, mas em 2011, com apenas 11, foi violada por um homem quando foi a uma floresta perto da sua vila para defecar, uma vez que em sua casa não há uma casa de banho (uma situação comum a 60% das habitações rurais na Índia). A sua mãe encontrou-a a sangrar e levou-a ao posto da polícia mais próximo, mas as autoridades recusaram-se a aceitar a queixa. Atualmente, Rithika sofre de stress pós-traumático e deixou de falar.

Por vezes, nem a família apoia estas vítimas. Como no caso de Kalpana, de 17 anos, que engravidou depois de ter sido violada, em 2008 (era uma menina de 10 anos), e como consequência foi expulsa de casa pela própria mãe. Shabina, de 20 anos – violada quando tinha 12 – foi forçada pela família e vizinhos a casar com o violador, mas este recusou reconhecê-la como sua mulher.

An out-take from my project on Sexual Violence and Rape in India which is currently on display at the India Habitat Centre in Delhi. Kalpana (17) with her five year old son Neel at their home in Kolkata. Kalpana was raped by her landlord’s son in 2008. Kalpana remained silent out of shame and fear. After becoming pregnant from the rape, Kalpana’s mother threw her out of the house. She was later pressured to marry her rapist by a local political party. Kalpana refused to withdraw the case or marry him. Originally from a suburban West Bengal town, she now lives in Kolkata with her son and works as a hair stylist at a salon. (Names have been changed to protect their identity) #sexualviolenceawareness #rape #rapeinindia #documentary #India

Uma foto publicada por Smita Sharma (@smitashrm) em

Estes casos impressionam, mas estão longe de ser únicos e representam apenas algumas das mulheres que chegam a denunciar o abuso que sofreram. Por isso, Smita – que também sobreviveu a abusos sexuais no passado – decidiu começar uma campanha de crowdfunding para pedir doações e continuar a revelar as caras e histórias destas mulheres. No vídeo em baixo, a fotógrafa explica os moldes do projeto e dá voz a quem não a costuma ter – e como resultado ouvimos em primeira mão frases como “a minha mãe e as minhas irmãs disseram-me para casar com o violador” ou “ele tentou sufocar-me com o gás da cozinha”.

É importante lembrar que estas histórias de horror não estão isoladas nem na galeria de Sharma nem naquele país – e os casos não acontecem só nas zonas mais pobres ou rurais. Só no ano passado, em Nova Deli foram registados 5192 denúncias por abusos sexuais e 1444 casos de assédio. A cada quatro horas, há uma violação naquela cidade. A cada 20 minutos, há uma violação na Índia.

Acesse no site de origem: As caras das mulheres que são tratadas como cadáveres vivos (Expresso, 03/02/2016)

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