Meu caminho pelo mundo, eu mesma traço

07 de fevereiro, 2016

(Correio Braziliense, 07/02/2016) O fato de as mulheres não se sentirem seguras em dadas situações ou em certos lugares é um alerta grave de que a liberdade delas ainda está cerceada

Há muito, o conceito “sexo frágil” caiu por terra, mas a vulnerabilidade da mulher ainda é uma realidade. Os números não mentem: de acordo com os registros do telefone 180, do governo federal, oito mulheres são estupradas por dia no Brasil, uma a cada três horas. O Distrito Federal é a unidade da Federação que mais registra relatos de violência contra a mulher por meio deste canal. O carnaval reacende o tema do limite entre assédio e paquera. Na internet, diversas campanhas chamam a atenção para a perseguição sofrida pelas mulheres, enquanto outras parecem insistir em velhos (e ultrapassados) “conselhos”. Se por um lado, a orientação de órgãos oficiais é “evitar situações de risco”; por outro, é preciso não deixar de viver. Até que ponto estamos seguras e até onde vai a nossa liberdade?

Para a socióloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Lourdes Maria Bandeira, quando o assunto é violência, é impossível deixar de lado a questão da diferença de gênero. “Quando os homens sofrem violência, geralmente tem a ver com violência física ou patrimonial. No caso das mulheres, na maioria das vezes, ela está relacionada à sexualidade”, explica. Lourdes já publicou diversos trabalhos sobre o assunto, além de ter sido coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher (Nepem) e vice-ministra da Secretaria de Estado de Políticas para as Mulheres do Brasil.

Ao mesmo tempo em que as mulheres sabem que correm mais risco de sofrer violência que os homens, Lourdes acredita que elas também estão mais conscientes de que existem formas de tomar alguma atitude. Para além das denúncias, a professora afirma que vivemos um momento de maior união feminina. “O que está acontecendo entre as alunas da UnB é a mobilidade solidária. Elas não vão sozinhas do câmpus para a parada de ônibus ou para o banheiro, por exemplo.” Ainda assim, o medo está sempre presente. “É uma coisa maléfica, porque limita a capacidade de locomoção e de circulação da pessoa”, completa.

Outro aspecto que pode ajudar a explicar a vulnerabilidade feminina nas ruas, para a socióloga, é a própria rua. “A segurança pública é nula, a iluminação é frágil em lugares de grande circulação, como universidades e escolas. Sem contar a impunidade geral de estupradores e assediadores.” Infelizmente, ainda há situações que exigem da mulher mais atenção e cuidado para realizar as tarefas mais corriqueiras, como sair à noite ou ir à universidade. Quem estuda no período noturno sabe que a situação é complicada, mesmo na hora do deslocamento. Esse é o caso da servidora pública e da estudante de letras Larissa Timo, 29 anos. Até o semestre passado, ela cursava disciplinas à noite. Como forma de prevenção, tinha algumas táticas, especialmente com relação ao estacionamento do Instituto Central de Ciências (ICC), mais conhecido como Minhocão.

As aulas da estudante começavam às 19h, mas Larissa, mesmo morando próximo à universidade, chegava às 18h. O esforço era para garantir uma vaga próxima à sala de aula. E quando, por algum motivo, precisava chegar mais tarde, o jeito era estacionar em algum lugar irregular. Mas, com a tática, foi multada duas vezes. “As aulas terminam às 22h30. Nesse horário, a UnB está deserta, com iluminação precária. É correr o risco de sofrer alguma coisa ou pegar uma multa. Prefiro a multa.” O interessante, conta, é que depois de entrar no veículo e seguir para casa, ela volta a se sentir segura.

A insegurança é uma questão ainda mais forte para as usuárias de transporte público. A prestadora de serviço Kamila Marques Jacoub, 25 anos, vive essa realidade. Ela não tem carro e usa o serviço de ônibus para se deslocar pela cidade. O local de trabalho fica num setor de garagens. “Quando saio às 19h e não tenho carona, fico um pouco temerosa. É um lugar um pouco remoto. Já fui abordada por homem bêbado, por homem fazendo cantada, mas consegui me desvencilhar. O esquema é não responder, só continuar andando.”

Kamila também estuda à noite na Universidade de Brasília e conta que, no término das aulas, sempre pega o coletivo na parada de ônibus central do Minhocão, por ser a que mais tem gente esperando. A situação complica quando o ônibus não passa. Aí o jeito é conseguir companhia e seguir até a L2 Norte. O caminho é mal iluminado e isso a deixa apreensiva quando vai só. Precisa contornar o terreno baldio e caminhar o mais próximo possível dos carros. Ela se considera uma pessoa tranquila, sem neurose com segurança, mas não se sente confortável durante o trajeto.

Precaução na medida certa

Camila Morais, psicóloga e terapeuta familiar e de casais, diz que nem toda violência poderá causar, necessariamente, um transtorno mental. O trauma, contudo, terá reflexos no futuro, em maior ou em menor grau. Segundo ela, é preciso considerar também a personalidade de cada um e o grau da violência, seja verbal, emocional, psicológica, seja física. “Pode ser que algumas mulheres consigam lidar com aquela situação de um jeito menos danoso para si mesmas. Outras podem ficar paralisadas e se tornarem reféns da situação.”

A psicóloga Analu Ianik Costa explica que, uma vez exposta a uma situação de violência, a mulher raramente continua a mesma. “Muitas se perguntam se vale a pena sair de novo e acabam se privando de muita coisa.” Dependendo do nível da violência e da configuração mental da pessoa, o trauma pode evoluir para problemas mais graves, como síndrome do pânico, depressão e ansiedade. “A pessoa tem que se perceber. Se acontece algo que a deixou desconfortável, é preciso pensar sobre aquela abordagem, perceber o que aquele ato causou em você”, ensina.

No consultório, a sensação de desamparo, impotência e injustiça é o sentimento mais corriqueiro entre as vítimas, além da tóxica culpa. Remoer o incidente, pensando em como poderia ter agido para impedi-lo, torna o problema ainda mais difícil de ser contornado. “A sociedade coloca a culpa na vítima. ‘É porque ela estava bebendo’, ‘ela estava de roupa curta’. Mas a verdade é que a culpa é exclusivamente da pessoa que agrediu.”

Postura ativa contra o medo

Para Vanessa Ribeiro, instrutora de krav magá, mulheres são vítimas preferenciais dos agressores por não serem consideradas uma “ameaça”, ou seja, raramente tentarão reagir a uma abordagem. Adotar medidas de comportamento defensivo, segundo ela, já ajuda a não se tornar alvo de situações perigosas. Andar atenta na rua, não caminhar ou dirigir olhando para o celular, demonstrar que está ligada a tudo que está acontecendo à volta seriam exemplos de como fugir da linha de frente.

Vanessa Ribeiro explica que a filosofia do krav magá é focar em golpes simples que acertem pontos sensíveis do agressor, como olhos, garganta, genitália e joelhos. “A mulher aprende de forma rápida, simples e extremamente eficiente a se livrar das situações mais comuns de agressão”, resume. Mas atenção: a orientação é sempre não reagir. “Ninguém está falando que é para reagir a tudo, mas se a sua vida estiver em risco, você tem o direito de se defender.” Praticante da modalidade há 18 anos, Vanessa conta que já treinou diversos alunos e alunas que, de fato, precisaram pôr em prática os ensinamentos. “Muitas pessoas perderam a liberdade por conta do medo”, observa.

Usado pelo exército israelense, o krav magá ensina técnicas de soltura de estrangulamento, de agarramento pela frente, defesa de chutes e até defesa contra ataques com facas, bastões e arma de fogo — contra um ou contra vários agressores ao mesmo tempo. “É uma realidade de guerra real que, adaptada à situação civil, garante essa chance de defesa ampla.” Thaísa Guimarães, 37 anos, pratica a modalidade há 7. A administradora já tinha quatro anos de experiência em kung fu. Quando sofreu um assalto à mão armada, resolveu procurar uma alternativa mais efetiva. “O kung fu é uma arte marcial, então tem competição, medalhas. No krav magá, a gente visa chegar viva em casa.”

Thaísa se interessou por defesa pessoal após se sentir ameaçada. “Tive problemas com algumas pessoas que me seguiam e comecei a ficar com medo de elas tomarem coragem de fazer alguma coisa comigo.” A primeira coisa que mudou foi a própria postura. “Se vou para o meu carro e vejo que há pessoas estranhas, não vou sozinha. Sei que o krav magá funciona, mas para que vou ficar testando?”, questiona. Para ela, defesa contra faca, arma de fogo, pedrada e estupro são as mais úteis. Aprender a adotar uma postura defensiva aguçada, mas sem se expor a riscos desnecessários, é o caminho para o equilíbrio, segundo ela. “Medo, eu não tenho mais. Claro que é preciso analisar cada caso para ver a melhor reação, inclusive, correr. Não reagir também é uma escolha de reação”, justifica.

Comportamentos defensivos

Na rua

  • Se possível, saia sempre em grupo. Mulheres desacompanhadas são vítimas preferenciais;
  • Evite andar com joias e objetos de valor à mostra;
  • No caso de ser abordada por um criminoso, procure manter a calma e não reagir;
  • Caso o assalto seja consumado, comunique imediatamente à autoridade local.

No trânsito

  • Aproxime-se do veículo com a chave do carro na mão, entre rapidamente, trave as portas e logo em seguida dê a partida;
  • Nunca espere alguém dentro do carro. Prefira locais iluminados e seguros;
  • Escolha bem onde vai estacionar, especialmente se o evento for acabar tarde. Mesmo que o local esteja movimentado na hora da chegada, no fim da festa o cenário pode ser diferente;
  • Não se distraia com conversas ao celular, com retoques de maquiagem ou mesmo com o som do carro;
  • É importante que bolsas e equipamentos eletrônicos não fiquem visíveis nos bancos, para não chamar a atenção;
  • Caso o sinal fique vermelho e o veículo ainda esteja distante da fileira da frente, é importante desacelerar e fazer a aproximação lentamente, sem necessariamente parar o carro e
  • Ao parar o automóvel, deixar uma distância de segurança do veículo da frente a fim de que você possa sair caso ocorra alguma situação de risco.

Na estrada

  • No caso de viagens, programar o roteiro, observar previamente pontos seguros de parada e evitar viajar durante a noite;
  • Se for fazer uma viagem e não conhecer o caminho, é preciso, antes de pegar a estrada, procurar informações sobre a rota mais segura e programar paradas em estabelecimentos mais movimentados;
  • Em se tratando de BRs, em trechos com buracos, lombadas ou redutores de velocidade, ficar atento(a) e observar se está sendo seguido(a) por motociclistas e
  • Dirigir sempre com visão ao horizonte, pois dessa forma conseguirá enxergar antecipadamente o movimento que ocorre a sua frente.

Fonte: Mariana Silveira, assessora de Comunicação da Polícia Rodoviária Federal

Gláucia Chaves e Cecília Garcia, especial para o Correio

Acesse no site de origem: Meu caminho pelo mundo, eu mesma traço (Correio Braziliense, 07/02/2016)

 

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