A escolha, por Rosiska Darcy de Oliveira

27 de fevereiro, 2016

(O Globo, 27/02/2016) O que o país deveria estar discutindo é como amparar aquelas que decidirem interromper a gravidez para que o façam sem risco

As mulheres brasileiras estão vivendo um pesadelo. As que estão grávidas, as que gostariam de engravidar, as que ainda não sabem se engravidaram ou não.

A ameaça de que o embrião seja infectado pelo vírus da zika e sofra as consequências devastadoras da microcefalia abriu um cenário de horror em que um reles mosquito tem o poder de destruir o futuro de uma criança e deixar um casal abandonado, sim, a seu próprio infortúnio, em um país que jamais conseguiu tratar com mínima decência os que necessitam de cuidados especiais.

É indecente que autoridades ousem afirmar que darão todo apoio à criança e aos pais. Não é verdade. Como é falso que tenham de fato se empenhado em combater esse mesmo mosquito maldito que há anos nos assombra com a dengue.

O nascimento de uma criança com microcefalia é uma tragédia que fere uma família. Como essas famílias já são muitas e sabe-se que serão cada vez mais, estamos confrontados a uma tragédia nacional. Não há tempo nem lugar para hipocrisias.

Discutir se, sim ou não, as mulheres que desejarem interromper a gravidez têm esse direito é um desrespeito. As únicas que podem tomar essa decisão são elas mesmas, e já lhes basta a angústia e o sofrimento que estão enfrentando, não precisam que alguém ainda venha lhes dizer que cometem crime ou pecado.

Há limites para a insensibilidade, e esse caso é uma fronteira entre a compaixão e a crueldade. O que o país deveria estar discutindo é como amparar aquelas que decidirem interromper a gravidez para que o façam sem risco. E como socorrer aquelas que decidirem prosseguir na gravidez, em atos, e não com mágicas marqueteiras, que logo desaparecem da vida real.

Ninguém tem o direito de decidir pela mulher. A decisão é dela.

Esse debate põe a nu, em um momento de extrema gravidade, o imenso equívoco que é, na sociedade contemporânea, tentar impedir que cada um escolha seu destino. Porque este é o fundamento do pensamento autoritário e sua ambição, quer se trate dos direitos das mulheres, das relações homoafetivas ou do direito de morrer com dignidade.

Em vão. Não existe mais um destino preestabelecido. Cada um pensa, reflete, discute com os mais próximos, em círculos de confiança, antes de agir. Já não age porque tem que ser assim, em respeito a tradições ou hierarquias, mas porque decide que assim seja, por convicção.

O direito indelegável de tomar decisões responsáveis sobre questões de vida ou morte não pode ser negado por leis caducas, que insistem em falar a uma sociedade que já não existe e são surdas àquela que as interpela.

As leis não são imunes à pressão de uma sociedade em constante mutação. Os tribunais têm se mostrado mais sensíveis aos apelos da sociedade, ao modo pelo qual direitos se constroem e limites éticos são definidos, do que o Congresso Nacional, que perdeu o respeito da população e insiste em impor a todos normas e princípios de vida de inspiração fundamentalista em que só um punhado de deputados se reconhecem.

É certo que os religiosos têm direito a sua opinião como todos os cidadãos. Mas não se trata de um debate de opiniões. Quem quer proibir a interrupção voluntária da gravidez não está exprimindo apenas uma opinião. Está, no caso presente, impondo a uma mulher, contra a sua vontade, um futuro que só ela pode decidir se quer ou não assumir.

O argumento da maioria no Congresso não procede. Há liberdades que não podem ser negadas porque são intrínsecas à dignidade de cada um. O recurso aos tribunais tem sido o caminho legal para a ampliação destes direitos.

Mas há outra maneira de lidar com leis injustas, que é o que fazem milhões de pessoas, recusar em suas vidas, mesmo correndo riscos, os interditos que restringem sua liberdade. No Brasil, o “crime” de interromper a gravidez é praticado por milhões de mulheres com o conhecimento de outros tantos milhões de “cúmplices”. Os países desenvolvidos já entenderam que não há que impor às mulheres uma gravidez indesejada. A lei que proíbe a interrupção voluntária da gravidez só serve para infernizá-las com ameaças de prisão e expor ao risco de vida as mais desvalidas.

Também é uma violência negar a um doente terminal o direito de morrer com dignidade. Quando um adulto decide que não quer mais sofrer, como negar-lhe o alívio, a serenidade e o exercício de uma última liberdade neste momento limite da existência? Que instância tem autoridade para recusar tal pedido, para arrogar-se tão desumano poder?

Você confiaria ao palco de escândalos que é o Congresso Nacional a elaboração da ética que vai pautar sua vida?

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora

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