Obra fundadora do feminismo chega ao Brasil em versão comentada

09 de março, 2016

(Revista AzMina, 09/03/2016) “Reivindicação dos Direitos das Mulheres” foi escrito por Mary Wollstonecraft em resposta à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”

Ofeminismo foi um filho indesejado da Revolução Francesa. Já ouviu falar disso? Pois é. E apesar de todo mundo falar muito de Simone de Beauvoir, quem é considerada a verdadeira fundadora do movimento é a escritora Mary Wollstonecraft. Em resposta à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” dos revolucionários franceses, ela lançou o primeiro grande questionamento sobre as questões de gênero do mundo no livro “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”.

Mary Wollstonecraft

Mary Wollstonecraft

Essa obra essencial do feminismo chega ao Brasil em edição comentada no dia 11 de março, celebrando o mês da mulher, pela editora Boitempo (256 página, R$ 53). Leia aqui um trecho do prefácio, escrito pela professora e pesquisadora da UNICAMP, Maria Lygia Quartim, e liberado exclusivamente pra Revista AzMina, e entenda porque esse livro é tão importante.

O feminismo na idade das luzes

Capa desta edição comentada

Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.

Assim Kant, contemporâneo de Mary, inicia sua Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, que nos ajuda a entender a revolução teórica e política do ousar saber que inspirou aqueles que militavam pela abolição da escravidão e pela igualdade de todos os seres humanos. E a importância da emancipação do pensamento. Como veremos, as ideias emancipacionistas de Mary Wollstonecraft e de sua contemporânea francesa Olympe de Gouges (1748-1793) alimentaram-se do legado iluminista e, ao mesmo tempo, enriqueceram-no. Ambas, à sua maneira, ousaram contestar o discurso dominante em que se apoiava a subordinação da mulher ao homem como um dado da natureza. Ambas participaram ativamente da vida política de seus países, como feministas e como abolicionistas.

Um ambiente social acolhedor; um grupo de estudos; uma célula política lutando pelos direitos dos escravos – tais circunstâncias criaram grupos por afinidade nos quais os homens que tinham absorvido a cultura iluminista, que lutavam pela abolição da escravatura e pela emancipação da humanidade das garras da ignorância eram os mesmos que defendiam os direitos das mulheres. O marquês Nicolas de Condorcet (1743-1794), filósofo, matemático e enciclopedista, defendia publicamente as mesmas teses que Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges, como testemunha seu Sur l’admission des femmes au droit de cité. Indignado com a exclusão das mulheres na Assembleia Constituinte, ele enfatiza o absurdo de se falar em igualdade de direitos enquanto metade do gênero humano é privada de cidadania. Pergunta ele: como se pode falar em direitos iguais quando uma assembleia de 300 ou 400 homens se outorga a prerrogativa de decidir sobre o destino 12 milhões de mulheres? Além do mais, prossegue, para que essa exclusão não fosse um ato de tirania, seria necessário provar que os direitos naturais das mulheres não são os mesmos dos homens, ou provar que elas não podem exercê-los. Pois aquele que vota contra o direito de outro, por causa de sua religião, cor ou sexo, está ao mesmo tempo abjurando seus direitos.

O feminismo iluminista de Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges compartilha da mesma crença na importância da educação e na universalidade de direitos, fazendo eco a Condorcet. É um feminismo que se opõe à escravidão dos africanos e indígenas e à escravidão doméstica. Ambas viveram tempos históricos em que a mulher estava excluída da educação formal, das universidades e das possibilidades de uma carreira de nível superior. E em que o casamento a transformava numa dependente legal do marido, que não podia gerir os próprios bens nem trabalhar sem consentimento. É a eterna menoridade como destino das mulheres.

Olympe de Gouges viveu tempos revolucionários, marcados pelos ideais de igualdade e liberdade. Ela se insere nas agitações políticas da França escrevendo panfletos, tratados políticos, peças de teatro e artigos sobre a questão da mulher. Participando ativamente dos dramáticos anos que se sucederam à queda da Bastilha, Olympe dirige o jornal L’Impatient, funda, em 1793, a Sociedade Popular das Mulheres e publica, em 1791, a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, basicamente uma contraproposta da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, na qual “homem” não era usado como sinônimo de “humanidade”, mas como representante do sexo masculino, o que lhe garantia o direito à cidadania. Em alguns pontos, o texto é ainda mais radical do que a Reivindicação, pois propugna não somente a igualdade dos direitos da mulher à educação, mas ao voto e à propriedade privada, aos cargos públicos, ao reconhecimento dos filhos nascidos fora do casamento e à herança.

Gouges, como Wollstonecraft, abraça a causa da abolição da escravatura, a criação de instituições de apoio a mães solteiras e a criação de um teatro para a dramaturgia feminina. Pacifista, como continuam sendo as feministas contemporâneas vez o pensamento das duas mulheres se aproxima, pois também Mary Wollstonecraft se chocaria com os desmandos da Revolução Francesa e escreveria um panfleto de denúncia. No ano seguinte, Olympe de Gouges seria presa e, três meses depois, guilhotinada por fazer essas mesmas críticas, tendo seu corpo jogado na vala comum.

A trajetória de Mary Wollstonecraft não foi menos incendiária nem trágica: ela e os cinco irmãos viviam sob o jugo do pai, um déspota doméstico que não somente dilapidou os bens da família em negócios desastrosos, como os obrigou a constantes mudanças de residência. Aos dezenove anos, Mary sai de casa e passa a se sustentar por meio de um emprego doméstico, insatisfatório. Em 1874, junto com a irmã Eliza, que ajudara a escapar de um marido violento, ela funda uma escola em Newington Green, comunidade com forte presença de livres pensadores. Essa experiência de ensino dá inicio a sua intensa atuação em prol da educação feminina. Em 1874, publica o panfleto Thoughts on the Education of Daughters: with Reflections on Female Conduct, in the More Important Duties of Life e passa a dedicar-se à literatura, tornando-se tradutora e conselheira de Joseph Johnson, editor de textos radicais. Em 1788, com o lançamento da revista Analytical Review, Mary começa a contribuir regularmente para a publicação, o que lhe dá acesso à vanguarda intelectual e artística da Inglaterra, incluindo Thomas Paine, William Blake e Henry Fuseli, admirador de Rousseau, assim como Mary. O entusiasmo dela por Fuseli transformou-se em amor e, como o artista era casado, Mary propôs à mulher dele que compartilhassem o marido. Ao fazer tal proposição, veementemente rechaçada, Mary agiu com absoluto desrespeito pela monogamia obrigatória e, principalmente, assumiu o papel ativo de sujeito do desejo. É essa coragem em expor seus sentimentos e desejos que constitui seu precioso legado e, ao mesmo tempo, sua vulnerabilidade.

Dessa maneira, a Reivindicação dos direitos da mulher resulta tanto de uma trajetória de lutas militantes de Mary como de seus enfrentamentos contra a moral sexista e conservadora da época. O romantismo que impregnava a sociedade inglesa colaborou para o tumulto de sua vida afetiva: “como mulher de razão e mulher de natureza, ela personifica a complexa tensão e as fissuras do Iluminismo […]. Equilibrando-se entre a Era da Razão e a primeira onda do Romantismo, Wollstonecraft lutou para reconciliar razão e sensibilidade em sua vida e em seus escritos”.

Interessada em acompanhar a Revolução Francesa de perto, Mary viaja para a França em 1792, vindo a conhecer o comerciante norte-americano Gilbert Imlay, por quem se apaixona profundamente. Esse é um período em que os ingleses passam a ser malvistos na França, levando o cônsul dos Estados Unidos a celebrar um casamento civil que permitiu a Mary passar por norte-americana. Fanny Imlay, a filha do casal, nasce em 1794 em Havre, mas as constantes viagens a trabalho de Gilbert, bem como sua infidelidade, complicam a relação do casal até que ele enfim abandona. Ela atravessa um período conturbado e, muito fragilizada, tenta o suicídio por duas vezes.  Ao mesmo tempo, dá continuidade à redação de seus textos críticos, focalizando a violência assumida pela Revolução Francesa. O volume 1 do livro, publicado em 1794, intitula-se An Historical and Moral View of the Origins and Progress of the French Revolution and the Effect It Has Produced in Europe.

Em abril de 1796, Mary toma a iniciativa de escrever para o jornalista e filósofo inglês William Godwin e eles passam a se encontrar regularmente, mantendo também uma intensa correspondência, que acompanha o tocante processo de aproximação dessas duas inteligências e a descoberta da atração física criada pela convivência. Poucos meses depois, tornam-se amantes, em uma relação baseada no respeito mútuo e no companheirismo. Dadas as restrições legais que oprimiam as mulheres casadas, ambos optam por, no início, não formalizar o matrimônio, fazendo isso apenas posteriormente, quando Mary engravida, tendo em vista o estatuto legal da criança prestes a nascer. Infelizmente, quando Mary parecia ter encontrado “a harmonia doméstica e o amor”, uma septicemia decorrente do parto causa sua morte, aos 38 anos, dez dias depois do nascimento de sua segunda filha, batizada Mary Wollstonecraft Godwin, que viria a obter grande reconhecimento, sob o nome Mary Shelley, como autora de Frankenstein.

Após a trágica morte de Mary Wollstonecraft, William Godwin comprovou sua fidelidade ao legado político da esposa: tratou de organizar os escritos inéditos, uma novela inacabada e a correspondência entre ambos. Ademais, publicou, em 1798, o livro Memoirs of the Author of a ‘Vindication of the Rights of Woman’, que pode ser considerado a primeira biografia moderna. Nele, numa linguagem direta, numa narrativa sem retoques, Godwin acompanha a trajetória de Mary desde a infância, ressalta sua luta pela autonomia profissional, menciona as diversas transgressões às regras de conduta, tais como a relação sexual e afetiva com Imlay, que resultou em e uma criança ilegítima, além do desespero de Mary ao se dar conta do progressivo afastamento do homem que amava e suas duas tentativas de suicídio. Só alguém que amasse Mary tal como ela era poderia expor com tanta simplicidade e respeito tais fatos íntimos de sua vida. William o faz de maneira a não omitir a complexa subjetividade de Mary, sua postura arrebatada no amor que a colocava mais como sujeito do desejo do que no lugar de ser desejado. Para ele, a melhor homenagem a ela seria mostrar a força literária e política de seus textos, sem esconder as conquistas, os infortúnios e os amores dessa mulher inteligente e vulnerável, mas ao mesmo tempo senhora de suas escolhas.

A teórica e ativista francesa Flora Tristan (1803-1844), ponto de mutação na história das lutas feministas por ser a primeira defensora da unidade dos operários do mundo inteiro, no livro Promenades dans Londres: ou L’aristocratie et les prolétaires anglais, em que disseca o cotidiano vazio e cheio de formalidades das mulheres de classe média inglesas, recomenda a leitura de Reivindicação e, como contraponto à falta de perspectivas dessas mulheres, ressalta a extraordinária importância a obra de Mary Wollstonecraft.

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