Monitoramento da Mídia: A cobertura e as candidaturas de mulheres

03 de janeiro, 2011

(Por Bia Barbosa*, da Agência Patrícia Galvão) Apesar de duas fortes candidatas disputarem as eleições presidenciais, pesquisa realizada sobre a cobertura da imprensa revela desconexão entre o debate macroeleitoral e as políticas públicas que possibilitam garantir os direitos das mulheres. Segundo especialistas, uma das causas do problema é a forma ainda enviesada pela qual a mídia trata as mulheres na política.

Temas centrais da agenda das mulheres ficaram de fora da cobertura eleitoral

No centro da disputa eleitoral de 2010 para a Presidência da República, duas candidatas sensíveis às questões de gênero e aos direitos das mulheres: Dilma Rousseff e Marina Silva. Apesar disso, nem as próprias candidaturas e tampouco a mídia brasileira dedicaram espaço em sua cobertura às questões que possibilitam enfrentar concretamente os desafios para a garantia dos direitos das mulheres.

Este é um dos resultados da pesquisa sobre a participação das mulheres no processo eleitoral de 2010, realizada pelo Consórcio Bertha Lutz** e apresentada parcialmente durante o Seminário A Mulher e a Mídia 7. A pesquisa analisou a produção editorial de 29 jornais de 14 estados, 4 revistas nacionais e 4 telejornais, no período de 1º de junho a 31 de outubro, totalizando 123 dias de monitoramento.

O resultado completo do estudo será divulgado em março de 2011, mas a análise preliminar dos dados revela que questões críticas da condição das mulheres ficaram ausentes da cobertura eleitoral. Se por um lado cresceu a referência às mulheres nas editorias de política, incluindo uma quantidade expressiva de conteúdo opinativo, temas como violência doméstica, desigualdade no mercado de trabalho, educação de zero a 6 anos, e cotas para mulheres nos partidos políticos foram pontuais na cobertura eleitoral.



“Do total de 3.372 notícias analisadas, mais de 50% foram publicadas no segundo turno das eleições presidenciais, quando o tema do aborto foi muito pautado pela imprensa. E a maioria delas apresentou uma perspectiva retrógrada negativa e conservadora do debate”
, afirmou Jacira Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, que coordenou este eixo da pesquisa em parceria com a ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância).

Uma mudança interessante revelada pelo estudo foi a presença de articulistas e colunistas na cobertura sobre mulher e eleições. Nos jornais nacionais pesquisados, o conteúdo opinativo representou 23% do total dos textos. O dado é considerado positivo, porque em geral o texto de opinião é analítico, mais aprofundado, exige contextualização e argumentos, o que fez com que o tema do aborto, por exemplo, tenha alcançado outra qualidade de tratamento no espaço opinativo.

A imprensa não cumpriu seu papel de investigar, interpelar, pedir dados

“No entanto, a mídia ficou devendo no debate público sobre as propostas de políticas para as mulheres. Percebemos o quanto a imprensa não cumpriu seu papel de investigar, interpelar, pedir dados. A maioria dos jornais não investiu em trabalho investigativo”, analisou Jacira Melo.

Para o cientista político Luis Felipe Miguel, professor do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília, as Eleições de 2010 também deixaram um saldo ambíguo neste debate. Se por um lado foi eleita uma mulher para presidente e outra se consolidou como liderança emergente, os setores que formam a linha de frente na oposição aos direitos das mulheres foram capazes de moldar a campanha eleitoral.

“A chantagem da Igreja mostrou força e houve aqueles que recuaram porque acharam que este era um preço possível de ser pago para viabilizar a vitória eleitoral; outros que viram nisso uma possibilidade de aumentar seus votos. Recuamos consideravelmente no debate sobre a separação entre Igreja e política, que é essencial para a democracia, e parece que estamos mais longe do que estávamos da conquista da legalização do aborto. Isso mostra que a participação política das mulheres não vai avançar se não avançar também a luta feminista”, acredita Luis Felipe Miguel.

“Antes de ser a eleição da primeira mulher na Presidência, é a primeira eleição que diz não à tortura e não à violência. Isso nos coloca num lugar de responsabilidade, que é o de fazer que o governo Dilma seja um governo em que as questões de gênero sejam bem trabalhadas”, acrescentou a socióloga Eleonora Menicucci de Oliveira, pró-reitora de extensão da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Invisibilidade e estereotipagem

A ausência de temas centrais da agenda das mulheres na cobertura de uma disputa eleitoral vencida por uma mulher impressiona, mas não é novidade. E tal fato está relacionado à própria imagem das mulheres na política reproduzida pela mídia. Uma pesquisa coordenada pelo professor Luis Felipe Miguel entre os anos de 2006 e 2007 mostrou que os homens são os personagens do noticiário político em 87% dos casos. Ou seja, 9 homens para cada mulher que aparece. Essas que são entrevistadas são, em grande maioria, mulheres comuns, que não exercem cargos na política.

“A presença das mulheres na política é pequena e concentrada em poucas figuras, o que aumenta a sensação de que é ‘a exceção da exceção’, reproduzindo um retrato de que a política é algo eminentemente masculino”, explica Luis Felipe Miguel. “Isso tem a ver com a separação entre as esferas pública e privada, com a carga desigual da responsabilidade da vida doméstica, com mecanismos próprios de exclusão no campo político e com papéis sociais atribuídos a homens e mulheres. Mas os meios reforçam e naturalizam essas percepções. De um lado, pela invisibilidade, e de outro pela estereotipagem da presença feminina na mídia. Há quem diga que a mídia é o espelho da sociedade, mas temos que entender que essas representações são muito ativas na reprodução desse cenário de desigualdades”, alerta.

Ou seja, os estereótipos de gênero permeiam as escolhas dos jornalistas quando enquadram as candidatas em suas coberturas, da mesma forma que permeiam a escolha das mulheres na política em termos de estratégias de campanha. E muitas vezes os estereótipos são escolhidos pelas próprias mulheres, porque, ou se adere a eles, ou se é invisibilizada totalmente. É fato que, no jornalismo da grande imprensa, não existe muito mais espaço para uma visão estereotipada tacanha, o que é resultado da pressão do movimento feminista ao longo de décadas. Mas a pesquisa de Luis Felipe Miguel mostra que a dicotomia entre homens e mulheres continua muito clara.

Permanece no registro dos estereótipos, por exemplo, uma visibilidade muito maior da vida privada das mulheres na política do que da dos homens. A situação familiar, doméstica, conjugal está presente de uma maneira muito central na cobertura das mulheres que ocupam cargos públicos. Uma comparação entre os perfis de ministros e ministras publicados nas revistas semanais mostrou que, no perfil dos homens, era dado destaque ao gosto por vinhos e pela leitura, enquanto que, no das mulheres, às informações sobre seus cônjuges, filhos e prendas domésticas. A tensão entre a carreira política e a gestão da vida doméstica é outro elemento presente para as mulheres que nunca aparece no caso dos homens.

“Isso passa uma visão de que a mulher na política está fora do seu lugar, que a mulher não pode ser pensada sem ser referenciada em seu lugar doméstico. Paradoxalmente, há uma ampla manifestação favorável dos jornalistas para a produção da igualdade entre os sexos. Mas isso é considerado uma questão dada e acaba se reproduzindo esse tipo de discurso na mídia”, afirmou Luis Felipe Miguel.

A valorização da aparência física – o corte de cabelo, o peso etc. – são outros elementos do sexismo sobrevivente na sociedade, reproduzido na mídia e favorecido por algo que, de certa forma, neutraliza os homens numa espécie de uniforme: o terno. Já as mulheres na política não têm como escapar para um lugar neutro e são sempre rotuladas pelo que vestem.

Pauta de ‘mulherzinha’

Da mesma forma, há os estereótipos em torno das expectativas sobre o comportamento das mulheres na política, para ocupar o nicho que lhes é permitido. As mulheres deputadas, por exemplo, tendem a priorizar sua atuação nas questões sociais, enquanto os homens buscam a economia e a infraestrutura. Esse nicho limita as possibilidades de ascensão da mulher na carreira política, pois estão associados a posições de menor destaque. Pela pesquisa, os políticos mais influentes de ambos os sexos são os que priorizam a economia e a infraestrutura. Ou seja, as mulheres ganham influência na medida em que se adaptam a este padrão. E a imprensa contribui com isso.

Para a jornalista Claudia Belfort, editora-chefe do Jornal da Tarde, de São Paulo, “os jornais estão focados na pauta política e econômica. As pautas sociais são pautas de ‘mulherzinha’. Mesmo que eu, na condição de editora-chefe, tenha a última palavra no jornal, a imprensa não vê a mulher como agente de transformação social”, acredita. “Um editor uma vez me disse: ‘Você não tem dificuldade de comandar o jornal porque pensa como homem. Você é direta, objetiva’. Para ele, esses são atributos masculinos. E para uma mulher chegar no comando há a idéia de que ela tem que se masculinizar. Isso reflete no modo como o homem vê a notícia. Não é proposital. É pior, é visceral. Precisamos educar a sociedade para mudar essa forma de pensamento”, afirmou a jornalista.

Na avaliação de Claudia Belfort, essa abordagem dos jornais vai ter que ser rediscutida inclusive por conta da pauta que a presidenta eleita Dilma Rousseff colocou como prioritária em seu governo: a eliminação da miséria. “Isso passa muito pelas mulheres, porque à medida que elas puderem entrar no mercado de trabalho, vão girar a economia. Essa pauta precisa estar nos jornais, não pode ser ignorada. Não podemos nos omitir de fazer essa cobrança”, declarou.

Portanto, ter uma mulher no centro da política pelos próximos quatro anos é de grande importância simbólica, mas há outros passos que precisam ser dados, alertaram as participantes do Seminário. “A presença de um operário na Presidência não revogou o caráter classista da política. E uma mulher por si só não vai revogar o caráter machista da política. É necessário que a presença da mulher na política seja vista sem o signo da anormalidade que carrega”, afirmou o pesquisador Luis Felipe Miguel.

E o Brasil parece ter um longo caminho pela frente neste sentido. Em outro levantamento, feito pelo Cfemea com as seis mil candidatas que disputaram cargos nas últimas eleições, apesar do aumento de mais de 50% no número de candidaturas, isso não se efetivou em assentos conquistados nos poderes Executivo e Legislativo.

“A capilaridade está avançando. Mas enquanto 10% das candidaturas masculinas foram indeferidas, o indeferimento entre as mulheres, por questões burocráticas, chegou a 20%. Por que esse viés masculino também na Justiça Eleitoral? Qual é a interface da mídia com esses outros atores do jogo político?”, questionou a cientista política Sonia Wright, professora da área de Gênero, Poder e Políticas Públicas do NEIM/UFBA. As mulheres certamente buscarão essas respostas, para transformar em definitivo este cenário e seu retrato nos meios de comunicação.

Seminário A Mulher e a Mídia 7
Mesa 2 – Monitoramento da Mídia: A cobertura e as candidaturas de mulheres
Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 2010
Exposições:
Jacira Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão – Comunicação e Mídia.
Luis Felipe Miguel, cientista político, professor do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília.
Claudia Belfort, jornalista, editora-chefe do Jornal da Tarde, de São Paulo.
Debatedora: Sonia Wright, professora da área de gênero, poder e políticas públicas do NEIM da Universidade Federal da Bahia.
Coordenadora: Eleonora Menicucci de Oliveira, socióloga pró-reitora de extensão da Universidade Federal de São Paulo.

* Bia Barbosa é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

** Formado por pesquisadoras/es que atuam na área de análise de gênero e política em universidades, centros acadêmicos e ONGs das diversas regiões do país, o Consórcio Bertha Lutz realiza pesquisa sobre a participação das mulheres no processo eleitoral de 2010. A pesquisa é estruturada em três eixos – Comportamento, percepções e tendências do eleitorado brasileiro; Monitoramento das campanhas e candidaturas; e Monitoramento da mídia jornalística – e conta com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres.

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