Como a indústria da fotografia determinou que o ‘normal’ é a pele branca, por Juliana Domingos de Lima

08 de abril, 2016

(Nexo, 08/04/2016) Lorna Roth, socióloga que explora a representação racial na imagem, diz que a tecnologia tem um papel na promoção da igualdade

Pessoas de diferentes tons de pele nem sempre conseguiram sair bem em fotos. E a razão disso é relacionada à própria fabricação de câmeras e materiais utilizados para revelar as fotos: a tecnologia fotográfica, feita por pessoas brancas e voltada para pessoas brancas, passou décadas sem se preocupar como os tons de pele mais escuros eram retratados.

A questão foi explorada pela socióloga canadense Lorna Roth, que investigou a história da fotografia para mostrar como a tecnologia prejudicou a representação de pessoas cujo tom de pele não fosse claro. Lorna detalhou a pesquisa na décima edição da Revista Zum, publicação especializada em fotografia do Instituto Moreira Salles, lançada no sábado (9).

“Isto aconteceu principalmente porque aquelas pessoas nos Estados Unidos que tinham dinheiro para investir na fotografia e tirar um monte de fotos tinham pele clara”, disse ela em entrevista ao Nexo.

Mulheres de pele clara eram a referência de cor

Os parâmetros utilizados nos laboratórios da Kodak para determinar calibragem das cores nas fotografias eram cartões que sempre exibiam uma mulher de pele cara (Foto: Reprodução/Eastman Kodak Company)

A história investigada por Lorna começa nos anos 1940. No tempo da fotografia analógica em cores, o processo químico da revelação transformava em imagem visível a imagem latente no filme. Na impressão, as cores e quantidade de luz precisavam ser ajustadas. O parâmetro utilizado nos laboratórios da Kodak para determinar a exposição, a densidade e a calibragem dos tons de pele das fotografias que seriam impressas tinha a ver com as diretrizes de um cartão referência que ficou conhecido como cartão Shirley.

As Shirleys eram mulheres de pele clara que correspondiam ao padrão de beleza eurocêntrico, vestiam roupas de cores contrastantes e muitas vezes eram acompanhadas da palavra “NORMAL”.

Pouco conhecidas pelo grande público por pertencerem ao universo técnico dos laboratórios, o padrão restrito das Shirleys tornava a diversidade de tons de pele um fator crítico na hora de reproduzir com precisão a aparência das pessoas. Syreeta McFadden, fotógrafa de origem afro-americana citada por Lorna, relatou a insatisfação sentida por ela e sua família ao se verem em fotos –  ela afirmava não conseguir ver o próprio rosto, nem se reconhecer na imagem.

Quando pessoas de diferentes tons de pele eram colocadas lado a lado, este era o resultado:

No mesmo quadro, os traços de pessoas de pele mais escura eram indiscerníveis e as pessoas de pele clara ficavam superexpostas (Foto: Olivier le Brun/Cortesia)

A fotografia era incapaz de captar as nuances. Sem se dar conta de possíveis falhas na tecnologia, os fotografados eram levados a crer que o problema estava no seu tom de pele. Os resultados impactaram negativamente durante décadas a autoestima das pessoas e a relação com sua autoimagem, diz Lorna.

Isso acontecia não só por conta das modelos das quais derivava o padrão de balanço de cor da Kodak, mas porque as emulsões fotográficas – substância sensível à luz usada para revelar fotografias –  da empresa de fato favoreciam peles mais claras. Quanto mais branco alguém fosse, melhor o filme colorido captaria os detalhes da sua aparência e seu tom de pele real.

Os fotógrafos profissionais eram obrigados a se munir de estratégias para compensar o déficit tecnológico, como posicionar bem os retratados em relação à luz. De sua parte, os técnicos de laboratório muitas vezes precisavam descobrir à base de tentativa e erro como calibrar as cores de uma fotografia que apresentasse a diversidade de tons de pele do mundo real. A fotografia caseira e amadora, feita com câmeras, filmes e impressões baratas, no entanto, inegavelmente seria mais fiel ao tom de pele do retratado se ele fosse branco.

Por que a indústria demorou décadas para mudar

Na passagem para a imagem digital, os cartões de referência tornaram-se mais inclusivos e assistiu-se à emergência de Shirleys multiculturais. Elas se fizeram necessárias também à medida que a indústria conquistou outros mercados globais. Mas o processo de admitir a lacuna tecnológica responsável por não representar satisfatoriamente a diversidade racial levou décadas para acontecer.

Entre 1960 e 70, a melhoria na quantidade de nuances de marrom não veio por reivindicação racial – aconteceu principalmente em função de exigências de marcas, como o caso de uma fabricante de chocolate que não conseguia diferenciar seus produtos nos anúncios já que os tons dos diferentes tipos do produto eram indistintos na imagem.

“O movimento pelos direitos civis protestou contra a Kodak, mas claro que não era prioridade”, diz Lorna. Na luta por direitos fundamentais e o fim da segregação, a questão se diluiu. Foi só a partir da conquista dessas pautas que a reivindicação se fez possível.

Nos anos 1990, 50 anos após a instituição dos cartões de calibragem de cor dominados por mulheres de aparência caucasiana, começou um movimento discreto por parte da indústria no sentido de reconhecer que refinamentos técnicos nos equipamentos produziriam resultados satisfatórios para uma gama mais ampla de tons de pele.

Para Lorna, a demora da indústria em assumir a falha em representar a diversidade se deve, em parte, à crença de que a ciência e a tecnologia são imparciais. Por muito tempo, cientistas de orientação positivista defenderam a neutralidade da ciência, uma ideologia que foi dominante pelo mundo todo na época em que as decisões técnicas por trás das regulagens de aparelhos fotográficos prejudicavam visivelmente a imagem de pessoas de pele mais escura. “Se pessoas negras tivessem inventado a fotografia, a dinâmica de variação de cores teria sido diferente desde o início”, diz a pesquisadora.

A promoção da igualdade deve acontecer no próprio desenvolvimento

A pesquisa da socióloga mostra que a representatividade racial nos meios visuais vai além de quantas pessoas de origens étnicas diversas podem ser contadas na TV ou no cinema. “Eu procuro pelo que não está na tela”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, o padrão de beleza que privilegia a pele clara não mudou e isto é sensível pelo fato de os produtos de clareamento de pele serem um dos braços mais lucrativos da indústria de cosméticos em algumas partes do mundo.

Lorna acredita que, além de promover a igualdade através da legislação e políticas afirmativas, é preciso que ela esteja expressa dentro da tecnologia, nas decisões técnicas que implicam na elaboração dos algoritmos hoje responsáveis pela imagem digital.

Assim, a nova norma torna-se a amplitude necessária para captar todos os tons de pele e a igualdade é construída diretamente na forma de pensar, reparando o dano psicológico sofrido ao não se ver devidamente representado em uma imagem.

A descolonização e mesmo a imigração foram fatores importantes para a incorporação das gradações de tons de pele na tecnologia. Para ela, a imposição estética da pele clara é um “legado sutil da noção colonial de beleza”. “Isso não é falado, é visual. Beleza, poder e privilégio tinham a ver com ter pele branca”.

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