Cultura do estupro é o apogeu da (falida) dominação masculina, por Silvana de Souza Nascimento

03 de junho, 2016

(Jornal da USP, 03/06/2016) Desde a figura bíblica de Eva, que mordeu a maçã, ofereceu-a ao marido Adão e passou a ter vergonha da sua própria nudez, a imagem das mulheres, em contextos de colonização cristã, esteve associada ao pecado e à quebra das regras determinadas por “Deus”, que lhe prescreveu uma pena: “sofrerás muito por causa de teus filhos e ficarás debaixo da autoridade do marido”.

Por trás dessa origem mítica, encontram-se alguns elementos-chave para tentarmos compreender a cultura do estupro: a associação (infeliz e misógina) das mulheres à perversão e ao vício, de um lado, e à sujeição aos homens, de outro.

Por serem “naturalmente” pecadoras – representação que muitas vezes se traduz em palavras como “vadias” ou “vagabundas” – são vistas como aquelas que provocam luxúrias e, por isso, podem incitar nos homens atos “descontrolados” já que, estes, por “natureza”, são mais fracos às “tentações da carne”.

Por esta ótica cega, o corpo das mulheres potencializaria a virilidade masculina que, na cultura do estupro, se concretiza, num ato brutal. Brutalidade que acarreta inúmeros traumas para as vítimas, físicos e emocionais. Provoca um sofrimento indizível e intraduzível.

Este sofrimento – “não dói meu útero, dói minha alma” – ficou escancarado nas redes sociais e nas mais diferentes mídias pelos últimos episódios de estupros coletivos, ocorridos no Rio de Janeiro e no Piauí. Trouxe à tona uma profusão de reportagens, textos e vídeos sobre a chamada cultura do estupro.

Na quarta-feira, na capital carioca e em São Paulo, milhares de mulheres, grande parte jovens, foram às ruas protestar pelo fim da cultura do estupro e mostrar que a violência contra as mulheres – sendo uma das mais graves a violência sexual – atinge todas as mulheres, de todas as classes, raças, etnias, identidades de gênero, orientações sexuais, regiões, profissões e escolaridades.

Por todas as mulheres, ruas de grandes capitais foram ocupadas por corpos e vozes femininas, com os peitos à mostra, rostos pintados, crianças de colo, e cartazes com os mais variados dizeres, “meu corpo, minhas regras”, “ser mulher sem temer”, “a culpa nunca é da vítima”, “nenhuma mulher merece ser estuprada”.

O que está por trás de cada palavra de ordem não é simplesmente a denúncia de um crime hediondo, é um chamado pela liberdade, pelo direito das mulheres ao próprio corpo e à sua própria vida.

Uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos. O país está entre os dez primeiros países no ranking mundial de feminicídio. Segundo dados do Mapa da Violência 2015 (dados da FLACSO), foram registrados 5.762 mortes de mulheres, o que significa 13 homicídios por dia.

Entre um café e outro que tomamos nos intervalos das aulas na universidade, uma mulher é brutalmente violentada, tendo seu corpo invadido pela ação predatória de um ou vários homens.

Este é um problema social e político que atinge a sociedade e as universidades não estão fora disso. No Brasil, uma em cada três jovens sofreram violência em relacionamentos afetivos (dados do Instituto Avon/Data Popular/2014). Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que 30% das alunas tenham sido vítimas de algum tipo de abuso sexual durante a graduação.

Na Universidade de São Paulo, nos últimos anos, houve diferentes casos de estupro, desde casos planejados de dopar a vítima e violá-la por grupo de rapazes até violências sexuais no âmbito de pessoas próximas a vítima (um namorado, marido, colega, etc.).

Grande parte dos casos foram registrados como denúncias (no âmbito da universidade e na justiça). Contudo, é necessário um grande esforço por parte de todas as instâncias universitárias para, em primeiro lugar, acolher as vítimas e encaminhá-las aos órgãos competentes com todo o cuidado e respeito.

Não basta localizar o agressor e encaminhá-lo para a delegacia, por exemplo. É preciso garantir às estudantes que elas possam viver em segurança e tranquilidade nas salas de aula, nas bibliotecas, na residência estudantil, nos restaurantes universitários, nas ruas dos campi.

Muitas vezes, as vítimas, por medo, por falta de apoio institucional e pela presença constante dos agressores nos espaços da universidade (porque infelizmente os caminhos da justiça são injustos), abandonam seus cursos e sofrem processos depressivos que necessitam de atenção médica e psicossocial.

A culpa nunca é das mulheres e sim dos estupradores. Estes seres são legitimados por diferentes instâncias – da educação à segurança pública – que negam um processo histórico de desigualdade de gênero que atribui às mulheres a posição de objeto passivo, de não poder ter direito ao seu próprio corpo (que é um direito humano fundamental).

O corpo é o primeiro instrumento de cidadania de qualquer pessoa, é um direito inviolável, e, com seu próprio corpo e suas próprias regras, mulheres de todo mundo resistem.

À medida que os movimentos feministas se fortalecem, enfraquecem-se, pouco a pouco, os poderes da masculinidade hegemônica. Colocar em dúvida a primazia do “macho alfa” e, por exemplo, dizer simplesmente “NÃO” a suas propostas indecorosas, representa uma afronta à sua honra ferida, sentimento que pode desencadear reações muito agressivas, amparadas por coletividades masculinas.

Estes últimos episódios que tiveram destaque na mídia mostram estupros coletivos que desumanizaram as vítimas, tornando-as apenas um corpo maldito, violado, mutilado que não pertence mais à mulher.

Felizmente, muitas mulheres abandonaram há muito tempo o Paraíso e embrenharam-se na vida real que não se resume a serpentes, deuses, maçãs e maridos. Mesmo que, no contexto político atual, tenha ocorrido uma reação contrária às conquistas das mulheres desde os anos 1960, cresce o número de mulheres chefes de família, aumenta o número de mulheres em postos de direção e em candidaturas a eleições para cargos políticos.

As novas gerações, com suas ousadias revolucionárias, não se sujeitam a ter suas vozes caladas nem a ter seus corpos alvo de ações machistas. Por isso, a cada vez que uma mulher é violentada, todas o são. O retrocesso violento produz uma resistência em rede que não se cala. A luta feminista é por todas nós, com nossos corpos e nossas regras.

Silvana de Souza Nascimento é professora de Antropologia na USP e integrante da Rede Não Cala

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