Fim da cultura do estupro requer mais do que leis, por Tereza Exner

21 de junho, 2016

(ConJur, 21/06/2016) O recente caso da jovem estuprada por dezenas de homens no Rio de Janeiro provocou justa indignação na sociedade, ganhando ampla repercussão na imprensa.

Na esteira desse repugnante evento que teve lugar na cidade do Rio de Janeiro, mas que ocorre por todo o Brasil, apontou-se a existência de uma “cultura do estupro” em nosso país, expressão considerada “excessiva” ou “inadequada” em certos círculos de debates.

Mas afinal, o que se entende por “cultura do estupro”? Podemos afirmar que ela se acha presente em nossa sociedade? Sem pretensão de esgotar o tema, entendo oportunas algumas considerações.

Segundo a ONU Brasil[1]

“‘Cultura do estupro’ é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens. Ou seja: quando, em uma sociedade, a violência sexual é normalizada por meio da culpabilização da vítima, isso significa que existe uma cultura do estupro. ‘Mas ela estava de saia curta’, ‘mas ela estava indo para uma festa’, ‘mas ela não deveria andar sozinha à noite’, ‘mas ela estava pedindo’, ‘mas ela estava provocando’ — estes são alguns exemplos de argumentos comumente usados na cultura do estupro.”

Ou seja, a expressão “cultura do estupro” guarda relação com a existência de um juízo moral consolidado ao longo dos tempos, configurador de uma “ideologia patriarcal” avalizadora da “cultura do machismo” ainda presente em nossa sociedade, e que coloca a mulher como propriedade e objeto de um desejo do homem, sendo que tal concepção distorcida da representação do feminino acaba por legitimar, de forma evidentemente indevida, o uso da violência física ou moral, para a satisfação dos instintos sexuais masculinos. A grande questão aqui é a maneira diversa como se considera a validade do consentimento quando externado por homens e mulheres. E subjacente a tal questão possível identificar um traço ancestral de dependência das mulheres em relação aos homens, com implicações na autonomia feminina para consentir. É como se um “não” feminino equivalesse a um “sim”. Ou, talvez, a um nada. Note-se que até o ano de 2009 o delito de estupro era considerado crime contra os costumes, como se a agressão à mulher atingisse, mais do que a ela mesma, à integridade moral de seu pai ou marido.

Ora, essa concepção disfuncional acerca do papel e do valor da condição feminina na sociedade impacta diretamente sobre a questão de gênero, sendo uma de suas expressões a inadequada divisão das mulheres entre “mães” (aquelas que são dignas e devem ser respeitadas) e as “outras” (as decaídas).

A dita “cultura do estupro”, portanto, decorre, em nosso entender, da relação histórico-cultural assimétrica entre homens e mulheres, com extensão nas questões de raça e condição social, assimetria existente não só no campo do comportamento sexual, mas também no âmbito das relações de trabalho e das relações domésticas.

De se apontar, nesse passo, a título de exemplo, que estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 2009[2] afirma que as diferenças salariais relacionadas a gênero e à etnia continuam sendo significativas em 18 países latino-americanos avaliados, constatando-se que o Brasil apresenta um dos maiores níveis de disparidade salarial. No nosso país, os homens recebem salários 30% maiores que as mulheres de mesma idade e nível de instrução, quase o dobro da média da região pesquisada (17,2%).

E o que dizer, então, da chaga da violência doméstica, que aterroriza e mutila tantas mulheres? Segundo dados do Ligue 180, no ano de 2015 houve 179 relatos de violência contra mulheres por dia[3].

O estupro, por sua vez, é crime que, conforme estatísticas recolhidas pela organização não-governamental Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), vitima uma mulher a cada 11 minutos em nosso País.

Segundo dados publicados no 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 20154

“Estudos de diferentes países demonstram que o crime de estupro é aquele que apresenta a maior subnotificação e, como consequência, é muito difícil afirmar que há uma redução do fenômeno no Brasil. Para se ter uma ideia do que isso significa, o U.S. Department of Justice produziu estudo que verificou que, em 2010, apenas 35% das vítimas nos EUA reportaram o crime à polícia. Já o Instituto de Criminologia Australiano divulgou no “The Women’s Safety Survey” que 15% das vítimas de violência sexual australianas reportaram o incidente à polícia no período de 12 meses anterior à pesquisa. A Pesquisa Nacional de Vitimização (2013) verificou que, no Brasil, somente 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia. A mais recente pesquisa do gênero, “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, produzida pelo IPEA, fala em 10% de casos notificados e estima que, no mínimo, 527 mil pessoas sejam estupradas por ano no país. Os dados apresentados pelas diferentes pesquisas evidenciam os limites dos registros criminais de estupro e o imenso desafio à prevenção e combate à violência sexual no Brasil. Se apenas os registros policiais apontam que ano passado uma pessoa foi estuprada a cada 11 minutos, é possível imaginarmos — pelos dados da saúde — que temos 1 vítima por minuto deste bárbaro crime”.

A leitura de tais dados estatísticos indica que tamanha diversidade de tratamento entre homens e mulheres, decorrente da simples questão de gênero e em campos tão diversos, se dá em razão da relação de subordinação feminina construída ao longo da nossa história, nas relações hierárquicas de gênero.

É chegada, pois, a hora de repensarmos os valores éticos e culturais vigentes, de forma a reconstruí-los, tipificando de forma clara e expressa que o tratamento discriminatório e abusivo contra as mulheres é conduta não recomendada ao grupo social.

Claro, ainda, como argumentam muitos, e com razão, que a “cultura do estupro” acha-se inserida em um contexto maior de uma “cultura de violência” que assola a sociedade como um todo e que, nesse aspecto, atinge indistintamente homens e mulheres.

Sucede que, ao contrário de demais delitos, como roubos, furtos, homicídios, por exemplo, em que as motivações que levam o infrator a delinquir são de ordens das mais diversas (cobiça, necessidade de dinheiro, guerra de gangues, etc..), no caso do estupro, quer seja o praticado contra mulheres, quer seja o praticado contra os homens — estes últimos em proporção bastante pequena — o elemento motivador do ilícito é tão somente a vazão primitiva e não adequadamente contida do instinto sexual violento do agressor.

E embora a autoria do crime de estupro, a teor do que dispõe o artigo 213, do Código Penal, possa ser atribuída a homens e mulheres, o certo é que a maciça maioria desse delito é perpetrada por homens, tendo como vítimas as mulheres.

Nesse sentido estudo do IPEA[5] apontando que

“Em relação ao total das notificações ocorridas em 2011, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, mais da metade tinha menos de 13 anos de idade, 46% não possuía o ensino fundamental completo (entre as vítimas com escolaridade conhecida, esse índice sobe para 67%), 51% dos indivíduos eram de cor preta ou parda e apenas 12% eram ou haviam sido casados anteriormente. Por fim, mais de 70% dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes.” Mais adiante se consigna que “No geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares”.

Possível afirmar, então, que o crime de estupro tem como seu principal elemento motivador a questão de gênero, com o homem utilizando-se de violência decorrente do emprego de força física e/ou grave ameaça para abusar da mulher, de forma a satisfazer sua lascívia.

De se explicitar que[6]

“Violência vem do latim violentia, que remete a vis (força, vigor, emprego de força física ou os recursos do corpo em exercer a sua força vital). Esta força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento, percepção esta que varia cultural e historicamente”.

E no que diz respeito a essa evolução cultural e histórica relativa às questões de gênero, de se ver que nossa sociedade vem avançando lentamente, tendo sido dado o primeiro grande passo no âmbito jurídico com a promulgação da Lei Maria da Penha que entrou em vigor em 22 de setembro de 2006, e criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, na esteira do que já dispunha o artigo 226, parágrafo 8º, de nossa Carta Magna.

Nesse aspecto não se pode deixar de considerar a profunda inovação que a Constituição de 1988 introduziu no conceito e na formatação da entidade familiar, adotando um “… modelo democrático de família, em que não há discriminação entre os cônjuges ou entre os filhos, nem direitos sem responsabilidades, ou autoridades sem democracia”[7].

Como se vê, o avanço na concepção da unidade familiar, vista a partir de agora como um importante núcleo de desenvolvimento das personalidades e potencialidades de seus integrantes, com reflexos diretos na questão de gênero, teve início com a Constituição de 1988, ganhando especial reforço com a Lei Maria da Penha, lembrando-se, ainda, da recente lei que alterou o Código Penal e reconheceu o denominado feminicídio (Lei 13.104/15), para incluir o crime de assassinato de mulher por razões de gênero entre os tipos de homicídio qualificado, dentre outas tantas iniciativas.

A esse respeito, de interesse lembrar, por exemplo, que há poucos anos, até praticamente os anos 80, a tese da legítima defesa da honra (nos casos das mulheres assassinadas por seus maridos, namorados e/ou companheiros) era defendida por ilustres juristas e acolhida com muita tranquilidade pelo Tribunal do Júri.

Pois bem, essas inovações culturais e legislativas vêm lentamente alterando o papel e o significado do feminino na sociedade. E se a noção de gênero, daquilo que se espera dos comportamentos do homem e da mulher em um dado contexto civilizatório, é uma construção social, força convir que esse conceito, essa cultura comportamental, de conduta, pode, pois, ser reconstruída.

Vale dizer, até aqui vem prevalecendo códigos e padrões construídos ao longo de um processo de desenvolvimento social que de certa forma amparam e legitimam a violência sexual perpetrada pelos homens contra as mulheres, códigos e padrões que não podem mais ser aceitos e que devemos todos nos empenhar para alterá-los.

Relevante anotar que pouco tempo atrás entrou na agenda política a discussão acerca da necessidade de se rever a autorização da permissão legal do aborto às mulheres vítimas de estupro, já prevista no Código Penal de 1940. Também há projeto de lei (PL 5069/13) buscando dificultar o acesso à mulher vítima desse crime aos recursos médicos e de apoio psicológico, com vistas a minimizar os agravos decorrentes de tão odiosa prática, práticas que resguardando o direito à intimidade, objetivam dar tratamento respeitoso e digno à ofendida. Aqui mais uma vez a demonstração de um tratamento assimétrico dado à mulher, reduzindo sua importância a de mera reprodutora biológica, e que sendo vítima de estupro deveria, pois, ser obrigada a levar adiante longos nove meses de gravidez, nada importando os reflexos dessa penosa e constrangedora situação perante seus familiares, sobretudo namorado, companheiro, marido, filhos, perante seus amigos e colegas de trabalho. De acordo com os defensores de tais ideias, mais importante do que a própria mulher é o fruto concebido a partir da mais degradante violência que um ser humano pode sofrer.

Entendo, pois, que o que deve nos impactar, nos chocar, nos indignar, não é o uso da expressão “cultura do estupro”, mas sim as práticas abusivas envolvendo questões de gênero, e que no campo da sexualidade ficam bem visíveis quando ao invés de se buscar a responsabilização daqueles que praticam atos bárbaros de violência sexual, e que chegam ao cúmulo de expor tais atrocidades em redes sociais, vangloriando-se, portanto, dos hediondos feitos, busca-se perscrutar os valores e o comportamento da pessoa abusada.

E embora não se questione a necessidade de uma rigorosa apuração desses crimes e a severa punição daqueles identificados como culpados, força convir que a mítica do rigor legal não bastará para a superação desse tipo de violência.

Urge, portanto, abrirem-se espaços de discussão sobre as relações de gênero nas esferas públicas e privadas, notadamente nas escolas, dentro dos grupamentos familiares e sociais, de forma a que se institucionalize uma cultura de respeito e solidariedade entre homens e mulheres, o que seguramente irá repercutir no processo de pacificação social.


1 trecho extraído do artigo “Por que falamos de cultura do estupro?”, publicado em 31 de maio de 2016, no site “nacoesunidas.org

4 trecho extraído do texto “A Índia é aqui”, de Samira Bueno, Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública- FBSP, matéria que integra o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015, Coordenação Geral de Renato Sérgio de Lima e de Samira Bueno, informes obtidos no sitewww.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica

5 Nota Técnica – 2014 – março – Número 11 – Diest, Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar), de Daniel Cerqueira e Danilo de Santa Cruz Coelho, dados obtidos no “site”www.ipea.gov.br

6 (Um debate disperso: Violência e Crime no Brasil da redemocratização, Alba Zaluar, “in” Violência e Mal-Estar na Sociedade, São Paulo em Perspectiva, volume 13, no. 3, jul-set 1999, revista da Fundação Seade,www.seade.gov.br)

7 Bodin de Moraes, Maria Celina; Brochado Teixeira, Ana Carolina. Comentários ao art. 226 e parágrafos, “in” Canotilho, J. J. Gomes; Mendes, Gilmar F.; Sarlet, Ingo W.; Streck, Lenio L. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva/Almedina, 2013, pág.2117

Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner é procuradora de Justiça Criminal no MP-SP.

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