“O governo brasileiro é negligente com o zika”

31 de agosto, 2016

Em novo livro, a antropóloga e professora de direito Debora Diniz revela a lentidão do governo para agir antes de o zika se transformar numa epidemia global

(Época, 30/08/2016 – Acesse no site de origem)

Um ano antes de a epidemia provocada pelo zika entrar para o noticiário mundial, em 2014, um time de médicos do sertão – formado por infectologistas, pediatras e obstetras – discutia no grupo de WhatsApp Chickv, a Missão (redução de Chikungunya, uma doença provocada por vírus e transmitida pelo mosquito da dengue) sintomas incomuns encontrados em moradores do Nordeste. As queixas dos pacientes incluíam coceira no corpo, febre baixa e vermelhidão, um quadro que não se encaixava em nenhuma doença conhecida. “Na minha cabeça, só podia ser zika”, disse o infectologista Kleber Luz em entrevista para o recém-lançado Zika, do sertão nordestino à ameaça global (Editora Civilização Brasileira), escrito pela antropóloga e professora de bioética Debora Diniz.

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A coleta de sangue começou em janeiro de 2015, mas as amostras enviadas para laboratórios brasileiros voltavam sem diagnóstico. Em abril, o vírus foi identificado. Em 21 de maio, o Ministério da Saúde (MS) validou a descoberta. A primeira geração de gestantes cujo cérebro dos fetos não se desenvolveu como esperado, num drama conhecido inicialmente como microcefalia, é de agosto de 2015. Em novembro, a obstetra Adriana Melo anunciou ter encontrado o vírus zika no líquido amniótico de dois fetos. Doze dias depois, o MS assumiu o protagonismo na descoberta – sem mencionar Adriana. “Se por um lado o Ministério da Saúde mostrou-se cauteloso para checar o que estava acontecendo e refazer os testes, por outro mostrou como é difícil ouvir o barulho do sertão.” E continua: “O zika mostrou que médicos sertanejos de leito, anônimos atentos ao adoecimento de uma multidão, descobriram que um novo vírus circulava no país.” Leia a íntegra da entrevista com Debora, infectada por zika durante a produção do livro.

ÉPOCA – Em seu novo livro, a senhora é dura com o trato do governo brasileiro à epidemia do zika, mas a avaliação da Organização Mundial da Saúde sobre a atuação do Brasil é positiva. Em que se baseiam as críticas?

Debora Diniz – O governo brasileiro é negligente. O causador da epidemia é um mosquito que o governo não combate há pelo 40 anos, o Aedes aegypti. Não se trata de uma luta perdida, mas de uma batalha na qual o Brasil nunca entrou. A segunda é falta de apoio às famílias cujos filhos nasceram com a síndrome congênita do zika [conjunto de sintomas comuns aos bebês, incluindo a microcefalia]. Não houve, por exemplo, alteração no benefício de proteção continuada, em que famílias com renda per capita de até R$ 220 podem receber um salário mínimo. Na prática, significa que apenas famílias extremamente vulneráveis, formadas por no mínimo quatro pessoas, têm direito a esse benefício. Com esse dinheiro a família precisa comprar fraldas, remédios, óculos de grau [as crianças têm problema de visão], comida, transporte e etc. O dinheiro não vai para a criança, que nasceu com múltiplas necessidades, mas para a família sobreviver. Além disso, o governo prevê apenas três anos de acompanhamento para as crianças com a síndrome, como se depois desse período elas milagrosamente deixassem de precisar dos tratamentos. Por essas e outras questões, um casal da Paraíba, cuja filha nasceu com a síndrome, entrou com a primeira ação jurídica no Brasil por danos morais.

ÉPOCA – O que sua investigação pelo sertão tem mostrado?
Debora – Nenhuma mãe voltou a trabalhar. Uma recente lei do presidente interino, Michel Temer (PMDB), fixou que o auxílio materno só deve ser recebido depois do fim da licença-maternidade. O que este governo parece desconhecer é que essas mulheres sabem que não voltarão ao trabalho já na licença, porque é isso o que acontece com as mães de crianças com múltiplas necessidades. Imagine que essa mulher sabe que não retornará ao trabalho, o que vai gerar um impacto financeiro importante na renda da casa, e que ela precisa esperar terminar a licença para, então, entrar com o pedido para receber o benefício – não há garantia se vai ou não acontecer. Quem vai ajudar essa família enquanto o dinheiro não chega? E se o dinheiro não chegar?

ÉPOCA – Uma das bandeiras do governo brasileiro é a eficiência dos centros de referência, as unidades de tratamentos múltiplos nas capitais. A senhora visitou os do Nordeste. Qual é sua avaliação?
Debora – Os centros não comportavam nem as crianças que já eram atendidas, e agora têm essa nova demanda. Para as mães do interior chegar aos centros, não raro, precisam do veículo da prefeitura, que não está disponível apenas para elas. A realidade das mães do sertão é levar de duas a três horas para chegar a um centro, fazer o atendimento de até uma hora e, então, levar o mesmo período para voltar para casa. Alguns exames elas não conseguem liberação para fazer. A lista de medicamentos que não chega ao posto de saúde é gigantesca. A criança que precisa de duas ou três sessões de fisioterapia faz uma. As 150 mães da Paraíba, carentes de atendimento psicológico, por exemplo, contam com uma psicóloga. Essa é a realidade dos centros de referência.

ÉPOCA – A senhora revela, no livro, a história da primeira mãe, a italiana Sofia Tezza, a questionar a ligação entre o zika e a microcefalia. Qual é a importância da dúvida dessa mulher?
Debora – Sofia era casada com um brasileiro, separou-se aos seis meses de gestação e voltou para a Europa. Lá, soube que o desenvolvimento cerebral do feto estava aquém do esperado. Por e-mail, Sofia conversou com um médico brasileiro e fez a pergunta central: um arbovírus, no caso o zika, pode ultrapassar a placenta? Esse e-mail ficou guardado numa caixa postal por muito tempo. Meses depois, quando muitos fetos foram diagnosticados com comprimento cefálico anormal, a obstetra Adriana Melo, do interior da Paraíba, fez o mesmo questionamento. Primeiro perguntou como é que, até aquele momento, não avaliaram os fetos. Então, com aval das pacientes e dos respectivos maridos, colheu o líquido amniótico das placentas e testou ambos para o zika. Com os resultados em mãos, sentiu medo de que desacreditassem numa médica do interior da Paraíba e foi à imprensa divulgar os resultados positivos. O que esse processo mostra? Que as pacientes perderam o medo de confrontar os médicos, e que isso pode ajudar a produzir conhecimento.

ÉPOCA – Qual é o impacto do zika na vida de uma mulher em idade reprodutiva?
Debora – É algo imensurável. Até agora a ciência não pode dizer se o bebê de uma mulher que teve zika antes de engravidar terá problemas, e as mulheres estão em pânico. Também não se sabe por que a epidemia avançou com tanta velocidade no nordeste, inclusive em regiões menos favorecidas economicamente. O zika, aliás, expõe essa outra fragilidade, a geografia econômica da epidemia. O pai do paciente zero, que menciono no livro, pediu que nem o nome dos filhos (são gêmeos, e um tem a síndrome congênita do zika) nem o da mulher fossem divulgados. Ele me disse que o filho dele não é o paciente zero, uma vez que os casos antes do filho dele podem não ter sido notificados. Por quê? Porque ele é um paciente da rede privada. Já os pais do sertão abrem suas casa e suas vidas para o mundo.

ÉPOCA – Semanalmente, o Ministério da Saúde notifica os casos suspeitos de Zika. Menos de um quinto recebeu diagnóstico da síndrome congênita do zika. Significa que os já liberados não terão problemas?
Debora – Não. As publicações mais recentes mostram que os critérios adotados pelo Ministério da Saúde na seleção são frágeis. As caravanas que percorrem o sertão estão mostrando isso também. Todos os bebês deveriam fazer exames de imagens para acompanhar o desenvolvimento cerebral. Estamos falando de mais de 8 mil crianças. Para esses pais, é uma angústia terrível de como a vida será.

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