É hora de falar sobre aborto (com disposição para o dissenso), por Manoela Miklos

03 de dezembro, 2016

Dialogar de maneira franca e democrática sobre nosso futuro não tem sido nossa especialidade neste país. Dialogar de maneira franca e democrática sobre as mulheres, seus corpos e suas liberdades interditadas nunca foi

(Nexo, 03/12/2016 – acesse no site de origem)

As mulheres abortam. As mulheres interrompem gravidezes por incontáveis – porque são muitas e porque são muitas vezes indizíveis – razões a todo momento, em todos os lugares. Mulheres de todos os grupos socioeconômicos, em todos os cantos deste país abortam. Olhe, ao seu lado há agora mulheres que abortaram. Não ignoremos a realidade, porque debater o mundo que queremos implica em reconhecer aquele que temos.

Leia mais:
Aborto: a cada minuto uma mulher faz um aborto no Brasil, por Debora Diniz (CartaCapital, 05/12/2016)
Criminalizar o aborto não salva vidas, mas mata mulheres, por Vanessa Dios (HuffPost Brasil, 01/12/2016)

Eu abortei em segurança num bairro nobre de São Paulo. Fiz uma escolha. Resultado de uma ponderação serena, dividida com aqueles que me amavam. Um gesto nada trivial, recheado de incerteza e medos, mas um gesto meu. E dos meus. Minha comunidade me auxiliou, minha saúde estava atendida, afetos foram reafirmados diante dos tabus e nós seguimos.

Paguei em dinheiro, muito. Mas não paguei com a vida. Não sofri com as sequelas de um procedimento clandestino malfeito. Uma história que não representa a de tantas brasileiras. Para cada história privilegiada como a minha, de reflexão e tomada de decisão rodeada de afeto e com a saúde assegurada, meninas morrem com agulhas de tricô entre as pernas e médicos são presos ao oferecer a elas qualquer alternativa segura. Redes de mulheres são perseguidas por apoiar companheiras nesses momentos delicados.

“O PODER JUDICIÁRIO TEM SE AFIRMADO NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS COMO PODER CONTRAMAJORITÁRIO QUE GARANTE ÀS MINORIAS POLÍTICAS OS DIREITOS FUNDAMENTAIS QUE O LEGISLATIVO OU O EXECUTIVO NÃO CONSEGUEM GARANTIR”

O aborto já é escolha ponderada para as que têm recursos. Mas mutila e mata mulheres pobres. E segue sendo praticado em absolutamente todos os contextos. O IBGE  (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estima que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto. A OMS (Organização Mundial de Saúde) fala em cerca de 1 milhão de abortos por ano. O aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil. Somos muitas.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, composta pelos ministros Luiz Fux, Marco Aurélio, Rosa Weber, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, decidiu na semana passada, por maioria, que a aplicação do crime de aborto para interrupção voluntária da gravidez nos três primeiros meses de gestação é inconstitucional. Baseada num voto histórico e de leitura imprescindível do ministro Barroso, que considera inconstitucionais os artigos 124 a 126 do Código Penal se aplicados à interrupção da gravidez antes dos três meses iniciais, a decisão é um vagalume na escuridão. Converte privilégios em direitos. E marca um passo adiante na luta contra a desigualdade travada democraticamente.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), imediatamente após a decisão, veio a público dizer que não caberia ao Supremo legislar sobre esse tema dessa maneira, mas ao parlamento. Maia anunciou a criação de uma Comissão Especial para rever o tratamento legislativo conferido ao aborto.

“DEMOCRACIAS QUE SE PREZAM CAMINHAM RUMO À DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO EM TODO O MUNDO – APESAR DA PRESSÃO CONSERVADORA POR RETROCESSOS”

Duas questões parecem relevantes diante da decisão da Primeira Turma do STF e do anúncio de Maia. A primeira questão diz respeito ao que cabe ao Estado definir sobre o começo da vida. Trata-se de um debate delicado e as perspectivas são muitas. Há infinitos outros lados. Todos potencialmente legítimos. A segunda, se refere à que parte do Estado tem competência para legislar sobre o tema.

O poder Judiciário tem se afirmado nas democracias contemporâneas como poder contramajoritário, ou seja, o poder que garante às minorias políticas os direitos fundamentais que o Legislativo ou o Executivo, por meio de seus processos deliberativos, não conseguem garantir. E democracias que se prezam caminham rumo à descriminalização do aborto em todo o mundo – apesar da pressão conservadora por retrocessos. Os progressistas comprometidos com a justiça, a igualdade, os direitos e as liberdades, bem como com os ritos democráticos e as instituições, parecem ter uma tarefa clara agora ao lado do movimento feminista. Contra o rebote, pela vida das mulheres. Mas não há de ser uma tarefa fácil. E precisa ser encarada com temperança.

Esse debate é central, desafia os limites dos nossos repertórios, provoca nossas certezas e nos pede que falemos sobre ética, política, religião, sexualidade. Nos exige que transcendamos nossos preconceitos, olhemos para a sociedade machista, racista e classista que nos atravessa e que construímos e entendamos se vamos naturalizar e reificar essa realidade ou transformá-la.

Há algo de muito contemporâneo e há algo de milenar nesse chamado ao debate. Lugares de fala e categorias universais se chocam quando falamos assim, sobre nós, e esse é o desafio do nosso tempo. Lidar com esse choque sem admitir inflexão, nenhum direito a menos e muitos a mais. Mulheres sub-representadas, vítimas de violência física e simbólica e com direitos negados ou negligenciados demandando escuta, esse é o desafio de sempre a todo o tempo. Engajemos com respeito, sem ódio e com a disposição para o dissenso que é a argamassa de qualquer república. Dialogar de maneira franca e democrática sobre nosso futuro não tem sido nossa especialidade neste país. Dialogar de maneira franca e democrática sobre as mulheres, seus corpos e suas liberdades interditadas nunca foi. Não podemos perder mais essa chance: dessa vez, falemos.

Manoela Miklos é doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), ativista feminista, idealizadora da campanha #AgoraÉQueSãoElas e editora do site de mesmo nome. Integra o Programa para a América Latina da Open Society Foundations.

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