Intolerância e machismo no whatsapp: não é tudo que pode ficar barato, por Ana Capozzi, Ana Paula Braga e Marina Ruzzi

15 de dezembro, 2016

Esta poderia ser só mais uma história sobre uma mulher que foi agredida na internet porque discordou da opinião de um homem. Poderia ser uma história sobre política, sobre discussões acaloradas e sobre como as pessoas se sentem livres para se expressar como bem entendem no mundo virtual. Mas essa é uma história diferente. Não porque a protagonista tenha vivenciado algo distante da realidade de milhares de mulheres, mas porque, desta vez, existiu um final feliz, com o reconhecimento institucional de que o que ela sofreu, foi sim, violência de gênero.

(Instituto DEA, 15/12/2016 – acesse no site de origem)

Era abril de 2016. Criaram um grupo de whatsapp. Ela foi adicionada. A ideia era marcar um reencontro dos amigos do primário. O encontro seria no mês seguinte.

Nesse meio tempo, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff entra em pauta na Câmara dos Deputados. Nas vésperas de sua votação, no grupo de reencontro dos amigos do colégio, ele envia: “Se essa fdp cair amanha (sic) open bar por minha conta”/“Bora começar o esquenta pra amanha (sic), ver aquela dilma piranha sendo escrachada”. Alguns deram risada. Ela se incomodou. Educadamente, falou que estava saindo do grupo por não conseguir acompanhar as mensagens e considerar machistas os comentários travestidos de “piadas”. E, assim, retirou-se.

Logo após a aprovação do impeachment na Câmara, para sua surpresa, ela recebe mensagens privadas dele, em CapsLock. “VAI SE FODER SUA MERDA”, ”FEMINISTA FILHA DA PUTA”, “PTISTA DO CARALHO”, “QUERO QUE VC SE FODA” e ”RIDÍCULA”.

Não satisfeito, ele tira prints dos xingamentos dessa conversa privada e encaminha naquele grupo de reencontro do primário do qual ela não mais fazia parte. Além do print, ele manda uma foto dela durante o carnaval, ridicularizando a moça e sua fantasia.

A história poderia ter se encerrado aí, e ela seria apenas mais uma mulher que se sentiu exposta, agredida e invadida, simplesmente por não concordar com o teor de uma conversa machista. Mas, a despeito da sensação de que não vale a pena “brigar”, pois, afinal, “essas coisas nunca dão em nada”, ela decidiu ingressar na Justiça, no Juizado Especial Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Mesmo diante das provas trazidas aos autos por ela, a naturalização desse tipo de comportamento agressivo, aliado com a falsa sensação de impunidade da internet, fez com que ele se sentisse suficientemente seguro para não apresentar qualquer tipo de retratação, ou então realizar qualquer esforço para uma tentativa de acordo. Afinal, para ele, o atual cenário político do Brasil tem provocado discussões calorosas, o que justificaria sua conduta. Sua argumentação se limitou a dizer que, ao participar desse grupo, cujo tema é político, ela estava ciente de que as opiniões são contundentes e a discussão fervorosa. Reconheceu que se deixou levar pelo calor da discussão, e disse que não teve a real intenção de ofender, nem de atingir a honra dela.

Apesar de ter acionado o judiciário e esperar ter seu constrangimento e sofrimento reconhecidos pelo tribunal, ela realmente não esperava que a resposta do juiz responsável por seu caso fosse tão sensível e acertada:

com efeito, demonstrou o réu – inclusive porque nem sequer cogitou de uma retratação, nem mesmo durante a audiência – que não sabe conviver com quem tem um pensamento diferente. Não há dúvidas de que ele adotou um comportamento preconceituoso, intolerante e machista”. (…) “Nessa hipótese, considerando que se trata de dois cidadãos de excelentes condições sociais, ambos residentes em região nobre da Capital/SP, mostra-se bastante razoável fixar o valor da indenização em R$20.000,00, tal como consta da inicial, quantia que se mostra bastante adequada, tanto para desestimular a prática de condutas semelhantes – consigne-se que, nos autos, o réu não demonstrou o mínimo arrependimento –, quanto para reconfortar a autora, vítima de uma saraivada de ataques gratuitos à sua honra e sua à condição de mulher.”

O ofensor não recorreu devidamente no tempo adequado. Agora a decisão é definitiva. Isso é um verdadeiro estímulo para que as mulheres e demais vítimas de ataques cibernéticos passem a utilizar a via judicial para conter os agressores, dando sinais de que o que acontece na internet está sujeito às mesmas regras do mundo externo.

Ao ser perguntada pelo IDEA a respeito da decisão, ela respondeu “você tem duas opções: agir e não agir, deixando a coisa morrer. Eu decidi agir e vejo de forma muito positiva. Isso está longe de ser meramente monetário. Tem a ver com saber que de alguma forma estamos amparadas”.

Por que essa decisão foi tão importante?

Se pegarmos a legislação brasileira, veremos que o Código Civil prevê que aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. E o ato ilícito, por sua vez, gera, para aquele que o causou a obrigação de repará-lo, através do pagamento de uma indenização.

Para além do ilícito civil, xingar alguém, com intuito de ofender sua honra e dignidade, constitui crime de injúria, cuja pena é de detenção de um a seis meses ou multa. Por sua vez, expor uma pessoa diante de uma coletividade, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação, configura crime de difamação, e a pena é de detenção de três meses a um ano e multa.

Apesar de todo mundo saber que esse tipo de conduta é extremamente reprovável, a internet gera uma falsa sensação de impunidade, como se todos os filtros morais e legais deixassem de existir. E isso faz com que potenciais agressores se sintam livres para realizar os mais diversos ataques, sem se preocupar com o peso moral que a sociedade lhes imputaria caso tais ataques fossem cometidos ao vivo.

É claro que existe o direito à liberdade de expressão e livre manifestação do pensamento, consagrados na Constituição Federal. Contudo, a Constituição também garante direito a indenização por dano material, moral ou à imagem e, considera inviolável a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Assim, não pode uma pessoa se valer do direito à manifestação livre do pensamento para violar a honra e a dignidade dos demais.

Mas o que torna a decisão mais bonita, não é simplesmente o fato de vermos a legislação ser aplicada e derrubar a ideia de que os crimes cibernéticos são inatingíveis. A importância deste caso está no reconhecimento de que não se trata de meras ofensas em meio a uma discussão política. Trata-se de violência de gênero.

Muito provavelmente esse agressor não teria se dirigido dessa forma a outro participante que tivesse se retirado do grupo, se ele fosse do sexo masculino. Sua dignidade, sexualidade e posicionamento políticos não teriam sido ofendidos – ao menos não dessa maneira tão pessoalmente dirigida, com fins de humilhação. Não foi meramente o fato de que o agressor discordou da opinião política da garota. Foi o fato de que essa opinião pertence a uma mulher. E a sociedade patriarcal tem dificuldades profundas de aceitar comportamentos femininos que não sejam de passividade.

Nesse sentido, o magistrado reconhecer que um dos elementos de maior gravidade do caso foi que “não há dúvidas de que ele adotou um comportamento preconceituoso, intolerante e machista” (sic), é uma grande conquista das mulheres, que passam a encontrar um amparo mais sólido no Judiciário para demais agressões motivadas por discriminação de gênero. É o reconhecimento de que somos atacadas simplesmente por sermos mulheres e que merecemos ser reparadas por isso. É ensinar aos agressores que eles não podem mais nos tratar como bem entenderem, e que se o fizerem, haverá consequências.

É importante destacar que esse tipo de entendimento não corresponde ao que normalmente é assumido pelos tribunais. Os magistrados têm tido bastante cautela para conceder danos morais, afastando qualquer tipo de situação que no entender deles seja “mero dissabor”. Casos como este, que acontecem na esfera privada das pessoas, costumam receber esse tipo de tratamento. Assim, não apenas é difícil para as vítimas acionarem o poder público para serem reparadas, como também quando o acionam encontram barreiras institucionais e morais bastante rígidas, que dificultam seu acesso à justiça e reparação.

Precisamos adotar cada vez mais essa cultura de denúncia. Casos como esse nos mostram que sim, é possível mudar a mentalidade machista do mundo, nem que para isso precisemos acionar o Judiciário até que todos entendam que a misoginia não será mais aceita. Para que consigamos transformar esta cultura tão milenar de silenciamento feminino, é importante que as mulheres se arrisquem e que busquem reparação pelas vias institucionais, denunciando não apenas as condutas, como também a sua motivação. Com essas atitudes, as quais certamente envolvem um grande nível de coragem, podemos transformar a sociedade, a começar pelo poder judiciário.

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