Em longa e forte carta aberta, Giselle Itié detalha abuso sexual que sofreu aos 17

10 de janeiro, 2017

A atriz Giselle Itié relatou, em uma carta aberta enviada ao portal Glamour e divulgada nesta terça-feira (10), um abuso sexual que sofreu quando tinha 17 anos. Itié já havia mencionado o episódio em um vídeo divulgado em seu Instagram no ano passado como parte da “Ni Una a Menos”, campanha que começou na Argentina contra o feminicídio.

(Revista Fórum, 10/01/2017 – acesse no site de origem)

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Na carta divulgada nesta terça-feira, Giselle contextualiza e detalha o estupro que sofreu quando adolescente do próprio namorado que, na noite anterior à agressão, teria a chamado de “Cinderela”.

“Quando tinha 17 anos, fui estuprada pelo último homem que eu poderia imaginar (…) Acordei. Olhei para o lado e lá estava ele, dormindo (…) O chão forrado de garrafas vazias. Eu forrada de amnésia. Foi difícil sentar. Então vi o que eu já imaginava. Perdi a virgindade. Me perdi (…) O que aconteceu? Notei meu corpo machucado, roxo, mordido. Não conseguia pensar nem chorar”, narrou.

No texto, a atriz falou ainda sobre os impactos que o episódio causou em sua vida.

“Eu? Eu me sentia oca. Sentia tanto quanto não sentia nada. Passei a me vestir com as roupas do meu pai (Freud explica), queria sumir”.

A carta termina com o intertítulo “Precisamos nos unir”, onde Giselle mostra seu objetivo ao escrever uma carta tão densa e detalhada sobre o assunto.

“Estamos (sobre)vivendo na cultura do estupro. A cada 12 segundos uma mulher sofre violência no Brasil. Ou seja, todo movimento é importante para chegarmos mais perto do fim da desigualdade de gênero. Foi duro escrever este texto, mas isso me fortaleceu ainda mais. Meninas, precisamos nos unir!”, finaliza.

Leia a íntegra.

“Era uma vez uma menina nascida em uma família amorosa, unida e machista: eu.
Quando pequena, meus ídolos eram a Mafalda, a menina inconformada que levantou a bandeira da justiça, da paz e da igualdade, e o Hulk, o monstro humanoide que na sua essência queria paz e harmonia, ainda que de uma forma agressiva. Quanto mais bravo, mais forte ele ficava. Mas o tempo foi passando e, de Mafalda e Hulk, passei a gostar das princesas encantadas de Walt Disney, lindas com seus vestidos à espera do príncipe para o “felizes para sempre”. Na minha época, não existia Frozen. Pena.

A educação machista foi me moldando: ‘Menina de família não dança desse jeito!’; ‘Feche as pernas, endireite as costas! Isso não é jeito de menina sentar’. Seguia essa educação, mas a questionava.

Pedia para fazer teatro, mas ser atriz não era para uma mocinha de família como eu. Cheguei a morar no México com meus tios para estudar teatro sem que meus pais soubessem. Eu era uma princesa rebelde, mas minhas primas mexicanas me ensinavam a ser uma menina para casar: beijar o namorado só depois de sete meses juntos (oi?!). Imaginava como seria minha primeira vez: de branco, no colo do marido, o quarto cheio de flores e à luz de velas…

O GALÃ E A VIRGENZINHA

Quando tinha 17 anos, deixei de lado o sonho de ser atriz. Estava me preparando para entrar na faculdade de jornalismo e namorava um cara 15 anos mais velho. No início, meus pais surtaram, mas, com tempo, o X passou a fazer parte da família. Meu príncipe era um cara extrovertido, romântico, galã de comerciais. Em dois anos iríamos nos casar. Além disso, respeitava minha virgindade e minha vontade de casar assim.

A gente quase se esmagava de tanta paixão. Às vezes eu ficava assustada e pedia para parar. Às vezes ele parava e às vezes não. Às vezes eu era mais severa. Mas também entendia como era difícil para ele, mais velho, esperar o tempo da “virgenzinha”.

Uma noite estávamos em um restaurante, e um moço me chamou para ser modelo, me entregando seu cartão. Voltei à mesa, e X ficou bravo. Ele podia ser modelo, eu não… Falei que queria ser atriz e contei que o booker também me chamou para estudar TV e cinema na agência. Pois X levou a conversa para os meus pais com o intuito de me “proteger do mal”. Estava cada vez mais possessivo e ciumento.

Até que um dia me chamou para viajar com a família dele. Disse que não aguentava mais ter um relacionamento com ‘uma criança de 17 anos’ e me pressionou ‘amavelmente’ para viajar com ele. Meus pais, infelizmente, me deixaram ir. Antes de viajar, minha mãe me orientou: ‘Não coloque nenhuma gota de álcool na boca!’.

A 1ª VIAGEM COM ELE

O sítio tinha três casas com vários dormitórios. X propôs que a gente dormisse em uma casa separada dos outros, cada um em um quarto. Mas ele disse que iria me visitar. Na hora de dormir, era uma sensação boa, coração batendo forte, sabe? Quando ele apareceu na primeira noite, fiquei sem saber o que fazer. E ele vinha com jeitinho, dizendo que eu era a mulher da vida dele… Era sufocante sentir vontade mas não estar à vontade. Decidir não querer é difícil, ainda mais quando você está com o ‘amor da sua vida’.

Em uma das noites, ele pegou pesado. Quando me dei conta, meu namorado foi substituído por um estranho ofegante que não queria me escutar. Implorei para ele sair de cima! Quando comecei a chorar, ele decidiu parar e saiu do quarto magoado. Eu fiquei com uma mistura de alívio e culpa.

No dia seguinte, X pediu desculpas, disse que me amava e garantiu que iria me respeitar. 

Escureceu, e ele teve a ideia de irmos a uma boate. Eu, minha cunhada, todos falamos não, mas ele me convenceu. Chegando lá, lembrei da minha mãe e pedi um suco de laranja com bastante gelo no bar. Ele sorriu para mim. Pensei no quanto ele era lindo, dei um beijo nele e disse: ‘Te amo e vou ao banheiro’. Fui. Voltei. Bebi. Fim. MENINAS, TOMEM CONTA DOS SEUS CO(R)POS!

E ENTÃO O CASTELO CAIU

Quando tinha 17 anos, fui estuprada pelo último homem que eu poderia imaginar. Quando tinha 17 anos, o castelo caiu e fiquei soterrada. X me desejou boa-noite e me chamou de Cinderela.

Acordei. Olhei para o lado e lá estava ele, dormindo. Olhei melhor e o vi nu. Susto. Me olhei. Nua. O chão forrado de garrafas vazias. Eu forrada de amnésia. Foi difícil sentar. Então vi o que eu já imaginava. Perdi a virgindade. Me perdi.

Sem saber o que fazer, me tranquei no banheiro. Senti nojo de mim, vergonha, medo. O que aconteceu? Notei meu corpo machucado, roxo, mordido. Não conseguia pensar nem chorar. Só queria o abraço da minha mãe.

Como zumbi, fui para o chuveiro e tentei me limpar, tirar a sensação de sujeira. Embaixo da água, me senti de alguma forma protegida. E chorei. Me dei conta de que não era pesadelo quando escutei o X batendo na porta. Num dado momento, me levantei aos prantos e exigi, do outro lado da porta: “Quero ir para a minha casa agora!”. Ele tentou dizer que não dava e entrei em surto. X concordou em me levar.

TOTAL FÊNIX

Em casa, contei tudo para minha mãe. Éramos duas mulheres chorando. Também vítima da sociedade machista, ela não sabia o que fazer. Se sentia culpada, teve medo de contar para meu pai, pois sabia que o mexicano iria atrás do X e a família Itié iria desmoronar. Por isso, decidiu não contar, e eu entendi. Mais tarde, ela foi atrás do X e bateu nele.

Eu? Eu me sentia oca. Sentia tanto quanto não sentia nada. Passei a me vestir com as roupas do meu pai (Freud explica), queria sumir.

Com a ajuda do tempo, da minha mãe e da terapia, comecei a me reencontrar. Decidi ligar para o booker da agência. Lembra? Fui fazer aula de TV e cinema, estudar jornalismo e trabalhar como modelo para pagar o curso. Tudo isso fez um baita barulho em casa, claro, mas eu não era mais aquela Giselle. Total fênix. A imagem das princesas encantadas foi engolida. Eu me sentia o Hulk e contestava tudo que achava injusto, como a Mafalda.

PRECISAMOS NOS UNIR

Hoje, tenho consciência de todas as situações violentas pelas quais passei simplesmente por ser mulher. E tudo veio à tona no ato Por Todas Elas, em junho passado, quando uma carioca foi violentada por 33 homens coniventes. Teve um jogral, no qual uma vítima narrava seu abuso e as demais repetiam frase por frase para que todos ouvissem. Aquilo, sim, foi um momento de redenção. Finalmente, percebi que não devia sentir vergonha, que a culpa nunca é da vítima. 

Quando aconteceu o recente feminicídio na Argentina, e houve uma ato da organização Ni Una Menos, procurei informações no Brasil e não encontrei. Entrei em contato com organizadoras do Por Todas Elas e sugeri organizarmos o ato Ni Una Menos Brasil. E foi assim que essa nova fase da minha vida nasceu. Em 2 meses, já estava no Comitê de Combate à Violência Contra a Mulher do GMdB (Grupo Mulheres do Brasil), cocriei o coletivo Hermanas, escrevi e dirigi vídeos para chamar as mulheres para o ato do dia 25 de novembro, Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher, no ano passado.

Estamos (sobre)vivendo na cultura do estupro. A cada 12 segundos uma mulher sofre violência no Brasil. Ou seja, todo movimento é importante para chegarmos mais perto do fim da desigualdade de gênero. Foi duro escrever este texto, mas isso me fortaleceu ainda mais. Meninas, precisamos nos unir! Nosso futuro agradece.

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