Misoginia Futebol Clube, por Nana Soares

16 de março, 2017

Assassino condenado pela Justiça, Bruno Fernandes de Souza vai voltar a jogar futebol. O “goleiro (e assassino) Bruno” saiu da cadeia com um habeas corpus que dizia que “nada justificava” sua prisão, foi recebido por fãs, tirou selfies e recebeu propostas de 9 clubes diferentes. Fechou contrato de dois anos com o Boa Esporte Clube, equipe do sul de Minas que joga a segunda divisão do campeonato brasileiro. Eliza Samudio, sua ex-mulher e mãe de seu filho, segue morta e ainda não há paradeiro do seu corpo.

(Estadão.com, 16/03/2017 – acesse no site de origem)

A contratação de Bruno felizmente gerou revolta. O Boa perdeu cinco patrocinadores e o site do clube foi hackeado com dados sobre violência contra a mulher no Brasil. A repercussão foi majoritariamente negativa e obrigou o Boa a redigir uma nota oficial – muito mal escrita, diga-se de passagem – sobre o caso. O presidente do clube argumenta que não foi o Boa que soltou Bruno e que eles não fazem nada de errado ao contratá-lo. Pelo contrário, estariam ajudando no processo de ressocialização e na ‘segunda chance’ de Bruno, já que o trabalho é edificante. Também foi esse o discurso do Grupo Gois & Silva, outro patrocinador da equipe. No entanto, dada a rejeição, a empresa acabou rescindindo o contrato com o clube.

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Não questiono que Bruno (ou qualquer pessoa) seja julgado com direito à defesa, isso é um princípio básico do Estado de Direito. Também acredito que todo ser humano privado de liberdade tem de ser ressocializado, merece uma segunda chance e não acho que existam casos perdidos. Também acredito em arrependimento. Mas não acho que nada disso é o caso de Bruno, uma pessoa a quem nunca foi negada a “volta por cima”, que não cumpriu sua pena e que não demonstrou arrependimento.

Em 2014, já condenado e preso, Bruno foi capa da revista Placar com o apelo “Me deixem jogar”. Três anos depois, assim que saiu da cadeia (sem ter cumprido a pena!) já foi recolocado no mercado da bola e, vamos lembrar de novo, está TIRANDO SELFIE COM FÃS. Quando recomeçar a jogar, corre o risco de ser ovacionado pela torcida após suas defesas. É um desrespeito profundo com a vida das mulheres nesse país, mortas a cada 1 hora e meia por crimes de ódio fundamentados na desigualdade de gênero. Em cerca de 30% das vezes pelo parceiro ou ex-parceiro, como foi o caso de Eliza Samudio.

Esse é o contexto brasileiro, o que me obriga a perguntar: queremos mesmo divulgar o desejo de voltar ao futebol – e aos holofotes – de uma pessoa que esquartejou a mulher e ocultou seu cadáver? Enquanto isso, Eliza Samudio está morta e não pode compartilhar nenhum de seus sonhos ou desejos. Não pode ver o filho crescer, não pode rebater a fala de Bruno, não pode dizer que é um absurdo que não tenha lhe faltado emprego e solidariedade nem por um dia.

O desrespeito – e deboche – é tanto que Bruno argumentou que “nem a prisão perpétua” traria Eliza Samudio de volta. Ele disse isso para justificar sua saída da cadeia, demonstrando zero arrependimento e dando a entender que não adianta deixá-lo preso. Pelo contrário, punir um criminoso (um assassino, vale lembrar) é desnecessário.

Em muitos casos de violência doméstica é a vítima que tem que mudar de vida para poder escapar da violência. Elas mudam de emprego, de cidade, cortam laços afetivos para ficar longe do agressor. Procuram ajuda da polícia, vão para abrigos sigilosos e ficam fora da sociedade por meses na espera do Judiciário agir para que possam viver em paz. Em casos de feminicídio, isso fica ainda mais óbvio: elas perdem a vida enquanto eles continuam por aí, muitas vezes impunes. Como não ver a injustiça presente nesses casos? Como, sabendo disso, achar que está tudo bem em fomentar a carreira de Bruno? Como achar que é normal vê-lo parabenizado por boas atuações e sendo bem recebido pela torcida?

No caso do jogador, por mais que tudo esteja de acordo com o Judiciário, a justiça está muito longe de ser feita. Nenhum dos 9 clubes que o sondaram estão envolvidos com sua libertação, mas passam a ser diretamente responsáveis por uma cultura de violência contra a mulher quando, sem pestanejar, oferecem reabilitação a alguém que cometeu um feminicídio tão bárbaro. Será que esses clubes têm ações tão rápidas e eficazes no combate à violência contra a mulher?

Todo o caso de Bruno faz com que eu me sinta completamente desvalorizada como mulher. Sinto como se minha vida não tivesse valor, ou pelo menos um valor muito menor do que a vida dos homens. Só posso esperar que os torcedores do Boa não compactuem com a contratação do time e manifestem isso explicitamente, assim como órgãos e federações de futebol, mas acho que isso seria sonhar alto demais. O machismo continua vivo, Eliza Samudio continua morta.

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