Brasil tem movimentos de mulheres mais estruturados do mundo, diz pesquisadora

28 de abril, 2017

Quando se fala em mulheres da América Latina, é comum fazer uma conexão imediata com números preocupantes de feminicídio, com a escassez de direitos e com uma forte cultura do estupro. Poucas vezes, porém, se fala das mudanças trazidas pela luta feminista em países como Brasil, Argentina e Chile – países que têm feito reformas interessantes em direção à igualdade de gênero, inclusive com reconhecimento e com a ajuda de órgãos internacionais como a ONU, e que tiveram, ao longo dos últimos 50 anos, governantes do sexo feminino.

(Revista Cult, 28/04/2017 – Acesse o site de origem)

Foi pensando nisso que as sociólogas Eva Alterman Blay e Lúcia Avelar iniciaram a pesquisa “50 Anos de Feminismo (1965-2015): Avanços e Desafios: Argentina, Brasil e Chile”, no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com a colaboração de autores de diversas universidades do Brasil e da América Latina.
Brasil tem movimentos de mulheres mais estruturados do mundo, diz pesquisadora

Ato das mulheres em 8 de março de 2017, São Paulo (Foto: Mídia Ninja) 

O resultado está no livro 50 anos de feminismo – Argentina, Brasil e Chile (Edusp), cujo lançamento aconteceu nesta quinta (27), em São Paulo. A coletânea traz dez artigos que investigam as mudanças políticas e econômicas geradas pela luta feminina neste período, tratando de temas como a descriminalização do aborto, o papel das mulheres nas ditaduras, os movimentos das mulheres negras e a luta por direitos das pessoas queer.

Professora titular de Ciência Política na Universidade de Brasília e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisa de Opinião Pública da Unicamp, Lúcia Avelar conversou com a CULT sobre os 50 anos de feminismos nesses países.

Ato de mulheres pela democracia em Santiago, durante o governo militar de Augusto Pinochet (1973-1990) (Foto: Kena Lorenzini/Wikimedia Commons)
Ato de mulheres pela democracia em Santiago, durante o governo militar de Augusto Pinochet (1973-1990) (Foto: Kena Lorenzini/Wikimedia Commons)

CULT – Por que escolher a América Latina como objeto de estudo?

Lúcia Avelar – Na última década, houve um momento em que três mulheres ocupavam a Presidência da República na América do Sul: Cristina Kirchner na Argentina, Dilma Rousseff no Brasil e Michelle Bachelet no Chile. Todas foram eleitas pelo voto direto, em períodos democráticos. Além disso, os três países haviam passado por ditaduras militares, nas quais as mulheres também sofreram prisões, exílios, torturas. No entanto, fortaleceram-se em seus movimentos de base, tais como a luta por creches, por pagamento igual [ao masculino] pelo mesmo trabalho, na luta pelo fim da violência contra a mulher, por mais representatividade na sociedade e na política.

E por que o marco dos 50 anos de feminismo?

Quisemos definir uma época de maior adensamento dos movimentos feministas e de mulheres, e há um relativo consenso de que foi a partir da década de 1960 que as mulheres tiveram maior acesso à educação, maior autonomia como cidadãs e puderam ousar imaginar uma vida cujo destino ficaria além da rotina doméstica. Para nós, foi a partir daí que a visão de um universo muito diferenciado começou a fazer parte do imaginário das mulheres.

Na apresentação do livro, vocês dizem que o movimento de mulheres do Brasil, da Argentina e do Chile são “dos mais destacados nos círculos internacionais”. Por quê?

Por motivos e contextos diferentes, os três países têm destacadas formas de organização das mulheres. A Argentina, ainda na década de 1990, conseguiu uma mudança na legislação eleitoral, passando de lista aberta para lista fechada e com a obrigatoriedade de 30% de mulheres alternando com os parceiros masculinos. O resultado é que, hoje, a Argentina apresenta a maior taxa de representação política feminina da América Latina e serve como referência para os demais do Cone Sul.

O Brasil, embora não seja de amplo conhecimento dos brasileiros – porque as mídias dão pouco espaço para os feminismos -, é conhecido como o país de maior nível organizacional dos movimentos de mulheres. Sua estrutura vai do municipal ao regional, estadual e nacional, articulando-se em uma multiplicidade de redes que por sua vez transitam nas várias instâncias governamentais nacionais e internacionais. Claro, seu diálogo com as máquinas do Estado depende muito do governo de plantão. Não chegamos ao ponto semelhante a alguns países europeus em que as chamadas Agências de Políticas para as Mulheres, que se situam entre os movimentos e o Estado, façam parte definitiva do Estado, como um Ministério da Educação, por exemplo, com um Ministério de Políticas para as Mulheres.

O Chile apresenta um contexto organizacional diferente: com fortes partidos socialistas tradicionais, muitas vezes os movimentos de mulheres se confundem com tais partidos, ou, então, como vemos no Serviço Nacional de Mulheres (SERNAM), os cargos daquela burocracia podem ter continuidade mesmo que se passe de um governo de Pinochet para um outro de natureza democrática. Claro, Michelle Bachelet, principalmente no seu primeiro mandato, levou feministas históricas para o SERNAM, elas se articulando com outros ministérios, realizando mudanças no mundo da aposentadoria, das creches para filhos de mães pobres, na luta contra o feminicídio. Embora muitas semelhanças, os três países devem ser vistos contextualizando historicamente seus avanços e desafios.

Ato 'Ni una menos', em frente ao Congresso Nacional de Buenos Aires, na Argentina, em outubro de 2016 (Foto: Natacha Pisarenko/AP)
Ato ‘Ni una menos’, em frente ao Congresso Nacional de Buenos Aires, na Argentina, em outubro de 2016 (Foto: Natacha Pisarenko/AP)

Quais características do nosso feminismo levam a essas diferenças?

O nível de institucionalização. O diálogo intra e inter movimentos, ONGs, redes de articulação, como a Articulação de Mulheres Brasileiras, a Marcha Mundial das Mulheres. Um dos momentos em que tal realidade se expressou foi na Conferência Nacional de Mulheres, nas várias delas. Ali havia representantes de todos os níveis para discutir quais políticas deveriam ser prioritárias para a melhoria do status das mulheres.

Quais as diferenças entre o feminismo na América Latina e o de outras regiões periféricas do mundo?

Poderíamos dizer que, como outros movimentos da sociedade, as organizações internacionais como a das Nações Unidas e Fundações público-privadas, em todo o mundo, dão suporte aos movimentos de mulheres. Mas a história conta muito: nos países com maior envolvimento da população na política tendem a ter feminismos mais densos e organizados. Se a Europa atravessou dois séculos de conflito político e social, as mulheres junto na construção democrática, por que elas não teriam forte influência nos arranjos do Estado de Bem-estar Social? Como é preciso admitir, apenas a democracia eleitoral não dá conta da representatividade dos “menos iguais”.

Costuma-se dizer que o Chile é o único país da América Latina em que o feminismo “funciona”. O que você acha disso?

Não concordo. Discutimos isto muito em nosso livro e durante nossas reuniões de pesquisa. Talvez a contabilidade pública faça mais alarde de suas respostas aos movimentos feministas, como discutíamos durante o trabalho: um funcionário público contabiliza um bolsa-família como sendo um atendimento à autonomia das mulheres. Isto acontece e se não for pela accountability vertical dos movimentos, os governos podem nos enganar.

No livro, há apenas um autor homem, José Eustáquio Diniz Alves. Como você vê a participação masculina no movimento feminista?

Temos muitos parceiros homens nos movimentos feministas, principalmente na geração mais jovem. Entre acadêmicos, ativistas de movimentos, pessoas que se socializaram nos anos mais recentes. Os homens começaram a entender que feminismo quer dizer direitos humanos, é muito positivo nas famílias porque as discriminações desequilibram os relacionamentos e todo mundo perde. Por exemplo, quem ganha com a proteção universal da saúde da mulher? Todo mundo.

Como você vê a apropriação do feminismo e de outras lutas por direitos sociais pela publicidade, artistas pop e marcas em geral?

Só fortalece o movimento. Quanto mais comunidades organizadas, mais democracia para a construção de um país menos violento e desigual.

A prostituição é uma questão espinhosa dentro do feminismo, já que algumas vertentes defendem sua legalização e outras, sua criminalização total. Como você vê essa questão dentro da América Latina?

A prostituição é um tema espinhoso sim. De um lado, é o direito de autonomia sobre seu corpo; de outro, uma luta pela sobrevivência. No período do Ministério de Políticas para as Mulheres no Brasil, o combate à prostituição e principalmente no recrutamento de jovens para trabalhar em outros países, crimes continuamente realizados por máfias da prostituição, foi possível contar com financiamentos que apoiavam o combate apontando para alguma solução. Havia mesmo a adesão de outras áreas ministeriais, como o Ministério das Relações Exteriores que faziam parceria com os movimentos de mulheres. É uma luta histórica e de difícil solução. É preciso muito investimento social.

Com um retorno ao conservadorismo, é possível que todo o avanço das últimas décadas, que vocês mencionam no livro, tenha sido em vão?

A história é feita de ciclos e agora é um momento áureo do conservadorismo em todas as áreas. Os preconceitos afloraram com muito mais intensidade agora, se compararmos com o pós-guerra, quando um sentimento de solidariedade foi necessário para a reconstrução dos países destruídos. Uma parcela das sociedades, independentemente da época, é conservadora, não aceita o outro, o diferente. Mas agora parece que estamos vivendo um retorno aos valores de profundas diferenças de classe, como antes da vitória da burguesia sobre a aristocracia. As diferenças valorativas estão explícitas e se não trabalharmos para regimes políticos e sociedades mais tolerantes e democráticas, vamos retrocedendo. Esperamos que o feminismo ajude a construir maior universalismo e solidariedade nas relações humanas.

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