Quase metade dos assassinatos de mulheres no Rio é feminicídio

08 de março, 2017

As conquistas são constantes. Mas, neste Dia Internacional da Mulher, a face mais cruel de uma sociedade historicamente machista ainda se revela entranhada no cotidiano. Um levantamento da Polícia Civil do Rio obtido com exclusividade pelo GLOBO mostra que, dos 132 assassinatos de mulheres investigados pelas delegacias de Homicídios (DHs) da Capital e de Niterói e São Gonçalo num período de um ano, 63 deles (ou 48%) foram considerados feminicídios, quando a vítima é morta devido à sua condição de sexo feminino.

(O Globo, 08/03/2017 – acesse no site de origem)

Ódio, menosprezo, ciúmes ou sentimento de posse permeiam as barbáries cometidas contra as mulheres. E quase sempre, diz a delegada Marcela Ortiz, da DH do Rio, que conduziu o estudo, são “crimes de covardes”, em que os agressores se sentem legitimados e creem ter justificativas para matar.

— Em geral, os agressores culpam as vítimas para assassiná-las. Dizem que elas provocaram, que tiveram posturas que eles julgam erradas… Isso é reflexo do machismo, que é uma questão cultural contra a qual todos precisamos lutar — diz Marcela.

HISTÓRIAS DE BRUTALIDADE

Os casos analisados pela delegada se referem a março de 2015 a março de 2016, quando completou um ano da entrada em vigor da Lei 13.104 — que alterou o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, incluindo o crime no rol dos hediondos, com pena de 12 a 30 anos de prisão. Ao se debruçar sobre esses assassinatos, Marcela ressalta que, primeiro, era preciso separar as mortes causadas por confrontos de facções criminosas ou conflitos com a polícia, por exemplo, daquelas que realmente caracterizassem o feminicídio, decorrente da violência doméstica e familiar e/ou desprezo ou discriminação à condição de mulher.

Examinando os inquéritos, dos 108 investigados na capital, a polícia identificou elementos suficientes para qualificar 47 deles (44%) como feminicídios. Em Niterói e São Gonçalo, foram 26 homicídios de mulheres, 16 (67%) motivados pela condição de sexo feminino da vítima. Já a DH da Baixada não informou quantos foram os assassinatos de mulheres no período, mas caracterizou 51 mortes como feminicídios. Assim, apenas nessas três áreas da Região Metropolitana, sem contabilizar os casos do interior, foram constatados 114 feminicídios, uma média de um a cada três dias.

São histórias de brutalidade que como a que aconteceu no fim de 2016 em Copacabana. Para comemorar o aniversário do marido, uma jovem deixou um recado no espelho do guarda-roupas do casal com a frase “Obrigado por fazer parte da minha vida. Te amo!”. Dias depois, ele usou um martelo para matá-la e cortar a boca da mulher, deixando seu rosto como o do personagem Coringa.

— Observando os casos, conseguimos traçar um perfil dos assassinos. É muito comum eles desconfigurarem a face das vítimas, por conta dos ciúmes, como se pensassem que ninguém mais poderá ver a beleza delas — comenta Marcela.

Com requintes de atrocidade, há outros traços que costumam se repetir nos feminicídios. Frequentemente os crimes acontecem dentro da residência das mulheres — sem que haja sinais de arrombamento —, próximo à casa delas ou em lugares que fazem parte da rotina das vítimas. Asfixia, sufocamento e facadas são comuns. Assim como um histórico de violência anterior, muitas vezes relatado pela família ou pessoas próximas às mulheres mortas.

Números que chocam

Delegada diz que maior parte dos crimes é reflexo do machismo que ainda permeia a sociedade

Os assassinos, por sua vez, muitas vezes simulem latrocínios ou suicídios. Mas, pelo menos no Rio, fechado o cerco contra os criminosos, a maioria acaba confessando o crime. Num caso do início deste ano, marido e mulher voltavam para Paciência, na Zona Oeste, depois de deixarem o filho na Rodoviária Novo Rio. Num primeiro depoimento, ele contou que o casal tinha sido encurralado por três bandidos e que a mulher foi morta quando ele estava desacordado, após ter apanhado dos supostos assaltantes. A polícia desconfiou de incoerências no relato. Ele, então, admitiu que a matou, alegando ter ouvido conversas dela com uma amiga sobre outro homem. Em depoimento, foi além: disse que depois de agredi-la, imaginou seria preso, enquadrado na Lei Maria da Penha. Supôs que ela ficaria com sua casa, enquanto ele, preso, passaria como “otário”. Já que iria mesmo parar no presídio, afirmou, resolveu matá-la.

Assim como nesse crime, dos 47 feminicídios da capital no período analisado, 83% (39 deles) foram elucidados. O percentual é alto também na Baixada (55% solucionados) e em Niterói e São Gonçalo (56%). Nas três regiões, outro aspecto em comum é que a maioria só é resolvida pela investigação policial, enquanto uma menor parte envolve flagrantes. Nesse processo, afirma Rivaldo Barbosa, diretor da Divisão de Homicídios, as famílias das vítimas também precisam ser acolhidas.

— O trabalho de investigação passa por várias fases. Uma delas é o humanitário, com um policial psicólogo que atende a família.

Quando não chegam ao homicídio, os números também são alarmantes. Diariamente, o Tribunal de Justiça distribui 118 ações penais de violência contra mulheres, são deferidas 55 medidas protetivas de urgência, e a Justiça recebe 90 denúncias de ameaças em todo o estado. São 130 mil processos de violência contra mulheres estão em andamento no estado e quase três prisões por dia decorrente da violência contra a mulher.

Além disso, com dez anos de vigência da Lei Maria da Penha, dados do Ligue 180, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, indicam que a violência contra as mulheres continua disseminada em todo país. O balanço do primeiro semestre de 2016, no comparativo com o mesmo período de 2015, mostra um crescimento de 133% no volume de relatos de violência doméstica e familiar, com aproximadamente 58 mil registros nos seis primeiros meses deste ano. O Distrito Federal ocupa o primeiro lugar com a maior taxa de registro de denúncias feitas ao Ligue 180 no 1º semestre de 2016, enquanto o Rio aparece em 6º lugar, com uma taxa de 64,2 por 100 mil mulheres. E, em números absolutos, o maior volume de ligações foram feitas da cidade do Rio de Janeiro (5.482), seguida de São Paulo (4.537) e Brasília (2.317).

Para Marisa Chaves, coordenadora do Centro de Referência Para Mulher Suely Souza de Almeida, da UFRJ, ressalta que, apesar disso, muitos casos poderiam ser evitados se a rede funcionasse de forma mais eficaz. Ela conta que vários municípios têm fechado seus centros de referência, como em São Gonçalo, Cabo Frio e Queimados. Assim como o estado fechou dois de seus quatro centros, enquanto o da Baixada funciona de forma precária, em salas cedidas pela prefeitura de Nova Iguaçu.

— Como garantir direitos com o fechamento dos serviços de atendimento à mulher? — questiona Marisa: — Muitos classificam como crime passional. Não é. Os crimes normalmente são programados, não acontecem em momento de fúria. O agressor vê a mulher como propriedade dele. Quando a perde, acha que pode matá-la — completa.

Casos como de Rosângela Maria Sá, hoje com 49 anos. Depois de 21 anos junto com o primeiro homem de sua vida, o casamento se desfez. Com a família dela toda em casa, em São Gonçalo, o ex-marido dela jogou gasolina sobre ela e ateou fogo. Sobreviveu, segundo ela mesma, por um milagre. Foi em abril de 2009. Mas até hoje carrega as marcas de 75% do corpo queimado.

— Quando aconteceu aquela explosão, em frações de segundos pensei na minha mãe, nas minhas filhas, no meu sobrinho que estava dormindo na minha cama… Corri para a rua, comecei a rolar no chão, cheio de lixo, porque já tinha visto aquilo num filme, quando uma das minhas filhas me ajudou a apagar o fogo — conta Rosângela.

Hoje, o marido dela está preso. Rosângela reconstrói a vida fazendo o que gosta: virou uma militante no combate à violência contra a mulher, declama poesias, aprende a tocar flauta… E acolheu em sua casa o neto de 16 anos de seu ex-marido, fruto de um relacionamento dele anterior ao casamento.

— O meu desafio hoje é dar a oportunidade de ele ter uma vida diferente do avô e do pai, que também já foi preso. E educá-lo para ele ter a dignidade de não repetir o que eles fizeram. Quanto a mim, não tenho vergonha das marcas que tenho. Vergonha é de quem fez isso. O importante é viver. E viver bem — conclui Rosângela.

Rafael Galdo

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