Mulheres denunciam conivência do Vale do Silício com assédio sexual

04 de julho, 2017

As histórias inicialmente surgiam devagar, de modo hesitante. Depois se tornaram uma torrente.

(Folha de S.Paulo, 04/07/2017 – acesse no site de origem)

Uma empreendedora relatou a cantada que levou de um profissional de capital para empreendimentos do Vale do Silício quando estava procurando emprego na empresa dele. Outra mostrou as mensagens cada vez mais sugestivas que passou a receber de um investidor em start-ups. E a presidente-executiva de uma empresa descreveu os numerosos comentários sexistas que ouviu de um investidor quando estava arrecadando capital para seu seu site comunitário.

O que aconteceu depois desses incidentes foi muitas vezes igualmente perturbador, contaram as mulheres. Em muitos casos, as empresas e colegas dos investidores ignoraram ou minimizaram o acontecido, quando as situações foram levadas ao seu conhecimento. Reclamar publicamente, as mulheres foram advertidas, poderia resultar em ostracismo.

Agora, algumas dessas empreendedoras decidiram encarar o risco. Mais de duas dúzias de mulheres que trabalham em start-ups de tecnologia falaram ao “New York Times” nos últimos dias sobre o assédio sexual que sofreram. Dez delas identificaram os investidores envolvidos, em muitos casos revelando mensagens e e-mails comprobatórios, e mencionaram profissionais conhecidos do ramo de capital de risco como Chris Sacca, da Lowercase Capital, e Dave McClure, da 500 Startups, que não negaram os relatos.

As revelações surgiram depois que o site de notícias tecnológicas “The Information” reportou que empreendedoras haviam sido assediadas por Justin Caldbeck, do grupo de capital de risco da Binary Capital. Os relatos destacam que o assédio sexual no ecossistema das start-ups de tecnologia não se limita a uma empresa: é onipresente e tem raízes profundas. Agora, as denúncias sugerem uma mudança de cultura no Vale do Silício, onde comportamentos predatórios como os descritos eram muitas vezes mencionados em forma de boato mas raramente expostos.

Gesche Haas, an entrepreneur who said she was propositioned for sex by an investor, in New York, June 30, 2017. More than two dozen women in the tech start-up industry spoke to The New York Times about being sexually harassed by investors and mentors. (Sasha Maslov/The New York Times) ORG XMIT: XNYT181 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

A empreendedora Gesche Haas, que sofreu assédio sexual de um investidor, em Nova York (Foto: Sasha Maslov/The New York Times)

DESIGUALDADE DE GÊNERO

O setor de tecnologia há muito sofre de um desequilíbrio entre os gêneros, e empresas como Google e Facebook reconhecem que há mulheres de menos em suas fileiras. Algumas engenheiras começaram a se pronunciar sobre o assunto, entre as quais uma antiga engenheira da Uber que detalhou um padrão de assédio sexual na companhia, deflagrando investigações internas que ajudaram a promover a renúncia do presidente-executivo da empresa, Travis Kalanick, no mês passado.

Mais recentemente, as revelações sobre Caldbeck, da Binary Capital, provocaram protestos indignados. O investidor foi acusado de assédio sexual contra empreendedoras durante passagens por três empresas diferentes de capital de risco, nos últimos sete anos, muitas vezes durante reuniões nas quais as mulheres estavam lhe apresentando suas empresas.

Diversos dos mais importantes profissionais de capital de risco e tecnologia do Vale do Silício, entre os quais Reid Hoffman, fundador do LinkedIn, expressaram condenação ao comportamento de Caldbeck, na semana passada, e apelaram aos investidores por um “compromisso de decência”. A Binary Capital entrou em colapso; Caldbeck deixou a empresa e investidores retiraram seu dinheiro dos fundos que ela administrava.

A cadeia de eventos serviu para inspirar mais mulheres a falar publicamente sobre o tratamento que dizem ter sofrido da parte dos investidores em tecnologia.

“As empreendedoras são parte fundamental do tecido do Vale do Silício”, disse Katrina Lake, fundadora e presidente-executiva da loja online de roupas Stitch Fix, e uma das mulheres assediadas por Caldbeck. “É importante expor o tipo de comportamento reportado nas últimas semanas, para que a comunidade possa reconhecer esses problemas e resolvê-los”.

O abuso de poder praticado por alguns profissionais de capital de risco foi revelado nos últimos anos. Em 2015, Ellen Pao levou seu antigo empregador, a prestigiosa administradora de fundos de capital de risco Kleiner Perkins Caufield & Byers, à Justiça, acusando-a de discriminação sexual e de retaliação profissional contra ela por ter rejeitado propostas sexuais. Pao foi derrotada no processo, mas ele provocou debate sobre a necessidade de as mulheres da tecnologia denunciarem tratamento desigual.

“O fato de que diversas mulheres, entre as quais Ellen Pao e eu, tenham se pronunciado no passado provavelmente abriu caminho e preparou o setor para admitir que coisas como essas de fato podem acontecer”, disse Gesche Haas, empreendedora que disse ter recebido propostas sexuais do investidor Pavel Curda em 2014. Curda se desculpou por seu comportamento, posteriormente.

TOQUES SEM PERMISSÃO

Algumas das empreendedoras que conversaram com o “New York Times” disseram que era comum que fossem tocadas sem permissão por investidores ou consultores.

Em um evento de tecnologia em Las Vegas, em 2009, com plateia quase exclusivamente masculina, a investidora e empreendedora Susan Wu disse que Sacca, investidor e antigo executivo do Google, havia tocado seu rosto sem consentimento, de uma maneira que a fez sentir desconforto. Wu disse que também recebeu avanços sexuais de Caldbeck quando estava arrecadando capital para sua empresa em 2010, e que depois disso passou a se esforçar muito por evitar encontrá-lo.

“Há um desequilíbrio de poder tão grande que as mulheres do setor muitas vezes se veem em situações incômodas”, disse Wu.

Lindsay Meyer, an entrepreneur who has experienced sexual harassment, at her home in San Francisco, June 30, 2017. More than two dozen women in the tech start-up industry spoke to The New York Times about being sexually harassed by investors and mentors. Meyer said a venture capitalist groped and kissed her. â€I felt like I had to tolerate it because this is the cost of being a nonwhite female founder,†she said. (Jim Wilson/The New York Times) ORG XMIT: XNYT183 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

A empreendedora Lindsay Meyer, alvo de assédio, em sua casa em San Francisco (Foto: Jim Wilson/The New York Times)

Depois de ser contatado pelo “New York Times”, Sacca escreveu em um post de blog que “compreendo agora que contribuí pessoalmente para o problema. Lamento”. Em declaração ao “New York Times”, ele acrescentou que agradecia “a Susan e às outras mulheres corajosas que estão compartilhando suas histórias. Confio em que o resultado de sua coragem venha a ser a mudança duradoura que é necessária já há muito tempo”.

Muitas das mulheres afirmaram acreditar que não tinham muita chance de retaliar contra comportamento inapropriado, muitas vezes porque precisavam de capital, de emprego ou de outras formas de ajuda.

Em 2014, a empreendedora Sarah Kunst, 31, disse ter discutido a possibilidade de um emprego na 500 Startups, uma incubadora de empresas iniciantes em San Francisco. Durante o processo de recrutamento, McClure, o fundador da companhia, lhe enviou uma mensagem de Facebook que dizia, entre outras coisas, que “estava ficando confuso para mim decidir se deveria te contratar ou te cantar”.

Kunst, que agora dirige uma start-up fitness, disse que recusou os avanços de McClure. Quando falou sobre a mensagem com um dos colegas de McClure, mais tarde, a 500 Startups encerrou suas discussões com ela.

A 500b Startups afirmou que McClure, que não respondeu a pedidos de comentários, não estava mais no comando de suas operações cotidianas, depois de uma investigação.

“Depois de sermos informados de casos de comportamento inapropriado de Dave com relação a mulheres da comunidade de tecnologia, realizamos mudanças internas”, afirmou a 500 Startups. “Ele reconhece ter cometido erros e está fazendo terapia para mudar o seu comportamento anterior, que é inaceitável”.

Wendy Dent, 43, cuja empresa, Cinemmerse, produz um app para relógios inteligentes, disse que começou a receber mensagens de tom cada vez mais provocativo de Marc Canter, um consultor de start-ups, quando estava criando sua empresa, em 2014. Canter, que nos anos 80 criou uma companhia de software que se tornaria a Macromedia, havia concordado inicialmente em ajudar Dent a encontrar um sócio. Mas com o tempo suas mensagens ganharam tom sexual.

Em uma mensagem, lida pelo “New York Times”, ele escreveu que Dent era “uma feiticeira lançando encantos”. Em outra, ele comentou que um vestido azul a deixava bonita, e acrescentou “você sabe o que estou pensando? Por que estou enviando essa mensagem para você reservadamente?”

Canter disse em entrevista que Dent “me pediu ajuda de um jeito sedutor”, e que ela usava sua sexualidade publicamente. Ele disse que não gostou das ideias de Dent e se comportou da maneira que fez para que ela se afastasse.

SILÊNCIO

Algumas empreendedoras receberam pedidos de que não falassem sobre comportamentos que tiveram de encarar.

Em uma competição de start-ups, em 2014 em San Francisco, a empreendedora Lisa Curtis mostrou a ideia para sua start-up de comida, a Kuli Kuli, e foi informada de que sua ideia havia sido a mais aplaudida pela audiência, o que abrira as portas para um possível investimento. Quando ela saiu do palco, um investidor chamado Jose De Dios comentou: “É claro que você ganhou. Você é a maior gata”.

Curtis mais tarde postou um texto sobre a situação no Facebook e recebeu um telefonema de outro investidor. Ele disse que “se eu não retirasse o post, ninguém do Vale do Silício me daria dinheiro”, contou Curtis. Ela removeu o post.

Em declaração, De Dios disse que não fez uma “declaração difamatória, inequivocamente”.

Muitas vezes, mudanças acontecem só quando surge uma revelação pública, disseram algumas das mulheres. No caso de Caldbeck e da Binary Capital, o investidor e a empresa pediram desculpas, assim como um empregador anterior, a Lightspeed Venture Partners, que havia recebido queixas sobre ele.

“Lamentamos não ter tomado medidas mais fortes”, afirmou a Lightspeed no Twitter. “Está claro agora que deveríamos ter feito mais”.

Katie Benner; Tradução: Paulo Magliacci

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