Como a entrada de doulas no SUS democratizou o parto humanizado, por Camila Goytacaz

23 de julho, 2017

Em março, o Ministério da Saúde instaurou uma nova diretriz para tornar o atendimento às gestantes mais humanizado.

(HuffPost Brasil, 23/07/2017 – acesse no site de origem)

“Bebê nasce. Vem imediatamente para o colo da mãe, cordão pulsando. Celebramos sua chegada em um parto natural, sem intervenção, com respeito.”

Assim a doula Marina Pedrosa relata como terminou o atendimento feito no parto de Luciana Alencar, em um hospital público de Caraguatatuba, no litoral de São Paulo. Um pouco antes do nascimento, a doula conversou com a enfermeira responsável, reforçando as escolhas da gestante. Luciana, que agora é mãe de Rudah, de dez meses, compartilha:

“Meu parto foi a maior e mais linda aventura da minha vida e isso eu devo às doulas que me ajudaram, me mostraram que eu era capaz e me encorajaram com amor a vivenciar o parto normal que eu tanto queria.”

A doula – palavra que vem do grego e quer dizer “mulher que serve” – é a acompanhante de parto, que oferece assistência para a mulher no pré-natal, durante o parto e após o nascimento do bebê. Elas nunca substituem a presença do médico ou do profissional responsável pelo parto, apenas oferecem apoio à mulher e à família.

Benefícios para a mãe e o bebê

Estudos, tanto internacionais como brasileiros, mostram que a assistência de uma doula traz impactos positivos para a saúde da mãe e do bebê. Um dos principais benefícios da doulagem é aumentar as chances de um parto normal, algo que ganha ainda mais relevância no Brasil por ser o país com o maior índice de cesáreas do mundo.

Uma revisão de estudos co-conduzidos pela pesquisadora da Organização Mundial da Saúde, Meghan A. Bohren, mostrou que esse tipo de assistência aumenta as chances de o bebê ter melhores índices Apgar, teste que avalia as condições de saúde do recém-nascido.

Segundo o estudo, também é menor a probabilidade de uso de fórceps e analgesias durante o parto. Outro estudo, recém publicado na revista científica Birth, confirma que a doulagem também pode reduzir os custos de saúde, uma vez que diminui o número de cesáreas – mais caras que o parto normal – e também o número de prematuros – que costumam ir para a UTI.

Doulas no Brasil

Vantagens semelhantes na saúde materna e do bebê foram encontradas em partos no Brasil. A pesquisa da obstetriz Ana Cristina Duarte no Doulas.com.br, com base no estudo que Klaus e Kennel publicaram em 1993 em “Mothering the mother”, mostra que a atuação da doula no parto pode diminuir em 50% as taxas de cesárea, em 20% a duração do trabalho de parto, em 60% os pedidos de anestesia, em 40% o uso da ocitocina e em 40% o uso de fórceps.

Também são mais altos os aspectos psíquicos e emocionais diretamente relacionados à saúde, como satisfação com a experiência do parto, redução da incidência de depressão pós-parto, diminuição nos estados de ansiedade e de baixa autoestima. Tantos benefícios, no entanto, estavam antes disponíveis apenas às famílias que podiam pagar por um serviço particular que custa, em média, R$ 1.500.

Felizmente, por iniciativa das próprias doulas e por reconhecimento dos impactos positivos da prática, estão aumentando o número de famílias cujos bebês nascem em hospitais públicos. E agora elas podem se beneficiar do suporte dessa profissional.

Em nível nacional, uma nova diretriz instaurada pelo Ministério da Saúde em marçodetermina que unidades de saúde devem incorporar medidas para tornar o atendimento às gestantes mais humanizado. Isso inclui a presença de doulas, mas depende da implantação em cada município. Assim, as mudanças vêm acontecendo localmente.

Em algumas cidades, como São Paulo, a atuação dessas profissionais passa a ser oferecida pela Prefeitura. Neste mês, inicia-se o primeiro curso de doulas totalmente gratuito, para formar as profissionais que atenderão nas Unidades Básicas de Saúde.

“A atuação da doula é uma das estratégias de humanização da assistência ao parto e nascimento, prestada às mulheres assistidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade de São Paulo. O acesso das doulas agora é garantido por lei e queremos que todas as gestantes tenham acesso a este direito, proporcionando uma assistência de qualidade e um atendimento humanizado”, ressalta Dr. Adalberto Kiochi Aguemi, coordenador da Área Técnica de Saúde da Mulher da cidade de São Paulo.”

Respaldo da lei

Em dezembro de 2016, foi sancionada a Lei da Doula em São Paulo, que permite sua presença nos partos, além do acompanhante da gestante. Em estados como Rio de Janeiro e Santa Catarina, a lei também já foi sancionada.

Nos últimos anos, o acesso das doulas nas maternidades foi motivo de polêmica, enfrentando até resistência por parte de alguns corpos médicos em relação à entrada delas nos centros cirúrgicos. Mas a categoria se fortaleceu e sua presença vem se tornando legítima e mais natural nos hospitais públicos e privados. Nas cidades em que a lei ainda não foi sancionada, a parturiente precisa escolher se ficará com o pai ou a doula ao seu lado.

Muito antes da jurisdição, o que valia eram os protocolos adotados em cada hospital. Foi por ter gostado do que determinava o protocolo da Maternidade Vitor Ferreira do Amaral, que Luciana Lima escolheu esse local em sua cidade natal, Curitiba, para ter seu bebê pelo Sistema Único de Saúde. No entanto, na hora da admissão hospitalar, a doula não teve entrada permitida e os planos foram por água abaixo, conta.

“Cheguei com nove centímetros de dilatação, fiquei sozinha e desamparada.”

Mais de 500 cidades

Com a presença das doulas como voluntárias ou a serviço dos hospitais públicos, as gestantes terão direito a esse acompanhamento sem pagar nada. Já são mais de 500 cidades brasileiras que sancionaram a lei, segundo a Artemis, ONG que atua na defesa dos direitos das mulheres.

Elas abarcam desde o sul do país, como no hospital Santo Antônio em Blumenau (SC), que atende principalmente pelo SUS, até o norte do Brasil, como na maternidade municipal Professor Bandeira Filho, em Afogados (PE).

As próprias doulas vêm articulando sua participação. A pequena Ubatuba, no litoral norte, tem 86 mil habitantes e um único hospital, a Santa Casa. No começo de julho, houve o primeiro Fórum de Humanização da Saúde. A convite da ONG Viva e Deixe Viver, administrador, provedor e os profissionais da Santa Casa de Ubatuba assistiram a apresentação do grupo Pétala, recém-formado coletivo de doulas da cidade. As dez integrantes propuseram se revezar, de maneira voluntária, na Santa Casa.

O que uma doula faz exatamente?

Ela pode acompanhar a mulher desde a gestação até o período pós-parto. Durante o parto, fica o tempo todo com a mulher, oferecendo recursos para alívio da dor, como uso do chuveiro quente ou bola de massagem, alternativas e liberdade para movimentos que facilitem a descida do bebê. Ela ajuda também a garantir que as escolhas da gestante – às vezes já documentadas em seu plano de parto – sejam respeitadas.

A presença da doula faz ainda mais diferença, segundo os estudos, em instituições públicas de saúde, que têm alto volume de atendimentos e recursos enxutos. Este é o caso da Santa Casa de Ubatuba, onde o suporte psicológico deveria ser realizado por um profissional da área. Porém, na esfera pública brasileira, a realidade é bem diferente do cenário ideal, como explica Dr. Fânio de Souza Santos, provedor da Santa Casa de Ubatuba.

“Nós adoraríamos ter um psicólogo para dar suporte, mas na hora de destinar recursos, ainda estamos na fase de privilegiar o básico, como adquirir um aparelho de raio-X”

Gestantes mais empoderadas, parto mais saudável

A psicóloga Flavia Penido, de São José dos Campos, explica porque é tão importante a presença da doula como suporte físico e emocional à gestante:

“Com o suporte de uma doula, o que era sofrimento pode definitivamente se tornar um momento de empoderamento e de confiança no corpo. A doula não faz parto, mas definitivamente ela faz parte do parto.”

A médica pediatra Diana Rangel, que atua na Santa Casa de Ubatuba, também destaca a importância do empoderamento da mulher:

“As gestantes chegam no hospital com apenas uma ou duas horas de trabalho de parto e já estão desesperadas pedindo cesárea, sem saber lidar com o trabalho de parto, assim, acabam ficando à mercê da dor ou de qualquer pessoa que diga ‘esse bebê é muito grande, não vai nascer de parto normal”

Antes e depois do parto

Para a pediatra, a participação das doulas durante o pré-natal também é importante para superar o impacto da falta de informação de saúde das gestantes.

“O ponto crítico que temos vivenciado em Ubatuba é o pré-natal, com um índice aumentado de doenças graves, como sífilis, não tratadas adequadamente.”

As doulas do coletivo Pétala visitam os postos de atendimento nos bairros carentes em Ubatuba e conversam com as famílias. Encontros com casais grávidos são uma das formas de exercer melhores práticas em saúde e influenciar na melhora dos índices. Um exemplo é o Programa pela Primeiríssima Infância (PPPI), da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Ainda com o exemplo de Ubatuba, as profissionais relatam que o pós-parto também pode ser aprimorado com o auxílio de doulas, especialmente na amamentação, como conta Luciana Alencar:

“O acompanhamento da doula foi relevante não somente na hora do parto, mas no pós-parto também, quando amamentar acabou se tornando até mais difícil que parir”

A diferença na qualidade do parto e a melhora nos indicadores de boas práticas de saúde materno-infantil vem fazendo com que o trabalho delas seja cada vez mais reconhecido pelas famílias e outros profissionais de saúde. Marina Pedrosa, integrante do Grupo Pétala, conclui: “É como se cada um dos agentes representasse uma pétala de uma flor coletiva, plantada há anos, mas que finalmente agora parece estar desabrochando em Ubatuba e em muitas cidades brasileiras.”

Camila Goytacaz é jornalista, escritora e mãe três vezes. Autora do livro ‘Até breve, José’

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