O que você precisa saber sobre feminicídio, um crime silenciado, por Silvia Chakian

04 de agosto, 2017

A expressão “femicídio” foi utilizada pela primeira vez em 1976, em julgamento realizado perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres na cidade de Bruxelas e posteriormente resgatada, em 1992, por Diana Russell e Jill Radford na obra Femicide: The Politics of Woman Killing, quando evidenciou-se a não acidentalidade da morte violenta de mulheres.

(HuffPost Brasil, 04/08/2017 – acesse no site de origem)

Em 2004, a ONU analisou a situação da violência de gênero no Chile e conceituou o “femicídio íntimo” como:

“la privación dolosa de la vida de una mujer cometida por um hombre com quien la víctima tenía o tuvo una relación íntima, de convivência, noviazgo, amistad, compañerismo o relaciones laborales, de vecindad, ocasional o afines a éstas”. (Conforme o livro Femicídio: algemas invisíveis do público-privado, de Suely Souza de Almeida).

Mas, foi a antropóloga mexicana Marcela Lagarde y de Los Ríos que a partir da onda de mortes violentas de mulheres na América Latina, especialmente na região de Cidade Juarez/México, consagrou o vocábulo “feminicídio” com maior alcance, para defini-lo como o conjunto de violações aos direitos humanos das mulheres, no contexto de uma inexistência, debilidade do estado de direitos, num quadro de violência sem limites. Ou seja, um conjunto de delitos de lesa humanidade, que compreende crimes, sequestros e desaparecimento de mulheres num espectro de colapso institucional, revelando-se também um delito de estado, que ocorre em tempos de guerra e em tempos de paz.

Para Lagarde, o feminicídio pode ser praticado pelo atual ou ex-parceiro da vítima, parente, familiar, colega de trabalho, desconhecido, grupos de criminosos, de modo individual ou serial, ocasional ou profissional; e, em comum, denotam intensa crueldade e menosprezo para com as mulheres, tratadas como mero objetos e, portanto, descartáveis. Trata-se, pois, de crime de ódio contra as mulheres, para o qual concorre de forma criminosa o silêncio, a omissão e a negligência por parte das autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses delitos.

Para a antropóloga Rita Laura Segato, o impulso de ódio com relação à mulher se explica como consequência à violação feminina às duas leis do patriarcado: a norma de controle e possessão sobre o corpo feminino e a norma de superioridade, de hierarquia masculina. Sob essa ótica, a reação de ódio ocorre quando a mulher exerce autonomia no uso do seu corpo, desrespeitando regras de fidelidade ou de celibato. Ou, ainda, quando a mulher ascende posições de autoridade, poder econômico ou político, tradicionalmente ocupado por homens, desafiando o delicado equilíbrio assimétrico.

O fato é que, com o aprofundamento dos estudos e pesquisas sobre a violência de gênero, o debate estendeu-se também para o campo legislativo, o que se refletiu nas denominadas leis de primeira geração, que trataram do tema da violência contra a mulher, seguidas das leis de segunda geração que, influenciadas pelas diretrizes da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher de Belém do Pará (1994), trouxeram conteúdo mais amplo, de proteção integral do gênero feminino. Seguiu-se então, no contexto latino americano, uma sucessão de modificações legislativas recentes, por meio das quais as nações optaram por atribuir à questão do feminicídio, tratamento como delito autônomo, agravante de pena ou figura qualificada do delito de homicídio.

No Brasil, não bastasse a pressão internacional para tratar de forma específica o tema, em agosto de 2013, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instaurada para investigar a violência contra a mulher no Brasil, formada por 22 congressistas (11 deputados federais e 11 senadores), após ter analisado ao longo de dois anos, cerca de 30 mil documentos e realizado diligências em abrigos, delegacias especializadas de atendimento à mulher, institutos médicos legais, juizados e varas especializadas, nos Estados de Pernambuco, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Pará, Goiás, Amazonas, Ceará, Roraima e Distrito Federal, apresentou relatório final que, dentre outras medidas, sugeriu a iniciativa de um projeto de lei para tipificação do crime de feminicídio, com a seguinte observação:

“a importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social, por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido “crime passional”. Envia, outrossim, mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas”

Nesse contexto, em 9 de março de 2015 foi sancionada a Lei 13.104, conhecida como Lei do Feminicídio, que dispõe sobre nova forma de qualificadora para o crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal), toda vez em que o assassinato se der contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, ou seja, por questões de gênero, o que ocorre, segundo o inciso I, quando envolver violência doméstica e familiar ou; inciso II, quando envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Cabe aqui destacar a alusão que o projeto que tipificou o feminicídio faz à Lei Maria da Penha:

“Tivemos em nosso País um grande avanço no combate à impunidade e à violência contra a mulher com a edição da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 2006). Com a promulgação dessa lei, o Estado brasileiro confirmou seus compromissos internacionais e constitucionais de enfrentar todo o tipo de discriminação de gênero e de garantir que todos, homens e mulheres, que estejam em seu território, gozem plenamente de seus direitos humanos, que naturalmente incluem o direito à integridade física e o direito à vida. A lei deve ser vista, no entanto, como um ponto de partida, e não de chegada, na luta pela igualdade de gênero e pela universalização dos direitos humanos. Uma das continuações necessárias dessa trajetória é o combate ao feminicídio”.

Segundo a socióloga Wânia Pasinato, dentre as condições estruturais para que um crime de feminicídio se verifique estão, em primeiro lugar, a ordem patriarcal, que pressupõe a desigualdade estruturante, o desequilíbrio dos papéis, a subordinação da mulher e que permeia estruturalmente o funcionalmente das instituições. Além dela, o gênero da vítima, feminino, como determinante para a violência. Por fim, a constatação de que o feminicídio caracteriza um fenômeno social e não um caso isolado, do que decorre a constatação de que essas mortes violentas são evitáveis.

Nesse contexto, em abril de 2006 a ONU Mulheres, a antiga Secretaria de Política para as Mulheres do Governo Federal, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, com o apoio da Embaixada da Áustria, publicaram documento intitulado Diretrizes Nacionais Feminicídio – investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres.

Ainda segundo a coordenadora do projeto, Wânia Pasinato, o documento se baseia em algumas premissas, dentre as quais se destaca a disposição para mudar o olhar sobre o crime, desde o primeiro profissional acionado para comparecer ao local dos fatos, o que significa que desde esse momento ele deve questionar internamente se aquela morte ocorreria daquela forma, naquele determinado contexto, caso a vítima não fosse mulher.

Outra premissa contemplada nas diretrizes está relacionada à linguagem empregada desde o momento da notícia da morte até o julgamento do caso, passando obviamente pela forma como a situação é reportada por agentes públicos à imprensa e à sociedade: essa linguagem não pode ser reprodutora da violência, culpabilizando a mulher ou acompanhada de estereótipos de gênero. As diretrizes também destacam a importância de reconhecer e promover os direitos das vítimas sobreviventes e indiretas, os dependentes e familiares, assim como a adoção de medidas de preservação e reparação da memória das pessoas.

Portanto, se é verdade que a identificação de uma morte violenta como feminicídio nem sempre é possível logo no momento em que o crime é notificado, também é certo que essa possibilidade não deve ser descartada como linha de investigação, sobretudo quando presentes determinados elementos que nos dão indícios significativos de que o assassinato tenha ocorrido por circunstâncias do sexo feminino, isto é, de gênero.

Não se trata de um crime passional ou ato inesperado de loucura, mas sim de manifestação de poder.

Nesse contexto, a própria Lei 13.104/15 nos traz as hipóteses em que essas circunstâncias se verificam: no contexto de violência doméstica e familiar, conceito bem definido na Lei Maria da Penha e que também abrange as relações íntimas de afeto, findas ou não, estáveis ou duradouras. Ou seja, na hipótese de o crime ter sido praticado por parceiro ou ex parceiro da vítima, independentemente de coabitação, ou por alguém com quem ela tenha convivido, por mais esporádica que tenha sido essa relação, temos esse indicador.

Outra hipótese da lei diz respeito ao contexto de menosprezo ou discriminação contra a mulher, conceito menos difundido, mas igualmente relevante e que abarca os casos de misoginia, mortes associadas à violência sexual (manifestação mais evidente da desigualdade de gênero) ou à mutilação de órgãos ou partes do corpo relacionadas ao feminino, dentre outras circunstâncias. Ou seja, quando a morte violenta está associada a um estupro ou a golpes direcionados ao rosto, órgãos genitais femininos, o que frequentemente se dá mediante emprego de golpes sucessivos com o uso das mãos ou de outros instrumentos, estamos diante de mais um indicador.

Nessa análise da morte por circunstâncias de gênero, é imprescindível entender como se dá, ainda hoje, a distribuição de poder, de papeis sociais e sexuais na nossa sociedade, é dizer, a persistência das relações assimétricas de poder, em que o masculino exerce domínio sobre o feminino, histórica e culturalmente. A partir daí, verificar que quando estamos diante de um feminicídio, não se trata de um crime passional ou ato inesperado de loucura, mas sim de manifestação de poder, de controle da sexualidade da vítima, de resposta ao seu desejo de emancipação social ou econômica, de desprezo pela sua condição de ser mulher.

Nessa investigação, que deve se pautar pela perspectiva de gênero para analisar as características da vítima, do autor da violência e das circunstâncias do crime, o fato de seus bens materiais terem sido destruídos ou subtraídos, por exemplo, não necessariamente afastará o contexto de crime de feminicídio. Muito ao contrário, é frequente que a violência física extrema do feminicídio esteja associada a outros tipos de violências, como a moral, a sexual, a psicológica e também a patrimonial, manifestada pela subtração de bens da vítima.

A diminuição desses índices inaceitáveis implica, necessariamente, conhecer os aspectos que permeiam a violência de gênero e o contexto complexo dessas mortes.

Por fim, nunca é demais ressaltar que ainda hoje, no mês em que a Lei Maria da Penha completa 11 anos de existência, é no ambiente das relações e do lar – onde deveria ser o refúgio de paz das famílias – que, paradoxalmente, muitas mulheres vivem momentos dos mais dolorosos. De fato, constata-se com imensa tristeza que o machismo, que caminha de mãos dadas com a violência, juntos, têm se revelado os principais algozes dessas mulheres em seus lares. Seja ceifando suas vidas e deixando órfãos seus filhos, seja causando as piores sensações de desproteção, medo e dor.

A pesquisa “Mapa da Violência 2015 – Homicídios de Mulheres no Brasil”, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais, revela que entre 1980 e 2013, morreu um total de 106.093 mulheres, vítimas de homicídio. Efetivamente, o número de vítimas passou de 1.353 mulheres em 1980, para 4.762 em 2013, um aumento de 252%. Se olharmos para um momento mais recente, o número de mulheres brancas assassinadas entre 2003 e 2013 diminui em 10%, mas entre mulheres negras mortas o dado é arrasador: crescimento de 54%.

A diminuição desses índices inaceitáveis implica, necessariamente, conhecer os aspectos que permeiam a violência de gênero e o contexto complexo dessas mortes, em todas as suas circunstâncias, caso contrário, apesar da existência da legislação específica, restarão comprometidos a visibilidade do fenômeno, assim como a investigação, a apuração, o julgamento e consequentemente também a prevenção dessas mortes.

Silvia Chakian é Promotora do MP-SP, coordena Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica

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