A dificuldade que a Justiça enfrenta para cobrar homens que agrediram mulheres

08 de agosto, 2017

Levantamento exclusivo do HuffPost Brasil mostra que, em 5 anos, acordo para agressor de mulher ressarcir o INSS tem 14 ações inconclusas

(HuffPost Brasil, 07/08/2017 – acesse no site de origem)

Em julho de 2012, o Instituto Maria da Penha e o Ministério da Previdência Social firmaram um convênio para combater a violência doméstica.

De acordo com o dispositivo, a Advocacia-Geral da União poderia ajuizar ações regressivas de violência contra a mulher e cobrar dos agressores. Os criminosos deveriam ressarcir os cofres públicos, já que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) gasta com pensões concedidas às vítimas e familiares como consequência das violências.

“A medida tem um caráter ressarcitório, de cobrança, mas acima de tudo tem uma medida punitivo pedagógica para incentivar a redução desses casos de violência doméstica”, explica o procurador federal Fernando Maciel, coordenador da ETR-Regressivas, em entrevista ao HuffPost Brasil.

Porém, cinco anos após o convênio, apenas 14 ações foram ajuizadas e nenhuma foi concluída. Os dados foram obtidos pelo HuffPost Brasil, por meio da Lei de Acesso a Informação.

“De fato, nós escolhemos alguns casos para submeter ao poder Judiciário. O que acontece é que essa ação regressiva no caso da Maria da Penha não tem um fundamento legal expresso, assim como já existe no caso da ação regressiva por acidente de trabalho, por exemplo. Em outras palavras, é uma novidade jurídica”, analisa Maciel.

A violência contra a mulher não é um fato novo. Porém, a falta de informações e as barreiras culturais tornam quase inexistentes as estatísticas oficiais sobre feminicídios e violência contra a mulher – mesmo após leis como a Maria da Penha e a do feminicídio.

De acordo com o Mapa da Violência, 13 mulheres são vítimas de homicídio por dia. Desse total, sete mulheres são feminicídios, no qual o autor é um familiar, parceiro ou ex-parceiro.

Segundo o procurador, não adiantaria que fossem ajuizados diversos casos de violência contra a mulher logo após o firmamento do convênio.

“Corríamos o risco de que o judiciário entendesse que o INSS não tem direito a cobrar esse valor e julgar todas as ações improcedentes. Nós ajuizamos esses casos a título experimental e aguardamos um pronunciamento da Justiça”, explica.

O tal pronunciamento chegou cinco anos mais tarde. Em fevereiro de 2017, o INSS teve uma decisão favorável no Superior Tribunal de Justiça sobre o caso de um feminicídio que pode vir a se tornar um exemplo na interpretação e no entendimento do convênio diante das leis.

“Essa decisão foi levada até o Supremo Tribunal Federal e ela transitou em julgado em 10 de junho. Agora, nós temos um sinal verde da Justiça”, argumenta o procurador.

Neste caso, o criminoso assassinou sua companheira no Rio Grande do Sul. Como ele é aposentado, deverá ter uma parcela descontada de sua pensão do INSS. Após o trânsito em julgado no STF, o caso retorna ao tribunal de 1ª instância e a pena será executada. A tendência é de que casos similares sejam julgados com maior eficiência nos tribunais menores.

De acordo com o advogado, o próximo passo é um trabalho em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que o INSS seja informado de todos os processos em tramitação no Brasil que envolvam violência doméstica ou feminicídio.

Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que a taxa de feminicídios no País é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Em tese, poderiam ser milhares de casos de ações de regresso. A partir do momento em que a Justiça informar a Procuradoria Federal sobre os processos, vamos verificar se o caso gerou algum tipo de prejuízo para a previdência em forma de benefício para essas mulheres e seus familiares e, consequentemente, vamos começar a ingressar com essas ações retroativas”, explica Fernando Maciel.

O HuffPost Brasil pediu acesso aos dados de denúncias e de condenações enquadradas na Lei Maria da Penha. Porém, até a publicação dessa reportagem, o CNJ afirmou que não possuía dados em nível nacional.

Proteger ou cobrar?

A juíza e pesquisadora do grupo Direito, Gênero e Identidade (FGV/SP) Camila de Jesus Mello Gonçalves chama atenção para a ausência de uma norma que obrigue o Estado a conceder os benefícios para as mulheres vítimas de violência e seus dependentes.

“Já existe um projeto de lei para assegurar e instituir um salário mínimo para mulheres em situação de violência. Mas ainda não é uma norma, por exemplo. É como se o convênio [entre o INSS e o Instituto Maria da Penha] tivesse sido criado antes da obrigação de pagamento do benefício. Se o estado-pagador não está pagando, o estado-cobrador não tem como cobrar os ressarcimentos”, explica em entrevista ao HuffPost Brasil.

Para a pesquisadora, além de cobrar dos agressores, o Estado tem papel fundamental na proteção das mulheres por meio de leis e redes de enfrentamento contra violência.

“Quando falamos em Estado, precisamos pensar nos três poderes. O legislativo avançou com leis como a Maria da Penha. Mas é o executivo que tem o maior papel. Ele é que proporciona por meio das redes de enfrentamento da violência um serviço mais direcionado a mulher de apoio psicológico, assistência social e financeira”, explica.

“Muitas vezes as mulheres não levam a situação de violência para as delegacias, querem que o agressor melhore e que se trate.”

Ela acrescenta que quando não há a denúncia, o dado não chega ao legislativo. “É uma violência existente e real mas invisível, e que muitas vezes é atendida por esses órgãos menores, como o CAPS.”

Procurada pelo HuffPost Brasil, a Secretaria de Políticas para Mulheres afirmou que não existe levantamentos oficiais de denúncias ou condenações de violência contra a mulher. O que há é um balanço da ouvidoria do disque 180 sobre os relatos recebidos.

Desde sua criação em 2005, a Central de Atendimento à Mulher já registrou 5.965.485 atendimentos. De acordo com os dados do relatório da ouvidoria, somente em 2016, a Central realizou 1.133.345 – são mais de três mil atendimentos por dia.

Porém, apenas 12,38% (140.350) destes atendimentos corresponderam a relatos de violência.

Em comparação com o ano de 2015, os relatos de violência aumentaram 54% nos registros de cárcere privado e 121% nos casos de estupro. São, em média, 16,51 relatos de violações por dia.

Em 60,53% dos casos de violências relatados as vítimas são mulheres negras.

A pesquisadora explica que a situação das estatísticas é bem mais complexa e não se limita a quantas pessoas são denunciadas ou condenadas.

“Muitas vezes a mulher chega na audiência e fala que não lembra o que aconteceu. Ela quer proteger o acusado. Você pode constranger essa mulher e dizer que ela está mentindo, já que tinha feito a denúncia na delegacia. Essa mulher pode vir até a ser processada. Porém o grupo do Ministério Público tem uma orientação de não processar as mulheres nesse caso. A gente acaba acolhendo esse discurso que revela que ela está em uma situação muito difícil. É preciso acolher essa mulher e empodera-la”, analisa.

Porém, esse acolhimento muitas vezes vai gerar uma absolvição do réu simplesmente porque não há provas contra ele, já que muitas vezes os crimes de violência acontecem em âmbito privado.

“Isso revela que há uma impunidade? Não. Revela que a gente não está conseguindo cuidar dessa mulher. O foco da proteção da mulher é na mulher. Como a gente está cuidando delas?”, questiona a juíza. “A condenação tem um efeito imenso. Ela sente que o Estado está do lado dela. Mas apenas quando ela consegue encarar essa violência.”

Ana Beatriz Rosa 

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