Misoginia na música: não é só uma violência de leve, por Bárbara Aragão e Sueine Souza

19 de janeiro, 2018

Antes de expor ou iniciar qualquer análise sobre os fatos que nos fizeram escrever este artigo, é importante esclarecer sobre o que estamos tratando. Em síntese: misoginia e apologia ao estupro. Mais especificamente, misoginia difundida pelo meio musical e as armadilhas que nos fazem aceitar essa apologia de forma tão passiva.

(Justificando, 19/01/2018 – acesse no site de origem)

O termo misoginia deve ser entendido com o sentimento de repulsa, desprezo e/ou aversão às mulheres. Não tem nada a ver com desejo sexual, mas sim com o sentimento interno de raiva, seja a mulher seu objeto de desejo ou não.

Misoginia, portanto, é aversão às pessoas do gênero feminino. Não se trata de machismo.

É mais grave, não é simples reprodução de costumes que limitam os direitos da mulher. É repulsa, ódio que motiva maus tratos e ridicularização; é o ato de ter prazer com o sofrimento e a humilhação da mulher, seja produzindo-o ou o presenciando.

Essa depreciação das mulheres, muitas vezes disfarçada, foi evidenciada na recente música “surubinha de leve”, que vem ganhando destaque nas mídias sociais, motivando protestos e discussões acaloradas.

Eis um trecho da música:
Hoje vai rolar suruba 
Só uma surubinha de leve
Surubinha de leve
Com essas filha da puta [sic]

A última frase revela um claro desprezo àquelas mulheres com as quais vão se relacionar. Não é só machismo. É destilação de ódio, que claramente não resultará em qualquer tipo de relação saudável, seja casual ou não. É uma relação doentia, abusiva, violadora. E o pior: difundida banalmente à massa social, inclusive para adolescentes com personalidade em formação.

É necessário destacar que a música, assim como a propaganda, teatro, filmes, etc são veiculadores de mensagens, ideologias e podem ser manifestações culturais que reforçam uma cultura de violência contra mulher, já tão naturalizada no seio social. Ainda que diretamente a música não cause violência, ela opera por reforço uma imagem de submissão e inferioridade feminina.

Prova disso é, ainda, a segunda parte da música que acaba por ressaltar a banalização do estupro na cultura brasileira:

Taca a bebida 
Depois taca a pica
E abandona na rua
 

Diante disso, nos perguntamos: como isso por ser aceito, como pode ter sido aprovado por uma gravadora, ter pessoas defendendo? Como pode figurar entre as mais ouvidas nas plataformas musicais?

A resposta está na própria manifestação do cantor, em sua rede social, ao defender sua canção, alegando que “apenas fiz a música da realidade que vivo e muitos brasileiros vivem”.

E o que se tem é que a produção cultural está entrelaçada com a sociedade, é um produto e um agente desta. Sendo assim, infelizmente, da mesma forma que o ódio e a intolerância existentes na sociedade influenciam o meio musical, igualmente, a música também acaba reforçando ainda mais essa violência, em um processo de retroalimentação. Reforça-se o preconceito contra a mulher e naturaliza-se ainda mais a cultura de sua desumanização. Ou seja, opera-se por reforçar o ódio.

Claro que a incitação da violência contra a mulher não é uma novidade no meio musical, que permeia até músicas infantis como “Maria Chiquinha” [“então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha/ Então eu vou te cortar a cabeça/ que cocê vai fazer com o resto, Genaro, meu bem?/Que cocê vai fazer com o resto?/O resto? Pode deixar que eu aproveito”] , pagode [“Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela/ vou lhe dar uma banda de frente/quebrar cinco dentes e quatro costelas” – Zeca Pagodinho], samba [“Mas que mulher indigesta/merece um tijolo na testa”- Noel Rosa], rock [“No coletivo o que manda é a lei do pau/quem esfrega nos outros/quem não tem só se dá mal – Raimundos] e demais ritmos musicais.

Destaca-se que doses aparentemente inofensiva de violência estão sendo aceitas principalmente sob o argumento de que tais músicas apoiam a liberdade sexual feminina e difundem a cultura de determinados nichos sociais.

Contudo, é preciso separar o joio do trigo: músicas sobre sexualidade feminina são sim libertadoras, conquanto não contenham manifestações misóginas e objetificadoras da mulher. Afinal, rebolar a derrière não é ser um. Ser interessada em sexo não é estar disponível ao sexo a todo momento. Ter o corpo formado não é estar preparada para ter relações sexuais.

Logo, qualquer estilo de música, não importa a sua origem, o artista, sua relevância ou popularidade, tem que respeitar a dignidade e o valor da mulher como ser humano.

É óbvio, sabemos.

Mas o óbvio ainda não é praticado.

Então lutemos até que seja. Em conclusão, nos atrevemos a dizer que, se ultrapassarmos essas pequenas grandes armadilhas do patriarcado, sem dúvida chegaremos ao ponto em que reflexões como esta não sejam mais necessárias.

Bárbara Aragão e Sueine Souza são Procuradoras do Estado de São Paulo. 

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