Vidas fora do útero e o cativeiro social, por Gisele Pereira

28 de fevereiro, 2018

O habeas corpus que permite a grávidas e mães cumprir prisão domiciliar antes do julgamento corrige uma das várias injustiças do sistema carcerário

(CartaCapital, 28/02/2018 – acesse no site de origem)

Na terça feira 20, o Supremo Tribunal Federal deu um habeas corpus às mulheres gestantes e mães de crianças até 12 anos na condição de prisão provisória, para cumprir prisão domiciliar até o julgamento.

A decisão do Supremo segue o pedido de habeas corpus coletivo apresentado pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos em maio de 2017 “em favor de todas as mulheres gestantes e mães de crianças presas preventivamente no sistema penitenciário nacional e de seus filhos e filhas, quer gestados no cárcere, quer institucionalizados em decorrência da privação de liberdade das genitoras.”

O texto do HC expõe as gravíssimas violações aos direitos fundamentais das mulheres e das crianças, apontando que a “precariedade das instalações prisionais, sua inadequação às necessidades femininas e a desatenção às condições de exercício de direitos reprodutivos caracterizam tratamento desumano, cruel e degradante, nos termos do art. 5º, III, da Constituição Federal.

A esse tratamento foi submetida Jéssica Monteiro, de 24 anos. Mãe de uma criança de 3 anos, ela estava prestes a ter outro filho quando foi presa em 10 de fevereiro, sábado de Carnaval, por tráfico de drogas. Portava 98 gramas de maconha. No dia seguinte, Jéssica entrou em trabalho de parto e, dois dias depois de dar à luz, foi obrigada a retornar ao cárcere com seu filho recém-nascido.

Apesar de ré primária e sem ter cometido um crime violento, ela não obteve a soltura. Em audiência de custódia ocorrida enquanto ainda estava no hospital, o magistrado responsável pelo caso argumentou que a libertação de Jéssica representaria um perigo e um dano social, convertendo sua prisão em flagrante para prisão preventiva. “É evidente que a grande quantidade e diversidade de entorpecente encontrada supõe a evidenciar serem os averiguados portadores de personalidade dotada de acentuada periculosidade”, anotou o juiz.

O habeas corpus de Jéssica foi concedido dois dias depois de ela ter voltado ao cárcere. A foto da jovem com seu bebê em uma cela de 2 metros quadrados em São Paulo estampou os noticiários e chocou um país que ainda se recuperava do entorpecimento carnavalesco. A imagem dividiu atenções com as notícias sobre o desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti, que sacudiu a avenida com uma crítica forte e contundente dos mecanismos sociais escravizantes.

A história de Jéssica é mais um expoente das injustiças e iniquidades vividas pela população pobre, em sua maioria preta, que desfilou a Paraíso do Tuiuti.

Como expressa o samba-enredo em uma de suas estrofes, a história de Jéssica é uma entre tantas que “deu no noticiário/ com lágrimas escrito”, consequência de um sistema desigual e injusto.

 A escravidão, por meio do cativeiro social desvelado no samba-enredo, não se restringe à prisão com grades. É a população pobre, em sua maioria negra, acometida com a exploração econômica, a discriminação, a miséria e a violação de direitos fundamentais cerceada em um horizonte restrito de possibilidades de sobrevivência do qual poucos conseguem escapar.

O encarceramento em massa desta mesma população, pobre e preta, é mais um dos mecanismos de controle que mantém a escravidão de maneira dissimulada após 130 anos de sua abolição oficial.

Cresce estrondosamente o número de mulheres submetidas a esta condição. Segundo dados do órgão do Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional, o encarceramento feminino aumentou cerca de 700% em 16 anos.

Estima-se que mais de 80% das mulheres encarceradas são mães e responsáveis principais ou únicas pelo sustento e cuidado dos filhos. O encarceramento dessas mulheres gera, portanto, um grave dano social, de acordo com o próprio Depen.

O encarceramento feminino está relacionado em sua maioria (cerca de 64%) ao tráfico de drogas, sem uso da violência. Mulheres pobres e  negras, violadas em seus direitos e dignidade, são também aquelas que mais ocupam as celas dos cárceres brasileiros.

Essas mulheres sofrem ainda a violação de seus direitos reprodutivos. Como mostra o estudo realizado pela Fiocruz em 2017, “uma em cada três mulheres grávidas em presídios do País foi obrigada a usar algemas na internação para o parto, e mais da metade teve menos consultas de pré-natal do que o recomendado”.

Ou como descreve o documento de Amicus Curiae apresentado pelo IBCcrim, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e a Pastoral Carcerária: “O acesso a tratamento de saúde, acompanhamento da gestação, alimentação adequada, condições ambientais, tanto mentais quanto físicas, a mulheres em alto grau de vulnerabilidade em decorrência do ciclo da maternidade são tolhidos como resultado da inserção no sistema penitenciário. Além da violação dos direitos reprodutivos da mulher, há comprovação inquestionável dos efeitos irreversíveis decorrentes da institucionalização dos fetos, violando também previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente”.

Neste caso, não só os direitos da mulher foram violados, mas o do recém-nascido que despontava para o mundo na experiência do cativeiro, um ambiente insalubre e degradante.

A esse respeito, a mesma Amicus Curiae ressalta: “Famigerados, notórios e precários são os cárceres brasileiros, neles incluídos o sistema prisional paulista, locais nocivos não só à sanidade mental, como também ao sistema imunológico de um adulto, o que dizer para um recém-nascido, que está se adaptando na vida extra-uterina”.

Há a necessidade de defesa e proteção desta vida fora do útero que se encontra em situação vulnerável por obra do próprio Estado e suas instituições jurídicas e penais.

Sobre estas vidas, queremos convidá-los a refletir, aproveitando o ensejo do tempo quaresmal, cuja Campanha da Fraternidade deste ano trata de violência. Entre elas, a privação da liberdade, dos direitos fundamentais e da dignidade.

Pensemos e lutemos em prol destas vidas, que deixaram o útero há pouco ou há algum tempo, em suas histórias, de seus direitos e, sobretudo, contra os cativeiros sociais aos quais são submetidas.

Lutemos pela liberdade real de todos, pois, como afirmou certa vez Nelson Mandela, ninguém é realmente livre até que o último indivíduo o seja.

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