Mulheres que não querem ter filhos reivindicam sua escolha

28 de fevereiro, 2018

Elas não são infelizes, não têm medo de ficarem sozinhas quando a velhice chegar e não, elas não vão mudar de ideia. A RFI Brasil conversou com três brasileiras entre 34 e 42 anos sobre a escolha de não ter filhos, dentro de uma sociedade historicamente repressora com a não-maternidade e de um mercado global que não hesita em transformar crianças em mercadorias tentadoras. A reportagem conversou ainda com a socióloga francesa Anne Gotman, professora emérita no CNRS, o Centro Nacional da Pesquisa Científica, e autora do livro “Sem crianças, o desejo de não ter filhos”, publicado na França em 2017.

(RFI, 28/02/2018 – acesse no site de origem)

Elas são cada vez mais numerosas, seja na França ou no Brasil, e, em ambos os casos, são questionadas o tempo todo pela decisão que tomaram: as mulheres childfree, que não querem ter filhos. A socióloga francesa Anne Gotman explica que, “para início de conversa”, existe uma diferença essencial entre o termo childfree e o childless, usado anteriormente para designar as mulheres sem crianças. “Childfree denota uma escolha, não uma falta”, analisa. “O que mudou é que antes eram escolhas individuais e, agora, com a facilidade das redes, essas escolhas se tornaram um movimento coletivo, e essa diferença é determinante sociologicamente”, explica a especialista em relações sociais do CNRS.

A socióloga conta que, na França, as mulheres sem filhos denunciam bastante a estigmatização de que são objeto, devido ao seu não-desejo de maternidade. “Isso tudo começou no fim do século 20 na Inglaterra e nos Estados Unidos, claro. As mulheres nos Estados Unidos são muito mais avançadas e organizadas do que nós, elas já fazem reivindicações institucionais e comerciais, como, por exemplo, as childfree zones, ou seja, áreas com menos impostos para pessoas que não têm filhos”, explica Gotman.

Desejo de não serem marginalizadas

A pesquisadora francesa considera interessante, no entanto, o fato das mulheres [francesas] que optaram por não terem filhos, estudadas por ela em seu livro, exprimem um desejo comum: “no fundo, elas prefeririam que não existisse uma regra, um padrão determinante a ser seguido, uma norma”. “Essas mulheres e homens não querem ser considerados marginais. Isso é um dado novo, e comum a muitos movimentos, como o dos homossexuais. Nos anos 1970, estar à margem era algo desejável, buscava-se essa rebelião. Hoje não queremos mais estar fora da norma – mesmo que seja tudo bem estar fora da norma-, não queremos nem mesmo reconhecer que existe uma norma, um padrão”, pontua.

“Não vejo como funcionarmos em sociedade sem assumirmos esses padrões”, diz Anne Gotman, “a menos em sociedades altamente neoliberais, ordenadas a partir do mercado, que seja, talvez, para onde caminhamos”. “Espero, no entanto, que pessoas sem filhos não sejam desprezadas, malvistas, suspeitas de alguma coisa, que elas sejam melhor consideradas, elas são completamente legítimas quando fazem esta escolha, isto é o mínimo que podemos desejar para elas”, completa a socióloga.

“Na França, onde a sociedade é laica, não sofremos muito com recriminações religiosas, a questão não é da ordem do ‘divino’, mas do ‘natural’. Diz-se que é ‘natural ter desejo de ter filhos’ e que as mulheres que não têm esse desejo têm ‘algo errado’. Ou de um ponto de vista mais acusador, elas mulheres seriam ‘egoístas’, ‘inconsequentes’”, contextualiza Gotman.

As causas

“A Alemanha é hoje o local na Europa onde existem mais mulheres sem filhos, cerca de 20 a 25% de mulheres que não querem ser mães nos próximos 10 anos. A principal causa é que essas mulheres desejam dar continuidade a suas carreiras profissionais, e como os papéis domésticos continuam desiguais, com as mulheres tendo que assumir muito mais tarefas do que seus parceiros dentro de casa, bom, elas optam então por não terem filhos”, explica a socióloga.

“Poderíamos também perguntar porque o trabalho sempre prevalece em relação aos filhos na escolha das mulheres, atualmente. A estagnação dos salários, principalmente nas classes mãos populares, é com certeza uma resposta verdadeira”, analisa Gotman. “Podemos também dizer, e uma causa não exclui a outra, que cuidar dos filhos não seja uma escolha valorizada. Uma mulher que cuida das crianças não vale lá muita coisa. Para mim, esta é uma questão muito interessante. Eu me lembro do historiador Phillipe Ariès que dizia que, no curto prazo, o valor da criança, após estar em forte alta no século 18, começa a descer vertiginosamente. Ter filhos não é mais ‘tão importante’ quanto antes”, diz.

Mas a criança não continua sendo “vendida” como um valor importante, pelo menos pela publicidade? “Sim, mas aí estamos falando de mercado, onde filhos não são nada mais do que bens de consumo, e individuais. Mas, a meu ver, até o mercado está se reposicionando a respeito, porque descobriu esse novo filão de mulheres (e homens) que não querem ter filhos”, analisa a pesquisadora.

Sobre a recente pesquisa em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica (Ipea), que mostra a evolução das famílias sem filhos no Brasil entre 2004 e 2014 [onde, por exemplo, o percentual de casal sem filhos pulou de 13% para 19% em uma década], a socióloga francesa é taxativa: é um salto impressionante, muito importante. Esses números são semelhantes aos alemães, o maior índice do continente europeu”, finaliza.

Histórias reais de brasileiras que decidiram não serem mães

Lana Priscila Lemos Corrêa, 34 anos é uma engenheira brasileira com mestrado em energia e desenvolvimento sustentável que não quer ter filhos. Casada há quase seis anos, a decisão foi apoiada pelo marido “a 100%”, segundo conta. “Somos um casal em consenso sobre não ter filhos. Mas existe pressão por todos os lados. A dos desconhecidos não me atinge, mas tenho amigos próximos que sempre repetem ‘poxa, vocês dariam excelentes pais’. Minha mãe não entende e sempre pede um neto, eu peço para ela parar, mas depois volta. Essa pressão ainda me chateia muito, mas não posso fazer nada”, relata.

“Eu achava que aqui na França essa questão seria mais fácil, mas todas as vezes que falamos com amigos ou conhecidos franceses sobre isso eles se chocam e nos enchem de porquês, mesmo pessoas mais jovens. Mas não vejo tanta condenação como no Brasil, onde você é considerada egoísta, sem amor e incompleta se não tiver filhos”, contemporiza Lana. A engenheira conta ter tomado essa decisão logo depois de ter “saído da bolha escola/igreja/casa dos pais” e de ter percebido “que não queria colocar no mundo pessoas passíveis de sofrer todo tipo de preconceito e as misérias da atualidade”. “Juntou-se a isso o fato de eu ficar mais velha e independente e, cada vez mais, pensar em ter um filho me fazia pensar em perder a minha vida”, afirma.

A decisão pelo aborto

“Tenho um exemplo interessante”, conta Letícia Godinho Figueiredo, que trabalha com estratégias de desenvolvimento comercial numa empresa dedicada a salões profissionais de música e TV, na França, onde mora desde 1999. “Um francês, amigo de uma amiga minha, que me disse uma vez: Letícia você vai se arrepender de não ter tido [filhos]. Eu disse para ele que prefiro me arrepender de não ter tido, do que de ter tido. Essa será a minha escolha”, declara.

Letícia, que completou 40 anos há três semanas, fez um aborto [legal na França] em 2015. “Nesse momento, meu desejo de não ser mãe virou uma escolha, quando eu engravidei. Eu tive que escolher. Esse momento da decisão do aborto é o momento da decisão da não-maternidade. Meu discurso de sempre realmente se concretizou nesse momento. Eu preferi interromper uma gravidez do que me tornar mãe”, conta.

“Foi uma decisão muito considerada e uma história muito humana”, relata Letícia. “Fui bem aconselhada, bem tratada e bem medicada. Foi duro, mas achei mais fácil do que imaginava, afinal cresci num Brasil que reprime e culpabiliza tanto o aborto. Viver na França e poder falar abertamente sobre isso mudou tudo”, diz.

“Nunca me via como mãe”

“Nunca tive vontade de ter filhos”, afirma Taciana Macedo Mendes Locatelli, 42 anos, executiva responsável pelo setor de Logística em empresas do setor de alimentação na França. “Desde que brincava de casinha, nunca era mãe, sempre era a secretária, administradora, dona da empresa, mas nunca me via como mãe. Estudei em escolas católicas, aquela coisa da família, do filho, e não me encaixava nisso”, conta.

“Nunca me identifiquei com a maternidade. Minha mãe, que teve uma vida muito ativa, teve três filhos, seus pais tiveram seis filhos, meus avós tiveram doze filhos, mas eu e meus irmãos [com um filho cada um, “escapulidos”, não planejados] não seguimos essa dinâmica, não é definitivamente uma questão genética”, brinca Taciana. “Adoro meus sobrinhos, adoro os filhos dos meus amigos. Adoro quando vêm na minha casa, faço a festa, tenho o prazer de estar duas horas, três horas com as crianças, mas depois entrego, e ufa, minha parte de tia já foi cumprida”, relata.

“Com 23 anos descobri a endometriose. Com isso me veio o pensamento de que talvez eu já tenha sido criada não querendo ter filho. Fiz cirurgia e tudo, e nunca nenhum médico me disse que não poderia ter filho. Talvez eu tivesse que fazer um tratamento, mas como sempre tive a opção de não ter filhos, nunca fui atrás”, que conta com o apoio do marido em sua decisão.

“A França é tão aberta, mas foi aqui que eu encontrei mais resistência à minha decisão”, conclui a executiva. “Na empresa em que eu trabalhava, ninguém entendia. Vocês têm casa, carro, por que não querem filhos, é importante fazer filhos, diziam”. “Uma vez uma amiga francesa me aconselhou um psicólogo que a havia ajudado, porque achava muito importante uma família ter filhos. Eu agradeci, mas não preciso de psicólogo para mudar o que eu penso”, finaliza.

Márcia Bechara

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