Caso Estela Pacheco: os 17 anos de espera de uma família por justiça

23 de março, 2018

Júri de fazendeiro acusado de matar professora Estela Pacheco, em Londrina, foi adiado sete vezes. Réu vai a júri nesta quinta, mas caso não é exceção: país tem milhões de processos em aberto

(El País, 23/03/2018 – acesse no site de origem)

Laila Pacheco Menechino tinha 14 anos quando sua mãe, Maria Estela Correa Pacheco, morreu, aos 35. A professora de música foi encontrada morta em 14 de outubro de 2000 no pátio de um edifício residencial de luxo no centro de Londrina, norte do Paraná. A polícia concluiu que Estela havia caído do 12º andar do prédio onde morava o agropecuarista Mauro Janene Costa, com quem ela havia tido um curto relacionamento amoroso. O fazendeiro disse à polícia que ela ameaçou se jogar e que não conseguiu segurá-la. Mas um laudo da necrópsia mostrou que a professora já estava morta antes da queda. Cinco meses depois, ele foi denunciado pelo assassinato. E 11 anos mais tarde, em 2011, o julgamento foi marcado. A filha única de Estela acreditava que, enfim, veria um desfecho para a história trágica da mãe. Mas o júri foi adiado. E seria novamente postergado por outras seis ocasiões: ora porque uma testemunha da defesa não podia ir; ora porque a advogada de Janene alegava problemas de saúde na gravidez. Neste período, o acusado passou cinco dias preso e aguardou em liberdade desde então. Agora, enfrenta o júri popular nesta quinta-feira, 22 de março de 2018: 17 anos e cinco meses após o crime.

Laila, hoje jornalista, segue à espera de “virar a página e viver o luto”. Mas enquanto isso não ocorre, transformou o luto em luta: formou-se em Direito para compreender os trâmites judiciais do processo e há quatro anos criou um site, Justiça para Estela, através do qual já reuniu mais de 2.700 assinaturas exigindo celeridade no processo. Há dois anos, em 8 de março (Dia Internacional da Mulher), também enviou uma carta manuscrita ao ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, então presidente da Corte, “suplicando” que o Tribunal não permitisse mais adiamentos do júri em primeira instância. “A vítima era minha mãe, uma mulher, uma mulher vítima de violência”, escreveu à Lewandowski.  “Ao contrário de Janene, a família da minha mãe, que era professora, não tem posses, nem ‘duas fazendas’, que segundo consta, foram dadas em pagamento ao advogado, um criminalista experiente, famoso e cheio de cartas na manga”, escreveu ao ministro do STF, em 2016. Mauro Janene Costa é neto de um dos fazendeiros mais ricos do Paraná.

Casos como o de Estela Pacheco expõem o nível do machismo na cultura brasileira. Como ocorre em tantos outros assassinatos de mulheres, coube à família defender a memória da vítima, cuja reputação tentou-se, em vários momentos, colocar em dúvida (como ocorreu também no caso Marielle Franco). No início, o caso foi tratado como suicídio, pois a vítima recuperava-se de uma depressão após a morte do irmão, vítima de um câncer. Também questionou-se o fato de ela e o réu terem sido vistos deixando um bar horas antes da morte e estar alcoolizada no momento em que morreu. Por isso, assim como feito com o site da vereadora do PSOL carioca, parte da página criada pela filha de Estela dedica-se a contar a trajetória da mãe, que foi educadora da APAE (entidade sem fins lucrativos destinada à inclusão de pessoas com deficiência intelectual) e a esclarecer boatos levantados à época.

“É uma ferida que continua aberta. Em todos esses quase 18 anos, cada audiência adiada, cada júri desmarcado, é reviver toda a dor que nós vivemos lá atrás”, desabafou a jornalista, em conversa ao telefone com o EL PAÍS dias antes do julgamento.

Desde 2011, quando o primeiro júri foi marcado, a família da professora de música organizou uma série de protestos na cidade onde ela morava e morreu —o que foi usado pela defesa como argumento para transferir o julgamento para outro município, sob a alegação de que o júri, composto por sete pessoas, poderia ser influenciado pela “comoção local”. “Foi mais um golpe. É como se a Justiça punisse as famílias das vítimas”, disse Laila.  “Falaram que a gente ia influenciar o julgamento… É claro que nós da família esperamos a condenação. Mas a nossa luta é para que o julgamento seja realizado.” O caso será julgado no Tribunal do Júri de Ponta Grossa, a 300 quilômetros de Londrina.

Protesto organizado pelo movimento 'Justiça por Estela' em Londrina

Protesto organizado pelo movimento ‘Justiça por Estela’ em Londrina

Embora emblemático no Paraná, o caso Estela Pacheco é um dos quase 80 milhões de processos pendentes de julgamento no Brasil, de acordo com dados do último anuário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de setembro de 2017. Desse total, 7.789.381 são processos criminais, a maioria parada na primeira instância. Estima-se que processos de julgamentos de casos de homicídios dolosos duram, em média, 8 anos e seis meses no país, segundo dados do Ministério da Justiça de 2014. E mesmo em casos hediondos como é o feminicídio (assassinato de mulheres cuja motivação tem ligação com a violência de gênero), corre-se o risco de o crime prescrever, ou seja, de não ser mais apto a ser julgado. E esse é justamente um dos temores da família de Estela.

“A prescrição não é uma coisa engessada, varia de acordo com a pena, caso ele seja condenado. Mas se houverem novos adiamentos esse risco existe sim”, explica Marcos Ticianelli, advogado e assistente da acusação. Em linhas gerais: se um réu é condenado a menos de 12 meses de prisão, o prazo de prescrição é de três anos. Em caso de condenação superior a 12 anos, o crime prescreve em 20 anos. O prazo começa a ser contado a partir da data do crime, mas é interrompido e zerado no momento em que a Justiça aceita a denúncia. Como há outros fatores que influenciam no cálculo, como a idade do acusado, o CNJ oferece uma calculadora de prescrição online para analisar caso a caso.

A lentidão da Justiça também prejudica outros aspectos de processos que vão a júri popular. Por exemplo, no caso do Massacre do Carandiru, quando os policiais militares envolvidos na matança no presídio paulista foram julgados, 21 anos após o fato ocorrer, testemunhas importantes já haviam morrido e a Justiça teve de se basear na leitura em plenário dos depoimentos prestados à época, o que impede as partes de fazer novos questionamentos à testemunha (e o que enfraquece o peso do depoimento). No caso Estela, ao menos uma testemunha crucial estará ausente: o médico legista Rogério Luiz Eisele, relator do laudo que atestou que a professora já estava morta antes de cair do edifício. Eisele mudou de país há alguns anos. Apesar da ausência, tanto a acusação quanto a defesa podem usar as conclusões do legista durante o júri, bem como os depoimentos prestados à Justiça em audiências anteriores.

Mesmo em caso de condenação, vale lembrar que o réu não sai preso do Tribunal. Uma eventual condenação em primeira instância (ou mesmo absolvição) de Mauro Janene Costa só deve dar início a mais um longo processo de tramitação de recursos em segunda instância, o que deve estender por mais alguns anos o julgamento até o veredito final. A reportagem tentou, sem sucesso, contato com a defesa do pecuarista, mas não conseguiu falar com sua advogada, Gabriela Roberta Silva. O réu se declara inocente.

Para além das questões técnicas, a demora em julgar o caso provoca um prejuízo que o Poder Judiciário não consegue reverter: a sensação de impunidade transmitida à sociedade. “Claro que ele ser julgado significa muito. E a Justiça do Paraná precisa dar um desfecho, para não pode prorrogar mais esse fracasso. Mas uma justiça tão tardia assim não traz um alento”, explica o advogado Marcos Ticianelli. Em outras palavras: a justiça que tarda, já falhou.

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