Mulheres são as principais vítimas de violações dos direitos reprodutivos e sexuais

09 de maio, 2018

Relatório aponta elas ainda como principal ‘campo de batalha’ na questão e defende ampliação do conceito, estabelecido há pouco mais de 20 anos

(O Globo, 09/05/2018 – acesse no site de origem)

 

Surgido há pouco mais de duas décadas, o conceito de saúde reprodutiva e sexual — e os direitos e as ações em torno dele — precisa ser ampliado para que o corpo das mulheres não continue como o principal “campo de batalha” de ideologias em torno da questão, aponta extenso relatório sobre a situação da área no mundo publicado nesta quarta-feira no prestigiado periódico médico “The Lancet”.

De acordo com o documento, produzido por uma comissão internacional de especialistas liderada pelo Instituto Guttmacher, com sede em Nova York, para além do foco tradicional na prevenção de doenças e no planejamento familiar, as iniciativas de saúde reprodutiva e sexual devem levar em conta temas como diversidade e violência de gênero, além de informação para que todos possam ter satisfação e bem-estar com suas vidas sexuais. Ampliação que se mostra essencial diante de alguns retrocessos observados recentemente na área, mesmo em países desenvolvidos.

“Ao redor do mundo, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos estão sob ataque”, resumem Elizabeth Zuccala e Richard Horton, respectivamente editora sênior e editor-chefe da “The Lancet”, em comentário que acompanha o relatório. “O progresso não é inevitável, e alguns dos avanços feitos até agora não estão garantidos. De todo modo, mais de duas décadas depois da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD, na sigla em inglês, realizada em 1994 e na qual foram estabelecidos o conceito inicial de direitos reprodutivos e sexuais e sua ligação com os direitos humanos), temos uma constante: os corpos das mulheres continuam a ser o campo onde as batalhas ideológicas dessa questão são travadas, com resultados devastadores”.

‘Campo de batalha’

E, de fato, os números do relatório as evidenciam como principais vítimas da negligência e das violações em torno dos direitos e da saúde reprodutivos e sexuais. Os estudos compilados pela comissão para produzir o documento contabilizam, por exemplo, que 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente, ou quase a metade dos feitos todos anos. E boa parcela deles sem as mínimas condições de higiene ou cuidado, geralmente por pessoas sem treinamento e usando métodos perigosos, como a ingestão de substâncias cáusticas, inserção de corpos estranhos na vagina e no útero ou outras “invencionices” tradicionais e locais.

Problema que advém em grande parte de outro: ainda de acordo com estudos incluídos no relatório, mais de 200 milhões de mulheres que querem evitar a gravidez residentes de países pobres ou em desenvolvimento não têm acesso a métodos contraceptivos modernos. Assim, não surpreende que as pesquisas apontem que 44% de todas as gestações no mundo sejam “não intencionais” ou “indesejadas”, das quais 56% acabem sendo objeto de abortos induzidos, a grande maioria de forma insegura, nas nações de renda baixa ou média.

— Sim, o corpo feminino ainda é o principal campo de batalha da luta pelos direitos e a saúde reprodutivos e sexuais — disse ao GLOBO Ann Starrs, presidente do Instituto Guttmacher e colíder da comissão responsável pelo relatório, desde a África do Sul, onde participa de seu lançamento, na manhã de hoje. — Por muito tempo aceitamos essa realidade assustadora como inevitável, e é por isso que precisamos de um compromisso fundamental com os direitos e a saúde reprodutivos e sexuais de uma forma ampla, como desenhamos no relatório.

Segundo Ann, essa mudança de paradigma se faz necessária devido à complexidade da questão e aos enormes tabus que ela enfrenta sob os mais variados aspectos. E é por isso também que o relatório defende uma maior integração do tema à agenda geral em torno dos direitos humanos, com uma ligação direta entre eles por meio dos chamados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Estabelecidos em 2015, os ODS incluem 232 indicadores relativos a 169 metas concentradas em 17 objetivos. E, destes, sete objetivos gerais e ao menos 15 metas dependem direta ou indiretamente do respeito ou cumprimento dos direitos e iniciativas de saúde reprodutiva e sexual.

Assim, o relatório apresenta mais estatísticas assustadoras nesse campo, como a violência de gênero, que devem ser combatidas por essa agenda ampliada em torno dos direitos e saúde reprodutivos e sexuais. De acordo com outros estudos citados no documento, cerca de uma em cada três mulheres com mais de 15 anos em todo o mundo, ou 30%, já foi alvo de algum tipo de ataque físico ou sexual lançado por seu próprio parceiro, enquanto 7% foram vítimas do assédio ou violência de estranhos. Números que a ampliação dos conceitos e da agenda em torno dos direitos e a saúde reprodutivos e sexuais ajudará a reduzir, acredita Ann.

— Muitos países já estão preocupados com essa questão e vendo sua clara ligação com outros aspectos da saúde e do bem-estar social de sua população — destacou.

E é por isso também que ela está otimista quanto à adoção dos conceitos mais amplos de direitos e saúde reprodutivos e sexuais defendidos no relatório mesmo diante do avanço de ideologias conservadoras e retrógradas nos últimos anos em alguns países, como os EUA e o Brasil.

— Culturalmente há um progresso geral nesse sentido, com um crescente apoio a atitudes mais liberais em relação a temas como o aborto e respeito à diversidade de orientações sexuais, e mais fortes no combate à violência de gênero, particularmente entre as gerações mais jovens — justificou. — Assim, enquanto pudermos manter essas questões na agenda e sob os holofotes, creio que veremos ainda mais avanços nesses aspectos mais controversos e sensíveis, como aborto, sexualidade de jovens e adolescentes e orientações sexuais diversas da norma.

Cesar Baima

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