Aborto no Brasil: Como os números sobre abortos legais e clandestinos contribuem no debate da descriminalização

31 de julho, 2018

“A gente está lidando com algo que é muito escondido. Então é sempre assim; uma conjunção de números e hipóteses”, afirma a médica Tânia Lago ao HuffPost Brasil.

(HuffPost Brasil, 31/07/2018 – acesse no site de origem)

Descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Esse é o pedido da ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal). No debate, números sobre a interrupção da gravidez no Brasil e no mundo são usados tanto por quem defende quanto por quem é contra a legalização, mas as lacunas de informação ainda são visíveis. O tema será discutido nos dias 3 e 6 de agosto, em uma audiência pública no Supremo.

Como a interrupção da gravidez é criminalizada, apenas parte das informações é oficial. “A gente está lidando com algo que é escondido, então é sempre assim; uma conjunção de números e hipóteses”, afirmou ao HuffPost Brasil Tânia Lago, médica e professora na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Os dados oficiais no Brasil são do Ministério da Saúde, calculados a partir de informações coletadas no atendimento no SUS (Sistema Único de Saúde) e ajustadas por critérios estatísticos. Os números, contudo, mostram apenas os procedimentos legais. Nos últimos anos, não há variação significativa nos registros. O aborto é legalizado nos casos de estupro, risco de vida da mãe ou feto anencéfalo. Em 2017, foram feitos 1.636 abortos legais.

O Ministério da Saúde informou ao HuffPost Brasil, por meio da assessoria de imprensa, que o governo federal não tem informações sobre o motivo de cada abortamento. Em audiência pública na Câmara dos Deputados em dezembro de 2016, contudo, a Dra. Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde da pasta, apresentou algumas informações.

De acordo com ela, entre 2011 e 2016, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos tiveram uma gestação resultante de estupro e o consequente nascimento do bebê. Ou seja, um direito previsto em lei é negado a mais de 700 jovens brasileiras todo ano.

Os dados de hoje indicam que há quase 1.700 abortos legais no Brasil. Muitas meninas poderiam ter esse direito, mas ele foi negado a elas.Maria de Fátima Marinho

Desse montante, 1.875 eram meninas de 10 a 14 anos violentadas sistematicamente, quase 73% do total. As outras 2.387 jovens tinham entre 15 a 19 anos. Fátima também chamou atenção que em 68,5% das ocorrências o autor da violência é um familiar.

Entre os fatores que levam brasileiras a não terem o direito ao aborto garantido mesmo quando ele é legalizado estão falta de informação, precariedade no atendimento na rede credenciada e recusa de profissionais de saúde em realizar o procedimento. Também estão envolvidas questões ligadas ao estigma social, especialmente nos casos de estupro, devido a dificuldades em denunciar o crime.

Nesta reportagem, apresentamos números informados via assessoria de imprensa pelo Ministério da Saúde; informações do DataSUS, base de dados dos SUS e explicações em audiência pública na Câmara dos Deputados. Além das fontes oficiais, apresentamos números de pesquisas consideradas referência na área, tanto em âmbito nacional quanto internacional, para ilustrar um panorama do que se sabe sobre aborto no Brasil, das lacunas de informações e de fatores que contribuem para esse cenário, como recusa de atendimento por parte dos profissionais.

Os números sobre aborto no Brasil

De acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) em 2014, 7,1% dos estupros resultaram em gravidez, segundo dados do SUS de 2011.

Entre as vítimas adultas grávidas como consequência do estupro, 19,3% realizaram aborto previsto em lei. Essa proporção cai para 5,0% entre adolescentes e 5,6% entre crianças. O procedimento para menores só deve ser feito quando a jovem e o responsável concordam. “Tendo em vista a alta prevalência de casos de estupro envolvendo crianças e adolescentes, onde os próprios familiares são os autores, é possível que a diferença na taxa de aborto entre menores de idade e adultos reflita esses fatos”, diz o estudo.

Outro tipo de aborto legal, no caso de fetos anencéfalos, também não é feito sempre que possível. De acordo com dados apresentados pela Dra. Maria de Fátima Marinho, do Ministério da Saúde, de 2006 a 2016, houve uma flutuação de 500 a 420 nascimentos de fetos anencéfalos. “Há mais de 400 mulheres tendo bebês anencéfalos por ano, mesmo tendo direito ao aborto legal”, afirmou. Esse tipo de interrupção da gravidez é permitido desde 2012, por decisão do STF.

Profissionais se recusam a realizar o procedimento

Pesquisa da International Women’s Health Coalition, organização que atua globalmente pelos direitos reprodutivos, mostra os impactos da chamada “objeção de consciência”. O termo é usado quando profissionais alegam questões morais ou religiosas para não trabalhar em um abortamento ou em procedimentos que envolvam métodos contraceptivos, por exemplo.

Em pelo menos 70 jurisdições – nacionais e dentro dos países – existem previsões para esse tipo de negativa, mas há falhas mesmo quando a lei prevê atendimentos emergenciais. “Muitas leis nacionais estabelecem que profissionais devem realizar um aborto no caso de emergência ou se ninguém mais estiver disponível. As evidências mostram claramente, contudo, que mesmo onde as normas estão em vigor, elas são extremamente difíceis de serem aplicadas”, diz a publicação “Unconscionable – When Providers Deny Abortion Care” (Inconcebível – Quando os prestadores negam direito ao aborto, em tradução livre).

O estudo relata o caso de uma mulher brasileira em 2015. A jovem com gravidez resultante de estupro foi a um centro especializado para vítimas de violência no hospital da universidade estadual de Pernambuco. O hospital deu uma prescrição de medicação para induzir o fim da gravidez que tinha menos de 10 semanas.

No atendimento, ela ouviu de diversos membros da equipe, incluindo médicos, enfermeiros, técnicos, farmacêuticos, frases como “essas mulheres não têm cuidado quando transam e depois vêm aqui abortar”. Ela foi questionada diversas vezes se “pensou melhor sobre o assunto”, mas não foi ouvida. A mulher só recebeu o tratamento 5 dias depois, quando uma médica a reconheceu do atendimento anterior e terminou o procedimento por meio de uma aspiração manual.

No Brasil, diretrizes do Ministério da Saúde estabelecem que os médicos têm o direito individual de recusa, a menos que não haja outro médico para atender a mulher, se houver risco de morte ou se a omissão do atendimento puder causar danos.

Internações por aborto ilegal no Brasil

O governo federal não tem informações sobre o número de abortos ilegais no País. No sistema de saúde, também não há dados justamente porque o procedimento é crime quando está fora das 3 previsões legais. Mas há indicativos que ajudam a mensurar a clandestinidade.

De acordo com o Datasus, em 2017, foram registradas 177.464 curetagens pós-abortamento, um tipo de raspagem da parte interna do útero. Outro procedimento em casos de aborto é o esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (AMIU). Em 2017, foram registradas 13.046. Juntas, foram 190.510 internações.

Os números incluem tanto atendimentos após abortos clandestinos quanto alguns abortos espontâneos, mas a estimativa é que ⅔ do total sejam ilegais. “A gente não pode afirmar que é tudo aborto inseguro porque um aborto espontâneo também pode ficar retido, ser incompleto, e precisar ou de aspiração ou de curetagem. Só que a gente sabe que no máximo 1/3 desse volume seria de abortos espontâneos. A grande maioria é de aborto provocado. Isso é estimativa médica. Na maior parte das vezes o espontâneo é do começo ao fim. A expulsão total do feto é feita espontaneamente”, afirma a médica Tânia Lago, em entrevista ao HuffPost Brasil.

De acordo com a pesquisadora, apesar de haver uma redução no total de curetagens nos últimos anos, a proporção de abortos para partos permanece a mesma. “Diminuiu a fecundidade no Brasil, então o número de partos também diminuiu. A chance de uma mulher engravidar no Brasil vem diminuindo. Mas se ela engravidar, a chance dessa gravidez caminhar para o aborto é a mesma porque essa razão não diminuiu”, afirmou.

Outra evidência de informação sobre procedimentos clandestinos é que abortos ocorrem com frequência similar em países com leis mais restritas em comparação àqueles com normas mais flexíveis, de acordo com estudo do Guttmacher Institute, organização de pesquisa sobre direitos reprodutivos.

Segundo a pesquisa “Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access” (Aborto no Mundo 2017: Progresso Desigual e Acesso Desigual, em tradução livre), nos países em que a interrupção da gravidez não é permitida em qualquer hipótese ou apenas no caso de risco de vida da mãe, são 37 abortos a cada mil mulheres. Nas nações com permissão sem restrição de motivo, a proporção é de 34 para mil mulheres. A estimativa é de 25 milhões de abortos inseguros no mundo por ano.

“Se você olhar o nosso indicador de internações por aborto sobre partos tem a mesma magnitude de vários países que Guttmacher monitora que fazem aborto, então tudo indica que boa parte daquelas internações por curetagem são abortos”, afirma Tânia Lago.

Custos do aborto ilegal para o sistema de saúde

A curetagem é um dos procedimentos mais comuns no SUS. Representa 3,9% dos 4.570.216 de cirurgias em 2017. Só perde para cirurgias multiplas (213.203) e parto cesariano (653.097). Em 2017, o custo com curetagens foi de R$ 37,97 milhões, valor similar a 2016 (R$ 37,2 milhões) e a 2015 (R$ 38,8 milhões). Já a aspiração tem custo de R$ 120,00, de modo que a estimativa é de R$ 1,56 milhão gastos no ano passado.

Os dados revelam que o sistema público de saúde tem gastos significativos com consequências do aborto ilegal. A estimativa de especialistas é de redução de custos caso o procedimento seja legalizado.

De acordo com o estudo publicado pela Guttmacher Institute, a estimativa é que procedimentos pós-aborto tenham custado US$ 232 milhões a países em desenvolvimento em 2014. A pesquisa “The Costs and Benefits of Investing in Sexual and Reproductive Health 2014” (Os Custos e Benefícios do Investimento em Saúde Sexual e Reprodutiva 2014, em tradução livre), destaca a precariedade no atendimento e revela que se todas mulheres que precisam desse serviço fossem atendidas, o custo seria de US$ 562 milhões. Já se todos os abortos fossem legalizados, o valor cairia para US$ 20 milhões.

O custo dos abortos legais, por sua vez, no Brasil, foram de cerca de R$ 360 mil por ano, de acordo com o Ministério da Saúde.

Pesquisas sobre aborto ilegal no Brasil

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2016, quase 1 em cada 5 brasileiras, aos 40 anos já realizou, pelo menos, um abortamento. Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. Como o levantamento foi apenas na área urbana, a estimativa é de 503 mil abortos. O estudo foi coordenado pela antropóloga Debora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, instituição que pede a descriminalização do aborto na ADPF 442, junto com o PSol.

Há uma maior frequência entre mulheres de menor escolaridade. O índice é de 22% para aquelas com até quarta série/quinto ano e de 11% para quem tem nível superior. Quanto à renda, o percentual é de 16% entre as brasileiras com renda familiar de até 1 salário mínimo e cai para 8% nas famílias com mais de 5 salários mínimos.

fator racial também conta. Os indicadores são: 24% indígenas, 15% negras, 14% pardas, 13% amarelas e 9% brancas. Do total de entrevistadas, 15% que disseram ter interrompido a gravidez já tiveram filhos, 13% se declararam católicas e 10% de outra religião cristã.

Segundo o estudo, cerca de metade das mulheres (48%) precisou ser internada para finalizar o aborto. A publicação mostra como a prática é recorrente e critica que seja tratada do ponto de vista criminal e não da saúde pública. “Considerando que grande parte dos abortos é ilegal e, portanto, feito fora das condições plenas de atenção à saúde, essas magnitudes colocam, indiscutivelmente, o aborto com um dos maiores problemas de saúde pública do Brasil. O Estado, porém, é negligente a respeito, sequer enuncia a questão em seus desenhos de política e não toma medidas claras para o enfrentamento do problema”, diz o texto.

O levantamento entrevistou 2.002 mulheres na área urbana do País. A margem de erro é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos, considerando um intervalo de confiança de 95%. A pesquisa combinou duas técnicas a fim de evitar a subnotificação, já que a interrupção da gravidez é criminalizada.

Foi entregue um questionário em papel com perguntas sobre assuntos controversos – se realizou ou não um aborto, e quando, por exemplo – que deveria ser respondido pelas próprias entrevistadas e depositado em uma urna lacrada, sem que as entrevistadoras tenham conhecimento das respostas.

Também foi aplicado um questionário face a face com perguntas gerais sobre escolaridade, situação conjugal etc. Os questionários de urna continham um identificador codificado que permitiu, posteriormente, a combinação de ambos os instrumentos sem prejuízo do sigilo e confidencialidade.

Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 (PNS 2013), realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por sua vez, concluiu que apenas 2,1% das mulheres de 18 a 49 anos abortaram. A taxa da PNA 2016 foi de 13%. Mas as metodologias são diferentes, uma vez que o IBGE adotou entrevistas face a face, o que pode ter levado a uma subnotificação.

Apesar das diferenças, ambos os estudos revelam um mesmo perfil de brasileiras que mais interrompem a gravidez.

Segundo a PNS 2013, as mulheres sem instrução ou com fundamental incompleto (2,8%), assim como aquelas com fundamental completo ou médio incompleto (3,0%), apresentaram maiores percentuais desse indicador se comparadas com as mulheres com instrução mais elevada. No que se refere à cor ou raça, a proporção de mulheres pretas (3,5%) que declararam ter tido algum aborto provocado foi maior que a observada para as brancas (1,7%).

No mundo, estimativa é que 35 a cada mil mulheres em idade reprodutiva (15 a 44 anos) tenham abortado a cada ano, entre 2010 e 2014, segundo estudo o estudo “Uneven Progress and Unequal Access”, do Instituto Guttmacher. Desse total, 45% dos procedimentos não foram seguros.

Mulheres que morrem por causa do aborto

De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a 5ª causa de morte materna no País. Em 2016, dos 1.670 óbitos causados por problemas relacionados à gravidez ou ao parto ou ocorridos até 42 dias depois, 127 foram devido ao abortamento. Os motivos mais frequentes são outras afecções obstétricas (500), edema (341), complicações do trabalho de parto e do parto (260) e complicações relacionadas com o puerpério (246).

Nesse grupo, a desigualdade racial é evidente. “Foram registradas 559 mortes de mulheres brancas e 1.079 de mulheres negras, uma quantidade muito maior. O número de mães negras e de mães brancas é praticamente similar, há um pouco mais de um grupo do que de outro, mas a diferença na mortalidade é muito grande, mostrando uma extrema desigualdade”, afirmou a Dra. Maria de Fátima Marinho, do Ministério da Saúde, na audiência pública na Câmara, em dezembro de 2016, em referência aos dados de 2015. Os números de um mesmo ano podem oscilar devido a correções constantes feitas pela pasta.

A definição de morte materna é a da Classificação Internacional de Doenças (CID), de modo que é possível comparar o indicador à situação de outros países. Ele não inclui, por exemplo, situações como suicídio de uma mulher vítima de estupro que ficou grávida.

O Ministério da Saúde também faz investigações para evitar a subnotificação. “Há algumas situações em que as famílias não querem que apareça ‘morte por aborto’ no atestado de óbito. É preciso pensar que morte por doença estigmatizante é subnotificada”, afirmou a Dra. Maria de Fátima Marinho, na audiência pública à época.

O número absoluto de mortes maternas não sofreu oscilações significativas nos últimos anos, mas houve redução na razão de mortalidade materna, que consiste no número de óbitos maternos, por 100 mil nascidos vivos de mães naquele local. Entre 1990 e 2015, o indicador caiu de 143 para 62 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos, o que representou uma diminuição de 56%.

Países que descriminalizaram o aborto mostram uma redução na taxa de mortalidade materna. Na Romênia, por exemplo, a mortalidade materna caiu de 148 mortes a cada 100 mil nascidos vivos em 1989 para 9 a cada 100 mil nascidos vivos em 2002, após o fim de restrições legais à interrupção da gravidez, segundo estudo do Instituto Guttmacher. Na África do Sul, por sua vez, as mortes por aborto clandestino caíram de 425 em 1994 para 40 de 1999 a 2001, após alteração na lei em 1996.

Atualmente, pr cedimentos clandestinos matam 22 mil mulheres todos os anos no mundo, segundo estimativa do instituto. Se os cuidados no atendimento fossem aplicados integralmente, o indicador cairia para 9 mil. Já se o aborto fosse descriminalizado, o número de mortes seria reduzido a 400 mulheres por ano resultantes de interrupção da gravidez.

Marcella Fernandes

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