Especialistas tratam aborto como questão de saúde pública

05 de agosto, 2018

Especialistas advertem que a criminalização do aborto não é suficiente para impedir um procedimento ilegal. Não há dados oficiais, mas a estimativa é de que 15 mil mulheres precisam de atendimento médico por complicação após interrupção da gravidez

(Correio Braziliense, 05/08/2018 – acesse no site de origem)

A criminalização do aborto não é obstáculo para que milhares de mulheres façam o procedimento de maneira clandestina. No entanto, em clínicas não confiáveis e sem ajuda médica nenhuma, a vida delas corre perigo. Por se tratar de uma prática ilegal, não há dados corretos. Até mesmo os abortamentos previstos em lei são subnotificados. Isso ocorre porque muitas das que fazem a interrupção por conta própria sofrem consequências e têm que recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) para atendimento. A estimativa é de que 15 mil mulheres nos últimos dez anos chegaram ao hospital com complicações após tentar abortar. Dessas, 2 mil morreram.

O tema está sob discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), que começou a ouvir entidades e especialistas contrários e favoráveis à discriminalização do aborto na última sexta-feira, 3. A professora de saúde pública da Universidade de São Paulo (USP) Cristiane Cabral explica que a falta de dados específicos sobre abortamento induzido ocorre porque o assunto é um tabu na sociedade, sobretudo na área médica. As mulheres que optam pela interrupção não falam sobre o episódio nas visitas rotineiras a ginecologistas — e, muitas vezes, sentem medo até de voltarem a um consultório. “Elas ocultam o fato, e isso dificulta um diagnóstico preciso por parte do profissional. E, infelizmente, nem todos os agentes de saúde estão do lado delas”, acrescenta.

Leia mais:
Débora Diniz no STF: “Aborto não é matéria de prisão, mas de cuidado, proteção e prevenção” (Fórum, 05/08/2018)
Para entidades da área de Bioética, aborto é questão de saúde pública (STF, 03/08/2018)

Segundo Cristiane Cabral, ainda há um contexto moral nas ações de quem trabalha com saúde. Por isso, a rede de apoio das pacientes passa a ser outras mulheres que viveram as mesmas situações. A especialista afirma que a denúncia não é uma obrigação dos profissionais — eles podem negar o atendimento desde que haja outra pessoa para realizá-lo, sem colocar em risco a vida da paciente. “Ainda estamos distante dessa batalha, porque não conseguimos nem ter empatia por parte dos agentes de saúde para redução de danos. O dinheiro já está sendo gasto com essas mulheres”, pontua.

Custo médio

Anualmente, há uma estimativa de que são realizadas 250 mil internações no SUS relacionadas ao abortamento induzido. Segundo dados do Ministério da Saúde, o custo médio das internações por interrupção da gestação com complicações é 317% maior do que as que não tiveram nenhum problema. Entre 2008 e 2017, o gasto total atingiu R$ 486 milhões. Só no ano passado, o custo com hospitalizações por interrupção da gestação no SUS chegou a R$ 50,7 milhões.

Na rede pública de saúde, a conclusão do aborto pode ser feita de duas maneiras: por meio de curetagem ou de aspiração manual intrauterina (Amiu). O primeiro procedimento é uma raspagem para colher o restante do material que ficou no útero. Já o segundo é um dispositivo que aspira o líquido simbiótico na região. Cristiane Cabral explica que a medida é quase indolor e mais barata. No entanto, a curetagem é o terceiro procedimento mais realizado na área ginecológica e obstétrica das unidades públicas.

Em 2017, de acordo com o Datasus, foram registradas 177 mil curetagens pós-abortamento. Já o Amiu, no mesmo ano, somou 13 mil. Juntas, as duas técnicas chegaram a 90 mil internações. Os números reúnem atendimentos após abortos tanto clandestinos quanto espontâneos, mas a estimativa de Cristiane Cabral é de que dois terços dos procedimentos são ilegais. A justificativa é que, mesmo em caso de aborto natural, pode ser necessária a aspiração ou a curetagem. Porque, na maioria das vezes, o aborto é espontâneo do começo ao fim do processo.

A médica Marisa Palácios, de 60 anos, é apenas uma entre as milhares de mulheres que fizeram aborto ilegal no país. Em 1985, quase um ano depois de passar por uma gestação complicada de trigêmeos, ela engravidou do marido, o pediatra Sérgio. Dois bebês não sobreviveram. Prematuro, Pedro nasceu com 25 semanas. Apresentava várias complicações: retardo mental, cognitivo e pneumonia. Ficou internado por seis meses na Unidade de Tratamento Intensivo, no Rio de Janeiro. À época, ele pesava 750g e precisava de atenção exclusiva em casa.

Com a nova gravidez, em uma decisão unânime, ela e Sérgio optaram por interromper a gestação. Procuram uma clínica clandestina que, segundo ela, “todos sabiam onde ficava”. “Foi uma decisão muito tranquila. Estávamos cientes de que não conseguiríamos cuidar de outra criança. Tinha que dar muita atenção ao Pedro. Foi uma decisão extremamente acertada, porque, a partir dali, as coisas foram piorando muito. Pedro tinha convulsões frequentes e precisava ser internado sempre”, lembra. Marisa fez o aborto através de Amiu. Entrou na clínica, fez o procedimento e saiu no mesmo dia.

O casal já tinha dois filhos quando o mais novo nasceu. “Mas meu sonho era ter seis”, conta. Cinco anos depois, engravidaram novamente da caçula. Hoje, ela e Sérgio trabalham com bioética e defendem a descriminalização do aborto no país. “Eu sempre tive uma visão aberta quanto a isso. Eu acho realmente que as pessoas têm razões para querer abortar, e isso deve ser respeitado. Se não encontrar a saída, ela vai fazer. Inclusive, eu duvido que alguém da minha idade nunca tenha ouvido falar que alguém próximo já abortou. Eu tive sorte, porque sempre fui muito privilegiada. Mas a maioria não é assim. Coloca a vida em risco.”

Deborah Fortuna (Especial para o Correio) e Gabriela Vinhal

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas