A lei de ‘importunação sexual’, avaliada por 2 especialistas

26 de setembro, 2018

Alteração do código penal instaura novas tipificações e amplia pena para crimes contra a dignidade sexual em circunstâncias específicas

(Nexo, 26/09/2018 – acesse no site de origem)

Uma nova lei, sancionada na segunda-feira (24) pelo ministro do Supremo Dias Toffoli, cria a figura da “importunação sexual” no Código Penal. A lei define o tipo penal como prática de ato libidinoso contra alguém, sem o consentimento dessa pessoa.

Criminaliza, ainda, a divulgação de cena de estupro e estabelece causas de aumento de pena para “crimes sexuais contra vulnerável e crimes contra a liberdade sexual”, na definição da lei. Duas das causas de ampliação da pena são estupro coletivo e estupro corretivo.

O primeiro ocorre quando há dois ou mais agressores e, o segundo, quando a violência sexual ocorre “para controlar o comportamento social ou sexual da vítima”, cometida principalmente contra a população LGBT.

Toffoli é presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, e exerce a Presidência da República durante uma viagem do presidente Michel Temer a Nova York, onde participa da Assembleia Geral da ONU.

A proposta de alteração de artigos do Código Penal referentes a crimes contra a dignidade sexual havia sido aprovada no Senado em agosto de 2018. Pretende, segundo um artigo publicado no site Justificando, ser um “combo” de combate à violência contra as mulheres.

O projeto foi elaborado a partir de casos de grande repercussão, como o estupro coletivo sofrido por quatro adolescentes no Piauí em 2015, um outro estupro coletivo contra uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro em 2016, filmado e divulgado na internet, e o episódio do homem que ejaculou no pescoço de uma moça quando ambos se encontravam no interior de um ônibus na Avenida Paulista, em São Paulo, em 2017.

Algumas determinações da nova lei

  • O crime de importunação sexual será punido com um a cinco anos de prisão
  • Divulgação de cena de estupro ou de imagens de sexo sem consentimento será punida com um a cinco anos de prisão para quem divulgar, publicar, oferecer, trocar ou vender esse material
  • O estupro coletivo ou corretivo será punido com um acréscimo de um a dois terços sobre a pena de estupro. O aumento também vale se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima ou afetiva com a vítima. Até então, o crime de estupro gerava pena de seis a 10 anos de prisão

O Nexo fez duas perguntas às especialistas Maíra Zapater e Ana Paula Braga sobre sua avaliação da nova lei e o que muda a partir dela.

  • Ana Paula Braga é advogada do Braga & Ruzzi, escritório de advocacia especializado em direito das mulheres e desigualdade de gênero
  • Maíra Zapater é professora de direito penal da Fundação Getúlio Vargas

Como você avalia a lei sobre importunação sexual?

ANA PAULA BRAGA A princípio, avalio essa aprovação da lei como uma mudança muito positiva. Havia uma lacuna jurídica muito grande para responsabilizar [os agressores] nesses casos de assédio sexual em espaços públicos.

Isso ficou muito evidente no ano passado [em 2017], quando houve aquele caso da ejaculação no ônibus, que ficou em um limbo entre uma importunação ofensiva ao pudor, que é uma contravenção penal com pena de multa, e um crime de estupro, que é um dos crimes mais graves do nosso ordenamento jurídico.

Esses casos, que são, infelizmente, muito comuns, de assédio em metrô, em balada, em show, em que há uma passada de mão, constrangimento da vítima, sem haver necessariamente emprego de violência, acabavam ficando impunes por cair nessa lacuna. Essa nova lei vem justamente para suprir esse problema.

Mas acho a redação da lei um pouco problemática. A questão do ato libidinoso não fica muito bem configurada. O que é um ato libidinoso?

Mas acho que vamos ter que ver se esse tipo de problema vai acontecer na prática mesmo. Em termos gerais, acho [a lei] muito mais positiva do que negativa.

MAÍRA ZAPATER O problema que havia no Código Penal, no que diz respeito a essa parte dos crimes sexuais, é que o crime de estupro, da forma como está redigido desde 2009 – “prática de qualquer ato libidinoso, mediante violência ou grave ameaça” –  [abarcava] uma variação muito grande de condutas, quanto à sua gravidade, submetidas a uma mesma pena.

Para um beijo forçado a um caso de estupro coletivo, tinha-se uma mesma pena, que se torna excessiva e desproporcional para casos de menor gravidade.

Claro que qualquer uma das condutas é grave quando a gente pensa em termos de violência de gênero. Mas, para aplicar uma pena, no direito penal, a medida tem que ser a culpabilidade do agente, a gravidade de sua conduta.

Pensando que o direito penal é projetado para resguardar direitos do réu, não havia como proteger o direito de alguém acusado de um crime sexual, punindo-o com uma pena que fosse proporcional à sua conduta.

A opção do legislador foi criar esse novo tipo penal, o da importunação sexual com pena de um a cinco anos. Tem um caráter positivo, no aspecto de ter a possibilidade de colocar condutas menos graves que um crime de estupro em um tipo penal que vai ter uma pena menor.

Na minha leitura, a técnica mais adequada teria sido criar uma causa de redução de pena no artigo 213 [do Código Penal]. Em legislações de outros países funciona assim: quando há um crime sexual em que haja qualquer tipo de penetração, relação sexual vaginal, anal ou oral, é um crime de estupro. E há um tipo menos grave, com uma pena reduzida, quando há qualquer outro ato libidinoso que não envolva penetração.

Nosso legislador não quis adotar esse modelo, criou um tipo penal à parte. Essa já é uma crítica.

Uma segunda crítica é em relação à pena, que acho que ainda pode continuar sendo excessiva. São um a cinco anos de reclusão, com regime inicial fechado. Para se ter uma ideia, a pena para um homicídio culposo, matar alguém com um tiro acidental por exemplo, tem pena de um a três anos de detenção. Começa com regime semi-aberto.

A redação [que fala em] praticar ato “contra” alguém é menos pior do que a redação original, que era praticar ato “na presença” de alguém, que ficava excessivamente aberto. Mas vamos ter que chegar em um consenso jurisprudencial para entender o que é praticar um ato libidinoso contra uma pessoa. Embora esteja melhor, essa redação ainda vai oferecer problemas para sua interpretação.

Essa conduta da importunação sexual ainda não inclui o assédio sexual verbal. A conduta dos homens que falam obscenidades para as mulheres na rua, que era enquadrada na importunação ofensiva ao pudor como contravenção penal, não vai estar abrangida. [A nova lei revogou a lei das contravenções penais.] A conduta de mexer com mulher na rua passou a ser atípica [no sentido de não haver tipo penal por meio do qual é possível puni-la] a partir dessa lei.

Na prática, o que deve mudar a partir dela?

ANA PAULA BRAGA Acho interessante que essa nova lei não cria só o crime de importunação sexual mas, também, o crime de divulgação de imagens íntimas, de cenas de sexo, de nudez ou estupro sem consentimento da vítima, o que vai passar a reprimir os casos de pornografia de vingança, que antes eram reduzidos a uma mera difamação. Agora, [isso] se torna um crime bastante grave.

Ela também reconhece a existência do estupro corretivo e traz uma série de aumentos de pena para circunstâncias nas quais os crimes sexuais podem ser cometidos, agravando, por exemplo, a pena de um estupro marital. Todos esses aumentos de pena servem não só para o estupro mas para qualquer crime contra a dignidade sexual, o que é bem interessante.

Uma das coisas que acho um dos maiores avanços e que acho que vai provocar uma mudança muito prática, muito importante, é que os crimes contra a dignidade sexual passam a ser de ação penal pública incondicionada. Antes dessa lei, a não ser que a vítima fosse menor de 18 anos, ou tivesse, por exemplo, alguma deficiência mental, ou ainda se estivesse drogada, a vítima tinha um prazo de seis meses para denunciar.

O que a gente observa é que esse prazo é muito curto. Às vezes a mulher ainda não conseguiu superar esse trauma para ir adiante, ou às vezes demorou para entender que aquilo foi uma violência. Acontece muito de a gente ver mulheres que decidem denunciar e já não têm mais prazo. A nova lei extingue esse prazo, embora a denúncia não possa ser feita em qualquer tempo, porque há um tempo prescricional, ela tem muitos anos para poder decidir tomar a atitude de denúncia, e quem cuidará do caso será o Ministério Público.

MAÍRA ZAPATER Sobre a crença de que essa tipificação vai reduzir a conduta, isso não se verifica em crime nenhum. Na própria justificativa do projeto, a deputada Laura Carneiro [DEM-RJ] fala que o fato de o crime de estupro ter se tornado crime hediondo não diminuiu a sua prática.

O próprio legislador coloca que agravar as penas não gera resultado, mas insiste nessa mesma estratégia. É aquilo em que a gente sempre insiste: enquanto a gente não tiver mudança cultural, de pensamento e do próprio sistema de justiça para receber as mulheres vítimas de violência, não sei se vai se conseguir o impacto que, provavelmente, é o esperado – reduzir esse tipo de violência.

Juliana Domingos de Lima

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