Quase metade dos feminicídios no Rio de Janeiro são cometidos por armas de fogo, revela estudo

21 de janeiro, 2019

Maioria dos casos ocorre dentro de casa e é cometida por companheiros e ex-companheiros de vítimas

(Época, 21/01/2019 – acesse no site de origem)

O que há em comum entre os assassinatos de Tamires Blanco, de 30 anos, Marcelle Rodrigues, de 27 anos, Simone Oliveira, de 40 anos, e Iolanda da Conceição, de 42 anos, é que todas foram mortas por ex-companheiros no ambiente doméstico, vítimas de feminicídio. Em 2017, foram registrados, em média, cinco crimes de feminicídio por mês no estado do Rio de Janeiro. Em 2019, foram quatro casos em apenas cinco dias.

De acordo com a Subcoordenadora de Comunicação Social da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e uma das organizadoras do Dossiê Mulher, major Claudia Moraes, 75% das tentativas de feminicídio e 57% das mortes são cometidas por companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Em relação ao local, 52% das mortes e 65% das tentativas ocorrem dentro de casa. Além disso, 47,2% dos homicídios cometidos foram por armas de fogo e 9,7% por arma branca, isto é, facas e facões.

“Um número não deve servir só para chocar, mas para que possamos conseguir implementar políticas públicas e mobilizar a sociedade a partir de evidências. E isso é uma evidência de que as mulheres sofrem muita violência”, relata Moraes. Em entrevista a ÉPOCA, a major explicou as principais motivações do feminicídio, as formas de prevenção e as políticas públicas existentes.

ÉPOCA: O que é feminicídio?

Major Cláudia: Nem toda morte de mulher é um feminicídio. Hoje já temos 15 países da América Latina que tipificam o feminicídio, sendo que o Brasil o tipificou recentemente. O que caracteriza o feminicídio é a morte de uma mulher pelo fato de ser mulher. Por vezes, esse tipo de violência fica obscurecido no total dos outros tipos. Temos uma média de mais de 300 mulheres mortas por ano [no estado do Rio de Janeiro], mas quantas morreram por ser mulher? O crime de feminicídio vem para que possamos enxergar.Muitas mulheres passam anos sendo agredidas, sofrendo violência física e psicológica, sendo desmerecidas e sofrendo várias outras formas de violência que, muitas vezes, terminam com a morte. E isso independe de classe social porque é uma questão de violência de gênero. Essa palavra precisa ser bem entendida. É o gênero feminino, o menosprezo a essa condição.

Quais são os tipos de feminicídio?

Temos dois tipos de feminicídio: o íntimo e o não íntimo. No íntimo, a mulher tem um namorado, companheiro, ex-companheiro ou marido que acaba cometendo o crime. Esse tipo é mais fácil e rápido de identificar. Isso porque geralmente temos testemunhas, histórico e conseguimos chegar mais facilmente à autoria. Já no feminicídio não íntimo, são homens que, em geral, têm completo desprezo pelas mulheres, são misóginos mesmo, criminosos em série que atacam mulheres por determinadas características. Não é uma pessoa conhecida. Geralmente, isso está associado a crimes sexuais também, em que o estuprador mata a mulher.

Qual o tipo mais comum?

O tipo mais comum é o íntimo. Tem um dado da ONU de 2017 que diz que, em média, 70 mil mulheres foram mortas no mundo. Dessas, 50 mil foram mortas por pessoas conhecidas e 30 mil foram mortas por companheiros ou ex-companheiros. Isso mostra que o lugar mais inseguro para as mulheres é dentro de casa, ao contrário do que pregam, que a rua é para os meninos e a casa para as meninas. Os meninos morrem na rua e as meninas morrem em casa. Temos de falar sobre isso. Não adianta ocultar e dizer que não existe violência de gênero porque ela não vai desaparecer. Ela sempre existiu.

O que é o Dossiê Mulher?

O Dossiê Mulher é uma obra do Instituto de Segurança Pública que existe desde 2005. Ele é anterior à Lei Maria da Penha. Está na 13ª edição e é um instrumento muito importante, tanto para o gestor de políticas públicas, para que ele conheça e saiba onde deve aplicar recursos, quanto para a sociedade civil acompanhar. Um número não deve servir só para chocar, mas para que possamos conseguir implementar políticas públicas e mobilizar a sociedade a partir de evidências. E isso é uma evidência de que as mulheres sofrem muita violência. Existe o que chamamos de ciclo da violência. A mulher apanha e volta e fica nesse ciclo. Não nos cabe julgar porque existem várias situações que prendem essa mulher a esse relacionamento, como a dependência financeira, afetiva, psicológica e até mesmo a crença de que aquilo não vai voltar a acontecer. Mas a experiência mostra que, se aconteceu uma vez, vai se repetir.

Desde quando esses dados estão disponíveis?

Passamos a ter essa informação no banco de dados da Polícia Civil como uma variável a partir de outubro. Só temos números fechados aqui no Rio de Janeiro, de um ano inteiro, a partir de 2017. Foram 68 feminicídios em 2017 como um todo. Mas isso em um primeiro momento.

O número de homicídios está aumentando?

Não podemos dizer que essa violência diminuiu porque, quando olhamos os dados como os de homicídio, percebemos que eles aumentaram. De 2016 para 2017, tivemos um aumento de 12% nas tentativas de homicídios de mulheres. Já nos homicídios, houve um aumento de 360 para 396 de 2015 para 2016 e passou para 381 de 2016 para 2017. Uma diferença pequena em termos de números. Percentualmente, a redução foi baixa. Mas quando a mulher não registra, não temos o registro da ameaça. Nos dados de homicídio, a possibilidade de não registrar uma morte é baixa, a não ser que não se encontre o corpo. Já quando falamos de lesão corporal e ameaça, temos fatores que podem fazer com que a pessoa registre ou não. Em relação a lesão corporal e ameaça, esse indicador fica sempre muito difícil.

Por que houve aumento?

Estamos no início de janeiro e já temos quatro casos de feminicídio registrados. Mas só vamos conseguir avaliar melhor quando tivermos dados mais consolidados, a partir da comparação de dados fechados entre anos e meses. Em alguns anos, tivemos uma redução significativa nos homicídios totais da população, mas em relação às mulheres, tivemos um aumento. Isso porque não tínhamos nenhuma ação ou política pública voltada para essa violência. Estávamos trabalhando com homicídio no geral. Hoje, quando começamos a ter dados de feminicídio e a entender as dinâmicas, conseguimos trabalhar preventivamente com isso. Se começamos o ano com quatro casos, é para ficarmos mais atentos, mas isso pode ser também uma maior aplicação, conhecimento e visibilidade da lei. Por isso, é importante que o crime tenha nome, feminicídio. Quando você identifica o nome e percebe que ela pode ser prevenida, descobre que há outras formas de atuar nessa prevenção. É importante falar sobre isso e é importante que todos se envolvam.

 

Larissa Infante

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