Nossa humanidade está ameaçada por quem deveria protegê-la, por Paula Guimarães

08 de abril, 2019

“A [bruxa] já se foi […] [mas] seus medos e as forças contra as quais lutou durante sua vida ainda vivem”. A afirmação de Starhawk, do livro Patriarcado e acumulação em escala global (1997), citado em Calibã e a bruxa de Silvia Federici (2017), trata da caça às bruxas no contexto da acumulação primitiva no século XV que deu início ao processo capitalista. Uma abordagem que confere historicidade aos tempos sombrios que as mulheres, especialmente brasileiras, vivem na atualidade. O revanchismo à maré feminista carimbado na eleição de Bolsonaro reflete a ambivalência deste período de esperança e medo.

(Catarinas, 08/04/2019 – acesse no site de origem)

Há aproximadamente quatro anos, o movimento feminista iniciava um processo de expansão de suas fronteiras para chegar massivamente às mulheres. No Brasil, essa maré crescia inflada pelo repúdio e horror ao PL 5069/13, idealizado pelo então deputado federal Eduardo Cunha, que propunha restringir o acesso ao aborto legal, negando o direito à informação sobre o serviço e impedindo a distribuição da pílula do dia seguinte.

Desde então, com ainda mais dedicação o patriarcado vem lançando mão de estratégias para conter a fúria daquelas que passam a questionar as dinâmicas de exploração e dominação, e levam o espírito da insurgência para os cantos mais remotos do Brasil. Enquanto nas escolas, as adolescentes organizam coletivos feministas, o governo tenta frear a força do movimento que já tomou proporções nunca vistas neste país.

Bolsonaro no poder é a investida mais condensada do patriarcado contra nossos desejos e sonhos de transformar tudo que nos imobiliza, violenta e cerceia nossa humanidade. Não é só a representação da anti-política na negação da sua essência dialógica e diplomática, como é também símbolo da anti-estética no ódio ao belo, do anti-erótico na moralização dos nossos desejos, e como não poderia deixar de ser é símbolo máximo do anti-feminismo, na expressão de um masculinismo concentrado e tóxico.

O atual presidente do Brasil é o próprio elogio ao machismo: só não estupraria mulheres que não “merecem”. Não bastasse a violência à deputada Maria do Rosário, pela qual terá que se retratar conforme decisão da Justiça, Bolsonaro vai mais longe em seu discurso. Perguntado sobre a possível participação de sua família no assassinato de Marielle Franco pela jornalista Shannon Bream do canal estadunidense Fox News, rebateu “que motivo eu teria para ser o mandante de um tipo de assassinato como esse? Eu nem a conhecia”.

A resposta suscita uma indagação de imediato: se tivesse motivos, Bolsonaro mataria alguém, mataria Marielle? Bem, sabemos que motivos não faltavam para o presidente do Brasil ter visto em Marielle um possível alvo de seu ódio: uma mulher preta, periférica, lésbica, feminista e ativista do direito ao aborto que enfrentava o patriarcado de frente.

Nessa conjuntura marcada pelo ressentimento normativo à visibilidade das pautas feministas, o direito ao aborto em gravidez decorrente de estupro — que no passado recente motivou o estopim feminista — volta a ser questionado na arena pública. Ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Bolsonaro nomeou sua equivalência feminina, uma antifeminista histórica, que assessorando Magno Malta, construiu sua trajetória voltada a rechaçar o direito ao aborto, até mesmo em casos permitidos por lei.

Em seu primeiro pronunciamento internacional, na 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 25 de fevereiro em Genebra, a ministra Damares Alves afirmou, sem pudor, que defenderá “o pleno exercício por todos do direito à vida desde a concepção e à segurança da pessoa”. O que significa criminalizar o aborto em todas as situações, inclusive nos casos de gravidez por estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia fetal, ignorando todos os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, os quais estabeleceram o direito da mulher à plena autonomia de escolha sobre seus processos sexuais e reprodutivos.

Em 27 de março, Damares participou do relançamento da Frente Parlamentar pela Vida e pela Família, da qual se orgulha de ter contribuído para a instalação em 2015. A frente terá como prioridade avançar na aprovação do Estatuto da Família, que define família como núcleo de homem e mulher, Estatuto do Nascituro e PEC da Vida, cujos textos garantem na Constituição o direito à vida desde a concepção. A frente deve propor também um projeto de lei que proíbe explicitamente o aborto de fetos com síndrome congênita pelo Zika Vírus, caso que deve ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF).

Nomeada por um governo que se elegeu tendo como seu principal projeto de país a liberação da posse e venda de armas, exímio defensor de grupos de extermínio e tortura, Damares não convence em seu discurso em favor da vida. Com suas declarações de escárnio às principais pautas feministas, a ministra é representativa do menosprezo desse governo à vida, fundamentalmente à vida das mulheres.

Defensora da vida abstrata, ao mesmo tempo que humaniza fetos Damares desumaniza as mulheres a serviço de seu capital político antifeminista. Em suas declarações, posiciona-se como árdua defensora da família e de sua estrutura à moda antiga — dos tempos em que a violência contra meninas e mulheres deveria ser assunto restrito ao ambiente doméstico — reforçando os papéis de gênero que subjugam mulheres ao posto de mães e esposas obedientes e servis a seus maridos, e expõem meninas à violência sexual pelos homens da casa. Classifica-nos como frágeis, merecedoras de flores, mas não dignas de acessarmos nossos direitos.

No mês das mulheres, seu ministério realizou evento cuja programação integrou a palestra “Armadilhas do Feminismo” pela deputada catarinense Ana Caroline Campagnolo (PSL), que recentemente lançou um livro de rechaço ao feminismo baseado na ideia de que as mulheres são historicamente privilegiadas, ao contrário de dominadas, na relação com os homens.

A tese de Campagnolo esbarra na verdade factual. Nos últimos 12 meses, 1,6 milhão de brasileiras foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) passaram por algum tipo de assédio, segundo levantamento do Datafolha encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgado em fevereiro. Em 2017, 4.539 mulheres foram assassinadas no país, 1.133 delas morreram pelo simples fato de serem mulheres — conforme entendimento da lei do feminicídio que passou a tipificar esse tipo de crime.

Diante desses dados alarmantes, a ministra da mulher debocha das nossas vidas e frauda nossas existências ao reproduzir e autorizar discursos hostis ancorados em falácias e deturpações da vida concreta. Não importam os números apontados pelas pesquisas e estudos de gênero, como na Idade Média a nova era de Damares é consubstanciada na religião e na crença em um deus misógino.

Tal qual a [santa] inquisição que levou centenas de milhares de mulheres à fogueira, por desenvolverem tecnologias contraceptivas e abortivas, a criminalização do aborto é o maior ativo político do patriarcado brasileiro na atualidade. A fogueira da inquisição contemporânea está direcionada para desqualificar a luta feminista na raiz característica da insurgência destes tempos.

O país que registrou 61.032 estupros em 2017, conforme anuário do Fórum citado anteriormente, realizou apenas 1.636 procedimentos de abortamento legal nesse período, incluindo todas as situações em que é legalizado. Ainda que o projeto de Eduardo Cunha não tenha sido aprovado, os acordos tácitos institucionais na omissão de informações, permitiram que entre 2011 e 2016, 4.262 crianças e adolescentes de 10 a 19 anos tivessem uma gestação resultante de estupro. Desse montante, 1.875 eram meninas de 10 a 14 anos violentadas sistematicamente, quase 73% do total. Em quase 70% das ocorrências o autor da violência é um familiar.

A não divulgação dos serviços credenciados para atendimento e a via-sacra para realizar o procedimento denunciam a sonegação de um direito, previsto há quase 80 anos no Código Penal, como apurou reportagem recente da Folha de São Paulo. Quando conseguem chegar aos hospitais, as vítimas de estupro ainda precisam lidar com os obstáculos morais sobrepostos ao fundamento máximo de que a palavra da mulher é suficiente para acessar o direito.

Todos os anos cerca de um milhão de brasileiras recorrem à clandestinidade para abortar, milhares ficam com sequelas, cerca de 200 perdem a vida, como Ingriane Barbosa que introduziu um talo no útero até morrer em Petrópolis (RJ), deixando dois filhos pequenos para a mãe criar.

Ingriane morreu por medo de buscar socorro médico, porque a criminalização atinge seletivamente sua cor e classe social, como apontou pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro em 2017. O hospital tem sido a porta de entrada das mulheres ao sistema penal, como apontou reportagem do Catarinas. Só em 2017, 331 processos pela prática de aborto foram distribuídos aos tribunais de justiça de 18 estados brasileiros.

É justo que uma mulher morra ou seja presa e estigmatizada por não ter condição social de acessar um abortamento seguro? Para Damares nossas vidas só importam se forem subjugadas, amordaçadas, humilhadas. A necropolítica governamental aponta para o disciplinamento de nossos corpos e nossa humanidade é ameaçada por quem deveria protegê-la.

A ministra da pasta das mulheres ignora o que se passa em países onde o aborto é totalmente criminalizado como Nicarágua e El Salvador, onde a perseguição é tamanha que mulheres são presas até por aborto espontâneo, conforme denunciaram organizações de mulheres na nota pública “Ministra falta com a verdade na 40ª sessão do conselho de direitos humanos da ONU”. Ela desconhece que mesmo no Brasil, em que o procedimento é direito em três situações, a criminalização da prática também atinge mulheres que abortam involuntariamente.

Como afirmou há quatro anos, a filósofa feminista Márcia Tiburi em audiência pública que discutiu a legalização do aborto no Senado: “aborta-se as mulheres para que elas não abortem”. É isso que busca a ministra ao institucionalizar a “nova era” da feminilidade dócil e domada: esvaziar a força política das mulheres em suas pautas mais caras, subtrair-lhes a potência, o corpo, o desejo, abortá-las em sua dignidade humana.

Às netas das bruxas que o patriarcado não conseguiu queimar resta o legado da rebeldia e insurgência. Não nos esqueçamos que representamos a força política mais mobilizadora destes tempos. Somos a antítese, o antídoto para derrotar esse governo que ao negar nossa existência, só faz reafirmar ainda mais a necessidade do feminismo.

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