O que o caso Neymar diz sobre a cultura do estupro?, por Mailô de Menezes Vieira Andrade

04 de junho, 2019

O jogador mais importante da seleção brasileira de futebol foi acusado de estupro no último final de semana. Para se defender das acusações, Neymar Jr., orientado por advogados e pelo seu pai, veio a público, fazendo uso de um expediente contumaz – e, diga-se, muito eficiente –, para afirmar sua inocência: reputar a denúncia como “falsa” e a mulher que a fez como mentirosa.

(Justificando, 04/06/2019 – acesse no site de origem)

Eis, portanto, a narrativa: o encontro foi consensual e a relação sexual também. Não houve violência. Há uma explicita tentativa empreendida pela mulher de extorquir e, mais que isso, destruir com a reputação destes homens. Ela se apoia, é claro, em estereótipos femininos (mulher mentirosa, interesseira, vingativa) e poucos subsídios fáticos lhe conferem sustentação.

Inclusive, já a vimos muitas vezes. Para citar alguns exemplos famosos na mídia, destaco que Bill Cosby, hoje condenado por vários estupros, alegou isto em sua defesa. Mike Tyson, também condenado pelo crime ainda nos anos 1990, afirmou o mesmo em seu processo. Robinho, que ainda recorre da condenação em primeiro grau, igualmente.

Não tardou em aparecer aqueles prontos a defendê-lo, inclusive referenciando o seu caráter, como acontece toda vez que um caso de estupro vem à tona. O princípio da presunção de inocência logo é acionado, inclusive por figuras que não se orientam por seus preceitos, tal como o apresentador de programa policial, Datena (o que causa, sim, certo estranhamento).

Nesse cenário, questiono o seguinte: afinal, a quem interessa compactuar pelo silenciamento e interditar qualquer discussão sobre violência sexual, ou, ainda sobre consentimento, e aniquilar socialmente (e, porque não, subjetivamente) as vítimas? Porque é esta a estratégia de defesa adotada: absoluta destruição daquela vítima de forma tão contundente que seja capaz de impedir que outras mulheres, em circunstâncias idênticas ou não, denunciem também. Não basta provar a sua inocência, é preciso demonstrar, por meio da disputa de narrativas que se dá no processo criminal, que os custos de se recorrer à justiça são por demais altos para as mulheres.

É a isto que me refiro como pacto patriarcal, que se movimenta em favor do sufocamento da discussão e silenciamento da narrativa de violação, que opera rapidamente, e, sustentada por mitos repetidos (historicamente) a exaustão, transforma a vítima, que ousou romper com a ordem patriarcal e denunciar uma violência imposta contra si, à ré. É ela que passa a ser julgada por quem é e pela sua conduta e não o agressor. Forjado às custas das experiências de violação narradas por mulheres, este pacto é abraçado, inclusive, por tradicionais juristas das ciências criminais, que logo se apressam em defender seus iguais – os homens.

Entretanto, este pacto se apoia em um imaginário social difundido em torno do crime que promove mitos do estupro já rechaçados tanto pela teoria feminista, quanto pela criminológica, e compõe um cenário de interdito da discussão acerca da violência sexual por meio do silenciamento das mulheres vitimadas, ao mesmo tempo em que desresponsabiliza agressores.

Os mitos e estereótipos do estupro são acionados e transcendem a tênue fronteira do senso comum para alcançar o funcionamento das instituições estatais. Aliás, é nos contornos deste movimento de desqualificação da experiência e da narrativa das mulheres vitimadas que as feministas têm trabalhado com a noção de cultura do estupro. A categoria é referenciada para indicar que o estupro não é tão repudiado quanto parece ser; em verdade, ele é tolerado, incentivado e até perdoado. Logo, vivemos em meio a uma cultura de condescendência com a agressão sexual.

Contrariando os principais mitos em torno do estupro, em mais de meio século de investigações em vários países do mundo, inclusive no Brasil, as pesquisas indicam que: i) a violência sexual não é excepcional, mas cotidiana na vida de muitas mulheres e crianças; ii) o crime de estupro é subnotificado e existem mecanismos que se engrenam para impedir que sejam informados às autoridades; iii) homens que estupram podem (e muitas vezes tem) outros comportamentos tidos como aceitáveis pela sociedade; iv) a violência sexual não é cometida por homens doentes, desviantes, mas por homens considerados comuns e normais pelo senso comum; v) a sexualidade masculina não é incontrolável; vi) o estupro não é movido por lascívia ou desejo sexual, mas é instrumento de exercício de poder masculino e, desta forma, atua para manter as mulheres em situação de medo constante.

Para além destes, há aqueles que promovem um falseamento da realidade se fundando em estereótipos do comportamento femininos que desconsideram a real experiência de violência sexual e interagem levando a construção tanto do estereótipo de estuprador, quanto da vítima ideal, a mulher honesta, ao mesmo tempo que em que oferecem uma explicação causal para o estupro, eximindo de responsabilidade os agressores: i) as mulheres são provocadoras ou corresponsáveis pela violência infligida contra si; ii) não resistiram de maneira suficiente; iii) o estupro acontece somente entre estranhos; vi) mulheres “decentes” não são violadas; v) deve ser constatada violência física e resistência corporal da vítima; vi) falsas alegações de estupro são comuns, motivadas sobretudo por vingança ou arrependimento.

É importante pontuar que não se nega, aqui, a existência de falsas denúncias de estupro, assim como de qualquer outro delito. Entretanto, fato é que dados sobre alegações falsas de estupro são, além de escassos, desconhecidos. Investigações feministas realizadas na Europa e Estados Unidos afirmam que falsas alegações de estupro não são mais frequentes que registros inverídicos de outros crimes, uma média que varia de 5% à 8% (KELLY, 2010; LISAK et al, 2010).

Deste modo, o espectro com frequência invocado pela mídia e por homens em situação de poder sendo falsamente acusados de violência sexual e sofrendo com o escárnio da exposição pública não é corroborado por tais análises, ao contrário, o que temos é um alto índice de casos de estupro reportados com um baixo percentual de condenações[2] e um escrutínio da mulher vitimada, e não do agressor. Nesse sentido, diversas pesquisas brasileiras apontam uma divergência entre os casos registrados na polícia para àqueles que chegam ao Judiciário, fulminando em decretos condenatórios (MACHADO, 1998; PIMENTEL, SCHRITZMEYER, PANDJIARJIAN, 1998; ANDRADE, 2005; COULOURIS, 2010; ANDRADE, 2017, 2018).

Uma série de outras pesquisas apontam, ainda, que o processo criminal envolvendo o crime de estupro é violentíssimo com as mulheres; o julgamento dos casos de estupro são experiências profundamente perturbadoras para as vítimas, pois ele o é (desde a fase policial) um processo de desqualificação das mulheres e uma celebração dos valores falocêntricos, relativos à exacerbada sexualidade masculina que distorcem a noção de consentimento e minimizam as violências sexuais.

Além da demora dos tramites processuais, estas mulheres que já sofreram com a violação sexual sofrem, agora, com o funcionamento do poder punitivo estatal, na medida que o processo exige laudos técnicos invasivos, repetições de depoimentos nos quais elas tem suas narrativas colocadas em constante suspeita, são questionadas sobre que roupa usaram, se eram virgens, se resistiram de maneira suficiente, se tem algum motivo para promover uma falsa acusação. Não será a vida do acusado aquela a ser revirada de cabeça pra baixo na investigação criminal, será a da mulher que registrou a ocorrência – como o caso Neymar muito bem nos revela.

Este caso é emblemático para observarmos como a violência contra as mulheres é legitimada por meio de uma implícita cumplicidade masculina tecida entre a sociedade patriarcal, juristas, advogados, delegados, promotores, juízes e, provavelmente, por estupradores. Não estou aqui conferindo ao jogador o estigma de culpado sem o devido processo legal, mas recorro ao seu caso para demonstrar o funcionamento perverso dos julgamentos – estes sim, sem garantias processuais – que recaem sobre mulheres que registram ocorrência de violência sexual.

Não há ganhos em ser vítima de violência sexual numa sociedade patriarcal – e ter conhecimento do modo de atuação do sistema de justiça criminal em relação a tais crimes é fundamental para esta percepção. As perdas, por outro lado, são muitas.

No mais, independente do desfecho criminal do caso, a esperança é que a notoriedade do jogador de futebol ora investigado por estupro traga, não o interdito, mas a possibilidade de discussões sérias sobre o tema, sobre a existência de um pacto patriarcal, sobre vivermos em uma cultura do estupro, sobre violência sexual e os limites do consentimento – debates estes pautadas em dados fáticos e não em mitos – inclusive e sobretudo no âmbito das ciências criminais.

Mailô de Menezes Vieira Andrade é mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará e advogada.

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