Uma cartilha para Zora de ‘Greenleaf’ – e todas nós, por Ana Paula Lisboa

18 de junho, 2019

“Namoro legal”, publicação do Ministério Público, dá dicas para relacionamento saudável

(O Globo, 18/06/2019 – acesse no site de origem)

Zora é das mulheres que a gente olha, mesmo de longe, e pensa: essa não vai passar sufoco. Ok, ser uma mulher negra já é um sufoco em si, mas há os sufocos que podem ser contornados se você nasce numa família rica, cresce numa comunidade negra, se você se entende como mulher negra desde cedo. Zora é assim.

Zora é jovem e bonita, tem os cabelos crespos e soltos. Zora faz piada, ameniza qualquer ambiente tenso, tem o olhar de quem deseja o mundo e sabe que o mundo é possível.

Desde o início da série de TV “Greenleaf” Zora se tornou meu personagem preferido, então levei um susto quando assisti Zora sofrer a primeira agressão do namorado. Não foi nada demais, ele só a humilhou na frente dos amigos, disse que ela não era nada, que ela calasse a boca. Os amigos até acharam que ele foi um pouco grosso, mas esse era só mesmo o jeito dele.

Comemorei quando Zora foi embora, mas Zora voltou, voltou porque o namorado pediu desculpas, chorou, disse que aquele era o jeito dele e prometeu mudar, que aquilo nunca mais aconteceria. Aí Zora precisou disfarçar os primeiros hematomas do braço com maquiagem, porque nas discussões ele passou a segurar forte o seu braço. Um tempo depois, além de segurar o seu braço, ele passou a empurrá-la contra a parede, jogá-la no chão. Passou o tempo e não bastava mais empurrar, ele a imprensava contra a parede e apertava o seu pescoço.

Zora ia, mas voltava, voltava porque ele pedia desculpas, dizia que aquilo era porque ele a amava muito e perdia a cabeça por medo de perdê-la, que ela era tão maravilhosa que deixava ele louco.

Ver Zora apanhando me embrulhou o estômago de tal forma, houve dias em que foi difícil dormir depois de assistir a um episódio. Eu só pensava em responder em que momento a gente se acha tão vazia, tão pouco a ponto de aceitar relações assim. E não só essas, ao extremo, em que os hematomas aparecem, mas as outras, dos hematomas que ninguém vê.

Zora me lembrou de estar com os olhos abertos, pra mim e para as outras mulheres que me cercam, porque não importa se somos maravilhosas, livres, feministas, escritoras, ricas, jogadoras de futebol, pobres, escorpianas, pastoras, com 15, 31, 45 ou 67 anos. Nada nos blinda do abuso e da violência dentro das relações.

Mas claro, algumas de nós estão ainda mais vulneráveis. Foi pensando nisso que o Ministério Público de São Paulo lançou no Dia dos Namorados a cartilha “Namoro legal”. Parece óbvio, mas ela dá dicas como não confiar nas palavras e sim nas ações, não existe um código da “boa namorada”, não entregue a sua vida na mão de ninguém, mantenha os pés em terra firme, apesar da paixão, o seu amor não é capaz de mudar ninguém e, a minha preferida: se assegure do seu território.

No Brasil, em 2018, 42% das mulheres entre 16 e 24 anos sofreram violência, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar do foco em gênero e idade ser importantíssimo, raça não pode passar desapercebido. Meninas negras, especialmente as de pele mais escura, têm autoestima mais baixa, são preteridas e estão mais propensas a relações abusivas.

Muitas vezes a leitura é de que enfim encontram o “príncipe” que as escolhe apesar de todos os seus “defeitos”, e ficam mais expostas a violência, como se já não bastasse o racismo. Eu, como uma irmã de 13 anos, sigo atenta para que Zora seja cada vez mais ficção. Sigo atenta a mim. Siga atenta.

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