Assédio, assalto e preconceito: o dia a dia das motoristas de aplicativos

05 de dezembro, 2019

Mulheres ganharam as ruas em busca de independência financeira, mas o medo e a insegurança acompanham a rotina das motoristas de aplicativos

(ND Mais, 05/12/2019 – acesse no site de origem)

Medo e insegurança. Esses são os sentimentos mais frequentes descritos por mulheres que trabalham como motoristas de aplicativos de transporte. Em alguns casos, pavor seria a palavra mais precisa.

Esse sentimento permeia o relato de L.C., 49 anos, moradora de Florianópolis. Traumatizada, desistiu da atividade após pouco mais de um ano e inúmeras situações de assédio. Ela conta que começou a dirigir por aplicativos porque não encontrava emprego e precisava sustentar os dois filhos.

Para ganhar um pouco mais, trabalhava à noite. “Quando um homem sentava no banco da frente, eu gelava: era mão na perna, no ombro, cantadas de todos os tipos e convites para encontros”, conta a mulher.

O assédio vinha de passageiros de todas as idades. “Eu avisava que não estava ali para isso e que se não me respeitassem era melhor descer do carro. Vários desceram”.

Após seis meses enfrentando assédios e o medo em áreas de risco, trocou para o turno da manhã. Aí, passou a enfrentar o assédio moral.

“Ouvi de tudo: que mulher não sabe dirigir, que não sabe usar o celular, ‘você é tão pobre que está dirigindo para mim e nem sabe usar um celular’, era daí para pior. Em 80% das vezes eu não conseguia chegar ao fim do turno de trabalho. Chegava exausta, chorando”.

“Nunca sofri agressão física, nem fui assaltada, mas o medo era constante, principalmente em áreas mais perigosas. Incrivelmente, nessas regiões mais pobres eu nunca sofri preconceito por ser mulher e dirigir”, conta.

‘Saio de casa, mas não sei se volto’

Casos como esse são muito comuns, mas poucas têm coragem de falar. A representante comercial Eliete Aparecida de Ávila, 55 anos, é motorista há três anos. Ela conta que na primeira vez em que foi abordada, o passageiro estava um pouco embriagado, sentou na frente e agarrou a perna dela.

“Morri de medo, mas fiquei firme. Empurrei a mão dele, dei a volta no carro e liguei no 190. A polícia veio e ele negou tudo. Me disseram para ir embora e ele ficou lá. Me senti muito mal pela sensação de impotência”, afirma Eliete. “Saio de casa todos os dias, mas não sei se vou voltar”, desabafa.

Segundo Eliete, 90% das passageiras que ela transporta relatam casos de assédio por parte de motoristas homens. Já as que trabalham nas plataformas, enfrentam também o risco diário de assaltos.

“Estamos com medo de trabalhar, se a gente fizer muito B.O. seremos excluídas da plataforma. Por isso, o app só para mulheres nos dá mais segurança”, avalia.

Assalto e assédio

Para a motorista Maria Margarete Moraes, 48 anos, de Joinville, a situação mais assustadora foi durante um assalto, quando ela ficou duas horas e meia em poder dos bandidos.

“Recebi uma chamada próxima ao presídio e me aproximei devagar. Quando vi, um homem colocou a arma na janela e disse para eu abrir o vidro”, conta.

Depois de exigir que ela abrisse a porta, o homem sentou no banco de trás, mantendo a arma em suas costelas.

“Ele não deixou cancelar a corrida, então peguei as duas moças que haviam me chamado e elas entraram com ele dentro. Aproveitei para clicar no pedido de socorro. Quando elas desceram, finalizei a corrida e consegui informar meu grupo no Whatsapp que era um assalto”, relembra.

“Então ele me fez dirigir por uma estrada de chão onde pegamos outro bandido. Tive que sentar atrás com esse segundo homem, enquanto o primeiro dirigia. Pedi para eles levarem o carro e me deixarem. O primeiro disse para eu ficar tranquila porque ‘só queriam uma corrida’. Mas o segundo era violento e levei várias coronhadas na cabeça”.

Eles rodaram pela cidade, mas devido aos golpes, Maria não conseguiu identificar os locais e as conversas. Após duas horas e meia, o combustível acabou e eles abandonaram o carro com Maria dentro, no Centro de Joinville.

“Antes de sair, o segundo bandido me chamou de tudo, passou a mão em mim e me bateu tão forte que perdi a consciência. Não levaram o celular, então, quando acordei, liguei para o grupo de motoristas que participo no Whatsapp. Chegaram em dois minutos”.

Segundo Maria, uma das colegas da rede social ligou para a polícia, que a instruiu a permanecer no local.

“Levou mais duas horas para chegarem e fiz o B.O., mas como não consegui identificar os rostos e já havia passado algumas horas, nada foi feito”.

Conforme a motorista, o rastreamento pelo aplicativo revelou que o perfil das moças que chamaram o transporte era falso. Porém, a plataforma ressarciu o valor da corrida.

Maria conta que já foi assediada, mas não registrou ocorrência. “Um menino de uns 17 anos fingiu que ia me cumprimentar e passou a mão no meu seio ao sair do carro. Falei para ele que ia reportar para a empresa, mas descobri que o celular que originou o chamado não era dele e sim de um amigo”, conta.

“Outro colocou a mão na minha perna, me chamou de gostosa e perguntou do meu perfume. Pedi para ele descer ou ia denunciar para a empresa. Como ele desceu sem me agredir, acabei deixando pra lá”, revela.

A motorista diz que só faz o horário noturno se for pelo aplicativo exclusivo para mulheres.

“Aproveito para falar para as adolescentes sobre o jeito de se vestir, pois elas vão para as baladas de shorts e saias muito curtos, difícil evitar cantadas”. Mas a culpa não é dos homens? “Acho que é dos dois”, opina Maria.

A roupa não é relevante

Embora a opinião sobre as vestes não seja um consenso nem mesmo entre mulheres, o fato é que a roupa não faz a mínima diferença quando a questão é a importunação sexual.

“Eu trabalhava sem  maquiagem, com o cabelo preso, de óculos e roupas largas e soltas para evitar comentários, mas não adiantou nada em relação a ser assediada”, diz L.C.

A estratégia pode ser vista como alternativa, mas é ineficaz contra o agressor. “Mulheres de burca [vestimenta feminina em alguns países islâmicos, que cobre o corpo inteiro, cabelo e rosto] não são violentadas? A questão está no assediador, não na mulher”, opina Janete Teixeira, outra motorista de Florianópolis.

Além do empoderamento da mulher com a mudança de postura em relação a quem é o culpado pelo assédio (é o agressor), há a necessidade de formalizar as denúncias.

“Eu me visto como quero: já usei vestido, saia, bermuda… e não venham dizer que isso é errado ou ‘mi mi mi’. Pode ser o que for, sempre vou denunciar quem tiver comportamento inapropriado”, diz Janete.

Esse também é o entendimento da promotora de Justiça de São Paulo, Fabiana Dal’ Mas.

“Uma exposição de roupas de vítimas de estupro na Bélgica mostrou que a roupa pouco importa para o agressor. Lá estavam calças compridas, camisetões e até blusas estampadas com personagens infantis”, afirmou a especialista.

“As mulheres não podem parar de trabalhar ou deixar de usar o que gostam por conta da conduta inadequada dos homens. Ainda que esteja de roupa curta ou decotada, isso não é uma permissão para o assédio”, acrescenta Fabiana.

Para a promotora, as ‘investidas’ masculinas dizem respeito à condição da mulher na sociedade.

“Sempre fomos vistas como do lar, ocupando o espaço da vida privada e não pública. Ao irmos para o mercado de trabalho e ocuparmos determinadas posições, estamos ‘invadindo’ um espaço que era do homem. Por isso, acredito que a violência de gênero tem uma mensagem subliminar que é a de que não deveríamos estar naquele espaço”, avalia.

“Também há os que dizem não saber a diferença entre uma cantada e a importunação. É fácil: a partir do ‘não’ a mulher está sinalizando que sua investida não é desejada e, sem o consentimento dela, pode ser crime”, aponta.

Lei da importunação sexual

É importante dizer que ações como as descritas pelas motoristas nessa reportagem, as ‘encoxadas’ dentro de coletivos e passadas de mão, por exemplo, não são consideradas assédio sexual.

A promotora de Justiça Fabiana Dal’ Mas explica que embora sejam popularmente chamados de assédio, juridicamente tais atos são tipificados como importunação sexual.

O termo foi definido após uma discussão sobre um caso ocorrido em 2017, em que um homem ejaculou sobre uma passageira de transporte coletivo em São Paulo. Na época, havia dúvidas se o caso poderia ser considerado um crime, como o de estupro, ou uma contravenção penal de punição mais branda.

O consenso foi de que seria uma importunação sexual, que é crime na legislação brasileira, com pena de um a cinco anos de reclusão.

Tipificação dos crimes

  • Importunação sexual: descrita na lei 13.718/2018 como o ato de praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Pena de reclusão de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.
  • Assédio sexual: é descrito no artigo 216-A do Código Penal brasileiro como o ato de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo seu agente de uma relação de poder. Por exemplo, do chefe com subordinados ou do professor com alunos. A punição inclui detenção de 1 a 2 anos. A pena é aumentada em até um terço se a vítima for menor de 18 anos.
  • Estupro: considerado crime hediondo, é definido pelo artigo 213 da Lei nº 12.015/09 como o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena: de 6 a 10 anos de reclusão. A pena é aumentada de 1/3 a 2/3, nos casos de estupro coletivo (mediante concurso de dois ou mais agentes) e corretivo (para controlar o comportamento social ou sexual da vítima).

O que dizem as empresas

Por meio de nota, a 99 informou que investe em sistemas preventivos, ferramentas de proteção e atendimento humanizado para passageiros e motoristas, especialmente mulheres, que são a maioria das passageiras da plataforma.

Entre as ações preventivas está a inteligência artificial. Por meio de machine learning, que vasculha padrões de comportamento suspeitos em poucos segundos no ato da chamada – como o histórico do usuário na plataforma, horário e local da chamada, forma de pagamento, entre outros – são adotadas medidas automáticas, como bloqueios e confirmação de dados.

Segundo a empresa, em situações de risco, o motorista pode cancelar a corrida caso não se sinta seguro. Desde 2018, começou a implementar câmeras de segurança nos veículos, conectadas à Central de Segurança da empresa.

O apoio, segundo a empresa, ocorre quando motoristas acionam o botão físico integrado à câmera ou passageiros acionam o botão virtual no app. Quando os alertas são gerados, a câmera garante acesso às imagens em tempo real e os dados são mantidos em confidencialidade.

Além disso, condutores podem acionar o kit de segurança do aplicativo, que compartilha a rota com parentes e amigos em tempo real. A inteligência artificial também ajuda a combater casos de assédio na plataforma.

Por meio de um rastreador de comentários, as avaliações das usuárias ao fim das corridas são vasculhadas para identificar casos de assédio ou violência sexual. Atualmente, cerca de 350 palavras e contextos que podem estar relacionados a esse tipo de conduta são mapeados.

Após a detecção pelo algoritmo, uma equipe especializada faz uma segunda checagem sobre detalhes da ocorrência. A 99 afirma ainda que não tolera esse tipo de violência e adota medidas que podem incluir o bloqueio definitivo do motorista ou passageiro, o suporte para investigação policial e informações sobre suporte psicológico e jurídico, caso necessário. Em caso de assédio a uma mulher, o atendimento é feito exclusivamente por mulheres.

Outros recursos incluem:

  • opção de o motorista escolher não receber pagamento em dinheiro, e receber informações sobre o destino, a nota e frequência de chamadas do passageiro.
  • O app pede ao passageiro que inclua CPF ou cartão de crédito antes da primeira corrida.
  • Oferecimento de cursos online e presenciais para todos os motoristas, com módulos sobre combate ao assédio e à LGBTQfobia
  • Câmeras de segurança durante as corridas, disponível para motoristas das cidades de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Goiânia, Salvador, Fortaleza e Manaus. Deve ser expandido para todo o Brasil.
  • Central telefônica emergencial com profissionais especializados, 24 horas por dia, 7 dias por semana para atendimento pós corridas. Pode mandar um veículo para alguém que tenha sido deixado em uma região remota, por exemplo.
  • Motoristas e passageiros estão cobertos por um seguro contra acidentes pessoais, desde o aceite até a finalização das corridas.
  • Em casos de assédio, o atendimento é feito exclusivamente por mulheres.
  • Passageiros e motoristas assediados devem comunicar a empresa, por meio de seu app, ou no telefone 0800-888-8999.

Já a Uber, também por meio de nota, afirma que considera inaceitável e repudia qualquer ato de violência contra mulheres. Recentemente, reforçou o compromisso de fortalecer ações de enfrentamento à violência contra a mulher, destinando R$ 5 milhões nos próximos cinco anos a projetos junto a ONGs que são referência no assunto na América Latina.

Atualmente, a empresa está presente em mais de 100 cidades brasileiras, com mais de 600 mil motoristas parceiros. Desses, apenas 6% (3.600) são mulheres. O número de usuários do sistema ultrapassa 22 milhões de pessoas.

De acordo com a plataforma, o atendimento a motoristas parceiras e às usuárias vítimas de violência foi revisto, tornando-os mais empáticos e eficientes e incentivando o encaminhamento de casos às autoridades competentes. Os números de denúncias não foram divulgados.

No mês passado, a empresa também anunciou a ferramenta U-Elas, que permite que mulheres motoristas recebam somente chamadas de passageiras. O recurso está sendo testado em Campinas, Curitiba e Fortaleza, e deve ser expandido em 2020.

Entre as ações voltadas à segurança, estão o registro das viagens por meio de GPS, o compartilhamento do trajeto com amigos e familiares, e uma equipe de resposta a incidentes disponível 24 horas, diariamente, direto do app ou por telefone.

Novos recursos anunciados no início de novembro:

    • ferramentas de gravação de áudio no aplicativo e verificação de documentos de usuários
    • recurso de senha/ultrassom para ajudar o usuário a verificar sua viagem
    • aprimoramento no recurso de selfie do motorista, que pede a ele que realize movimentos antes de checar a foto de identidade
    • ferramenta de checagem de rota, que dispara mensagens quando há uma parada muito longa não prevista na viagem
    • opção de reportar um problema ainda durante a viagem.

Por Andréa da Luz

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