Abstinência não é política pública, por Flávia Oliveira

10 de janeiro, 2020

No ano passado, nas estatísticas do Registro Civil, o IBGE apurou que um em cada cinco bebês nascidos no país era filho de jovens com menos de 20 anos

(O Globo, 10/01/2020 – acesse no site de origem)

O cerco dos guardiões da moral, dos costumes e da fé aos princípios constitucionais de um Estado que se apresenta democrático, inclusivo e laico deixou de ser novidade no Brasil. A onda de repressão a produções artísticas nos últimos anos desaguou no ataque à sede da produtora Porta dos Fundos, na véspera do Natal, e, esta semana, na censura imposta pelo desembargador Benedicto Abicair, do TJ-RJ, ao programa em que um Jesus Cristo gay apresenta o namorado à família. Agora, se aproxima das políticas públicas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos das jovens brasileiras.

Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, desde os primeiros meses no cargo defendia que a abstinência integrasse o debate nas escolas sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e gravidez na adolescência. Mais recentemente, a pasta passou a promover eventos sobre o tema. Por sua vez, o Ministério da Saúde, informou Vinicius Sassine no GLOBO, pôs fim à caderneta de saúde do adolescente, que reunia informações sobre puberdade, sexo seguro e contracepção. São retrocessos de motivação religiosa — portanto, indesejáveis na formulação de políticas sociais.

Num esforço para que evidências científicas prevaleçam em assuntos de saúde pública, a Rede Feminista de Ginecologia e Obstetrícia, formada por 27 profissionais da área de todo o país, elabora em forma de artigo uma resposta ao governo. O grupo também se articula para participar de audiências com ministérios, parlamentares e membros do Judiciário, bem como organizações da sociedade civil, educadores e instituições religiosas. “A intenção é fazer a informação circular. Há muitos estudos provando que abstinência não produz resultado em evitar gravidez e DST. O que funciona é educação e acesso a contraceptivos”, argumenta a médica Ana Teresa Derraik Barbosa, integrante da Rede.

No texto, em fase final de elaboração, as médicas lembram que o Brasil carece de iniciativas de combate à gestação precoce. E alertam que o estímulo à ‘preservação sexual’ pode ser opção como exercício de autonomia, mas não política pública para reverter a alta incidência de gravidez na adolescência. “Ter apenas a abstinência, em detrimento de educação em saúde sexual, planejamento familiar e prevenção de doenças, representa uma negligência grave”, afirmam.

Num conjunto de estatísticas de gênero do IBGE, o Brasil aparece com taxa de fecundidade adolescente de 56 por grupo de mil moças com idade entre 15 e 19 anos. O indicador é usado internacionalmente como medida de proteção à infância e à adolescência. Na Região Norte, onde os níveis de informação e de renda são menores, a taxa supera 85 nascimentos para cada mil jovens.

No ano passado, nas estatísticas do Registro Civil, o IBGE apurou que um em cada cinco (21,2%) bebês nascidos no país era filho de jovens com menos de 20 anos. O mais grave é que a incidência não é homogênea; alcança, como todas as mazelas nacionais, a população mais pobre. “Quase 18% das adolescentes de renda mais baixa se tornam mães, enquanto no estrato acima de cinco mínimos a proporção não chega a 1%”, informa o documento.

A gravidez precoce tem consequências graves para o futuro tanto das jovens mães quanto dos bebês, porque se relaciona com evasão escolar, aumento de mortalidade materna, prematuridade, baixo peso ao nascer e óbito fetal. Também confina famílias a ciclos de pobreza e vulnerabilidade social, além de expor mulheres e crianças à violência doméstica. No país, dois em cada três jovens que não estudam nem trabalham, os chamados nem-nem, são mulheres. A maioria está fora da escola e do mercado laboral em razão de atribuições domésticas e de cuidados com pessoas.

É situação que poderia ser evitada com políticas bem desenhadas de saúde reprodutiva: “programas contendo orientações sobre o desenvolvimento do corpo da adolescente, prevenção de abuso sexual e infecções sexualmente transmissíveis, planejamento familiar, vantagens de não se engravidar na adolescência conseguem, inclusive, aumentar a idade da primeira relação sexual”, recomenda o documento. O futuro do país estará comprometido, se a sociedade permitir que convicções morais e religiosas se sobreponham à ciência e às melhores práticas em políticas sociais.

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