Só há união estável se o casal fizer sexo?, por Rita Lisauskas

04 de fevereiro, 2020

Casos como o de Rose Miriam acontecem o tempo todo por aí

(Emais/Estadão.com, 04/02/2020 – acesse no site de origem)

De repente, nos deparamos com a teoria que uma mulher só pode ser considerada parceira e em união estável com um homem se for provado (como?) que habitualmente fazia sexo com ele. Não importa se ela foi chamada publicamente e por anos de ‘namorada’ e se depois aparecia nas fotos de família, já que tinha três filhos com o mesmo homem.  Também parece irrelevante saber que ela esteve no comando de toda a rotina da casa onde as crianças e o pai moravam – ele apenas quando não estava em outro país a trabalho, verdade seja dita. Era ela quem levava os filhos dos dois ao médico, à escola, que conferia a lição de casa e se os dentes tinham sido bem escovados todas as noites, afinal as crianças tinham que estar saudáveis e felizes no momento de posar para a foto que iria mostrar a todo o Brasil que aquela era uma família comandada por um legítimo representante da família tradicional brasileira.

Muitos homens só conseguiram ascender na carreira porque havia uma mulher em casa lavando suas cuecas e cuidando das crianças, um trabalho invisível, pouco reconhecido e não remunerado. Se ela fazia sexo ou não com esse parceiro nunca esteve em discussão até este momento (e arrisco dizer que muitas, sobrecarregadas pela jornada, estavam cansadas demais para isso). Mas se a casa estava funcionando e o marido podia exibir esse êxito em público, ‘olha como sou bem-sucedido em todas as esferas da vida’, ninguém questionava a relação desse casal. Isso até novembro do ano passado.

Assim que foi aberto o testamento deixado pelo apresentador de tevê Gugu Liberato, morto em um acidente doméstico, a definição do verbete ‘família’ começa a ser atualizado. Segundo Antônio Houaiss, era  “o núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária e estável”. Na definição nunca constou a exigência de que essas pessoas, para serem consideradas como tal, precisavam fazer sexo. Também temos nos deparado com a discussão do quê é uma união estável, segundo a jurisprudência “a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se casados fossem, sob o mesmo teto ou não, constituindo, assim, sua família de fato”. Precisamos agora garantir que eles tenham feito sexo quantas vezes durante o período em que estiveram juntos para que sejam vistos assim pela lei?

Claro que estou falando sobre a relação entre o apresentador de tevê Augusto Liberato e a médica Rose Miriam di Matteo, mãe de seus três filhos e não contemplada no testamento de Gugu, lido logo após a morte do apresentador em novembro último. Desde que ela questionou a divisão dos bens e que recorreu à Justiça para ser reconhecida como companheira do apresentador (como as capas das revistas dos últimos 20 anos atestaram que era, sem que Gugu tivesse ligado às redações contestando o tratamento utilizado), temos sido contemplados com o assunto na imprensa, nas rodinhas de conversa, nas redes sociais.

Casos como o de Rose Miriam acontecem o tempo todo por aí, principalmente quando as relações acabam e se começa a discutir pensão alimentícia e quem fica com o quê, pergunte a qualquer advogado especializado em direito de família. Um dos argumentos usados pelos homens que não querem dividir o patrimônio com as mulheres que passaram cinco, dez, vinte anos se dedicando à casa (também dele) e aos filhos (também dele) é a de que ela “nunca trabalhou”, “onde já se viu querer metade de tudo o que eu conquistei a minha vida inteira”? Mas se será que esse homem teria sido assim tão bem sucedido se tivesse que deixar o escritório mais cedo para buscar criança na escola ou se faltasse em reunião porque o filho se machucou no recreio e teve de ser levado às pressas ao hospital? Aposto um picolé de limão que não.

Com esse imbróglio entre Rose e a família de Gugu, descemos mais uns degraus no capítulo da desqualificação da mulher que dedica a vida à uma família, independentemente qual seja sua configuração. Agora temos além do já conhecido “ela não trabalha” ou “só cuida dos filhos”, o novíssimo “ela só é mãe das crianças”, “eles nunca tiveram nada”. Inacreditável termos de ouvir algo assim em pleno século XXI. Pior ainda quando saído da boca de outras mulheres, como a mãe e a irmã do apresentador.

 

 

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