“Não é sem tratar sobre sexualidade que enfrentaremos as questões que permeiam a gravidez precoce”, por Silvia Chakian

05 de fevereiro, 2020

A promotora de Justiça Silvia Chakian escreve sobre a campanha de prevenção da gravidez na adolescência criada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

(Blog Marie Claire, 05/02/2020 – acesse no site de origem)

Neste mês de fevereiro a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, dá início a uma campanha destinada a jovens, anunciada como estratégia de prevenção da gravidez na adolescência.

A preocupação é louvável, principalmente se considerarmos que no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, em 2018 nasceram 21.154 bebês de mães com até 14 anos e, entre jovens de 15 a 19 anos, o número sobe para 434.573, totalizando 15,4% dos nascimentos no país.

Sabemos o quão prejudicial pode ser uma gravidez na juventude e todas as suas consequências para o desenvolvimento da sociedade como um todo. Portanto, não há como aceitar esses índices e é preciso repudiar com veemência a sexualização precoce de crianças e adolescentes, respeitando sua especial condição de pessoa em desenvolvimento.

Nesse ponto, uma campanha de prevenção à maternidade e paternidade precoces seria digna de aplausos, não fosse o equívoco evidente de abordagem.

A iniciativa busca prevenir a gravidez na adolescência pregando às/aos jovens a abstinência sexual até “a idade adulta”, a exemplo de movimentos como o “Eu escolhi esperar” difundido a jovens cristãos, com o objetivo de que iniciem a vida sexual após o casamento.

O discurso nada tem de inédito, portanto, tratando-se de modelo já amplamente discutido nos Estados Unidos e que vem sendo resgatado no discurso moralista de Donald Trump.

A única novidade aqui é incômoda e alarmante: a abstinência sexual está sendo invocada como política estatal de saúde pública, o que é problemático, em diversos aspectos.

Não bastasse o nítido viés religioso, que jamais poderia moldar política de estado, a estratégia é ineficaz, porque simplista e distante da realidade de nossos jovens. Chega a ser pueril acreditar que a mera advertência do Governo de “não inicie a vida sexual até a idade adulta” terá o condão de demover a curiosidade e o desejo sexual típicos da juventude.

Há inquestionável carga moral nessa narrativa. Nosso passado não muito distante foi marcado por um conjunto de representações do que se deveria esperar das mulheres, na era do puritanismo. Exigia-se a castidade das meninas até o casamento mas, para os meninos, o incentivo sempre foi de iniciação sexual precoce, como forma de afirmação da virilidade. Modelo sustentado às custas da prostituição de meninas pobres, obviamente, estas invisíveis às regras da moral hipócrita.

O casamento fundado no amor romântico como condição absoluta para a felicidade e a virgindade sendo cultuada como alto valor social influenciaram negativamente a socialização feminina e permitiram a construção de um poderoso modelo de controle da sua sexualidade, com reflexos até hoje.

O discurso de que a prevenção equivale ao estímulo para o inicio da vida sexual é intelectualmente desonesto. Equivale dizer que a educação sexual “promove o sexo”, o que é absurdo, quando

busca em verdade tornar a/o adolescente consciente sobre seu corpo, sua liberdade de escolha e as consequências de suas ações.

A erotização precoce como fenômeno do nosso tempo só pode ser enfrentada com debate franco e sem tabus sobre gênero, desejo, prazer e sexo, o que proporciona conscientização e prevenção não somente de gravidez precoce e contágio de doenças sexualmente transmissíveis, mas também de relações abusivas e violência sexual.

Falo como mãe de um casal de adolescentes e, principalmente, como Promotora de Justiça que há mais de 20 anos trabalha com meninas e meninos jovens de diferentes origens, classes sociais, que nasceram e se desenvolvem nos mais diversos contextos e também vulnerabilidades, não só econômica, mas também social.

Aliás, aqui temos, ao meu ver, mais um ponto que merece destaque: as vivências tão diversas e complexas das/os adolescentes no nosso país, por si só, demonstram a total inadequação de uma campanha que universaliza a categoria “jovem” numa única perspectiva, daquele que está em busca de uma “alma gêmea”, quer casar e ter filhos e, portanto, poderia ser orientado a “aguardar” e fazê-lo na idade adulta.

Revela desconhecimento acerca das complexidades que podem envolver uma gravidez na adolescência, nem sempre resultado de um mero “descuido” durante tentativa de encontrar a/o parceira/o ideal para a constituição de uma família.

No meu trabalho já atendi meninas em situação de tamanha vulnerabilidade que buscaram a gravidez como forma de se tornarem visíveis, de serem reconhecidas com uma fração a mais de dignidade nas comunidades em que viviam, algumas delas sob o domínio de facções criminosas, onde ter vínculo com os líderes do tráfico pode significar status, proteção ou a única esperança de uma vida menos miserável.

Outras que chegaram à gravidez como forma desesperada de constituir família e sair de casa, a qualquer custo, para fugir de maus tratos, violência doméstica e sexual por parte de familiares dos quais se esperaria proteção.

Muitas experimentaram a gravidez precoce porque forçadas à prostituição, já que o modelo de recato não bate à porta daquela que vive em situação de penúria, sem estrutura familiar. Muito ao contrário, o fosso de desigualdade social que é a marca de nosso país tem contribuído para que nossas crianças e adolescentes adiram a propostas libidinosas para satisfação da lascívia por parte daqueles que, muitas vezes, bradam a conservação da família.

Vale ressaltar, nesse aspecto, que os altos índices de gravidez precoce também abrangem aquelas decorrentes de relações sexuais mediante coação, majoritariamente impostas às meninas, no ambiente doméstico. Quais as políticas públicas que estão sendo oferecidas a elas? Estão sendo devidamente orientadas sobre o que fazer, onde buscar ajuda, ou sobre seus direitos ao atendimento emergencial, prioritário e multidisciplinar por força da Lei n. 12.845/13 (Lei do Minuto Seguinte)?

Segundo dados fornecidos pela então Diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, Dra. Maria de Fátima Marinho, entre 2011 e 2016, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos tiveram uma gestação resultante de estupro levada à termo, quando teriam por lei direito à interrupção dessa gravidez. Desse número, 1.875 tinham 10 a 14 anos, portanto quase 73% do total. E em 68,5% dos casos, o autor da violência integrava o núcleo familiar e doméstico.

Portanto, não é sem tratar abertamente sobre sexualidade que vamos conseguir enfrentar as complexidades que permeiam a questão da maternidade ou paternidade precoces, muito ao contrário.

É o que vem demonstrando países desenvolvidos da Europa, como Alemanha, Dinamarca e Suíça, onde a educação sexual na escola é obrigatória e cada vez mais são criadas oportunidades para que jovens tenham acesso ao debate sobre questões de gênero e sexualidade, abertamente e sem tabus, com resultados comprovados na diminuição da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis.

Não há paradoxo maior, ao meu ver, em constatar que as pessoas que se dizem chocadas e preocupadas com a gravidez precoce de adolescentes são as mesmas que defendem argumentos que reforçam estereótipos de gênero e repudiam a inserção do debate sobre sexualidade nos planos de educação. Porque é evidente que as questões estão diretamente relacionadas.

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