Sexo e gênero: a fabricação do perigo, por Jacqueline Pitanguy e Carmen Barroso

13 de fevereiro, 2020

E se estiver em curso a criação de um paradigma?

(Folha de S.Paulo, 13/02/2020 – acesse no site de origem)

O ambiente democrático e republicano tem como pilar o respeito à diversidade de ideias, projetos e objetivos e sua livre expressão. Lamentavelmente assistimos ao crescimento de uma narrativa de ódio e intolerância que inibe o debate democrático ao transformar opositores em inimigos a serem exterminados com a mais letal das armas, o seu aniquilamento moral.

Observamos um distanciamento da democracia em direção ao autoritarismo que tem a perspectiva de um mundo binário; de um lado os que se autoproclamam defensores da pátria, da família, da infância, arautos do bem; e, de outro, seus opositores transformados pelo discurso conservador fundamentalista em perigosas categorias políticas de acusação. A politização da religião, qualquer que seja, e sua interferência em leis e políticas públicas, acirra essa divisão e a aversão a quem não se coaduna com o projeto conservador de moral e costumes.

O atual debate sobre a educação para a abstinência sexual dos jovens é um dos vários sintomas dessa crise profunda e complexa que se evidencia também na objeção ao conceito de gênero, à educação sexual nas escolas e até mesmo à caderneta de saúde dos adolescentes. No caso do aborto, o direito previsto no ordenamento jurídico do país em situações de risco de vida, estupro ou feto com anencefalia, bem como o direito ao debate sobre a expansão dessas situações é negado, e a discussão republicana de ideias é deslocada para o plano de ofensas pessoais na tentativa de aniquilar moralmente seus defensores.

A difusão do medo coletivo e da insegurança social é uma importante estratégia do autoritarismo fundamentalista que ressuscita o medo ao comunismo, ao socialismo, a um apocalipse nos alicerces da família. Movimentos feministas, LGBTQ, de mulheres negras, de direitos humanos e ambientalistas são acusados de agentes de desordem e destruição.

É comum pensar que se trata de uma onda com propostas tão absurdas que vai passar. Mas uma pergunta se impõe: e se, na realidade, estivermos assistindo à criação de um novo paradigma? Com apoio de alianças internacionais e abundantes recursos, já estão em curso perigosas mudanças em áreas estratégicas, como saúde, educação, comunicação, cultura, direitos humanos e política exterior.

E se em nossa perplexidade estivermos um passo atrás na compreensão do avanço acelerado, coordenado e eficiente desse novo paradigma? E se aqueles e aquelas que ocupam posições de poder e atuam de forma que parece ser errática, disparatada e incongruente estiverem, na realidade, atuando coordenadamente em uma coreografia precisa e eficiente? Coreografia que, em ritmo acelerado, destrói programas e políticas públicas e amplia o apoio popular a esse projeto de redenção moral. Resta a pergunta: como reagir, como mudar a equação de forças?

Diante das ameaças pessoais e do avanço dessa pauta de moral e costumes que ameaça conquistas históricas do país no campo dos direitos humanos, da igualdade de gênero, dos direitos sexuais e reprodutivos, e dos riscos à democracia, nossa tendência pode ser sucumbir ao pânico, que é paralisador, ou constantemente reafirmar nossa indignação —ou mesmo minimizar a relevância desses retrocessos, com a desculpa de que o bom senso vai prevalecer.

Grandes parcelas da população se sentem cercadas de perigos. Alguns reais, como a violência sexual  ou a diminuição de oportunidades econômicas e direitos sociais; outros fabricados, como as ameaças de destruição da família. E aceitam explicações simplistas que não respondem a seus problemas reais. Ao mesmo tempo uma aceleradíssima concentração de riqueza, poder e bens culturais cria as condições para a aceitação de falsas soluções.

Precisamos resistir. Nos espaços formais de poder e na criação de novas formas de fazer política, entendendo as raízes do apoio de eleitores a essa agenda, para que possamos trazer a esperança, com novas linguagens, e ampliar a resistência contra os retrocessos que retiram direitos. Somente assim poderão ser implementadas mudanças que de fato beneficiem a todas e todos.

Jacqueline Pitanguy é socióloga, é ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e ex-professora da Universidade Rutgers (EUA).
Carmen Barroso é consultora da Organização Mundial da Saúde, é ex-professora da USP e ex-pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.

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