Três crianças ou adolescentes são abusadas sexualmente no Brasil a cada hora

02 de março, 2020

Índice de notificações, de 2018, é o maior já registrado desde 2011, quando agentes de saúde passaram a ter a obrigação de computar atendimentos

(Globo.com, 02/03/2020 – acesse no site de origem)

O Brasil registrou ao menos 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes em 2018, o maior índice de notificações já registrado pelo Ministério da Saúde, segundo levantamento obtido pelo GLOBO.

O índice equivale a mais de três casos por hora — quase duas vezes o que foi registrado em 2011, ano em que agentes de saúde passaram a ter a obrigação de computar atendimentos. De lá para cá, os números crescem ano a ano, e somam um total de 177,3 mil notificações em todo o país.

Especialistas na área de defesa dos direitos da infância atribuem o aumento ao investimento em campanhas, abertura de canais de denúncia e formação de profissionais para a identificação de situações de abuso.

Mas também apontam para uma preocupação futura: segundo eles, o recorde coincide com um momento crítico no enfrentamento deste tipo de violência. Ao longo de 2019, programas federais foram descontinuados, e a desarticulação entre entidades da sociedade civil e entes governamentais vive momento crítico.

Realizado em parceria com universidades e destinado a capacitar professores, o programa “Escola que Protege”, por exemplo, foi encerrado pelo Ministério da Educação, e não há previsão de volta, de acordo com a pasta. Outra iniciativa, a Comissão Intersetorial de Enfrentamento a Violência e Exploração Sexual Infanto-juvenil — que articulava iniciativas dos ministérios dentro do governo — não se reúne desde 2018, e está sem previsão de retorno.

Nova diretriz

A defesa pública do presidente Jair Bolsonaro — no cargo desde janeiro de 2019 — para que não se discuta sexualidade em escolas, mas apenas no ambiente familiar, é apontada pelos especialistas como fator que pode agravar o quadro de abuso na infância.

Segundo os números do Ministério da Saúde, dois terços dos episódios de abuso registrados em 2018 ocorreram dentro de casa. Em 25% dos casos, os abusadores eram amigos ou conhecidos da vítima, em 23%, o pai ou padrasto.

— Foi um desafio construir nos últimos 20 anos uma perspectiva de trabalho sobre prevenção a partir da educação sexual desde a primeira infância. A criança deve aprender a identificar sinais de abuso — diz Karina Figueiredo, secretária executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

A formação de professores e alunos sobre a temática, propiciando um ambiente seguro para denúncia, é considerada estratégia fundamental para romper a barreira de silêncio e interromper ciclos de violência na família. Estimular a autodefesa de jovens e educá-los para que tenham maturidade no momento de descoberta da própria sexualidade também são citadas como medidas importantes.

— Falar em educação sexual não significa ensinar à criança o ato sexual. Você pode ensinar como se nominam as partes do corpo, que ele tem partes públicas e privadas. A uma criança de cinco anos, por exemplo, já é possível dizer o que são situações de risco e que ela pode dizer não a cada desconforto — diz Itamar Gonçalves, gerente de programas da Childhood Brasil, para quem medidas preventivas devem ser adequadas a cada faixa etária.

Direito de falar

Para Vicente Faleiros, sociólogo e autor de livros sobre o tema, o discurso governamental trata a educação para sexualidade como algo “imoral”.

— A vítima de abuso precisa de informação. Precisa saber reagir, contar, dialogar, e não ser silenciada. Caso contrário, ela é silenciada duas vezes: pelo abusador e pela política pública, que determina que não se fale sobre o assunto — afirma.

O MEC confirmou ao GLOBO ter extinguido as políticas com a temática e argumentou que agora elas estão concentradas no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. Essa pasta, por sua vez, informou que ainda não formulou um programa substituto para atuação nas escolas. Uma iniciativa semelhante estaria em negociação, mas é voltada para agentes de saúde.

As principais entidades de enfrentamento à violência têm se reunido para discutir estratégias face ao que consideram novas dificuldades. O incremento de parcerias com estados e municípios é apontado como alternativa.

Planos federais

Subordinado à ministra Damares, o secretário nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, diz considerar o enfrentamento à violência sexual uma prioridade do governo.

Prova disso seriam melhorias implementadas no serviço de denúncias Disque 100 — que passou a ter mais atendentes — e a recente adesão a uma coalizão de organizações que combatem a exploração sexual contra crianças e adolescentes na internet. Uma conferência internacional sobre o tema deve entrar na agenda.

Segundo Cunha, Damares solicitou a reativação da comissão interministerial que cuidava do tema, mas ainda aguarda uma resposta da Casa Civil. O ministério não quis informar a data da solicitação.

— Não acho que o presidente seja contra falar de sexualidade em escolas. Ele só entende que deve ser em linguagem adequada e com respeito à família — diz.

Para ele, o que vinha acontecendo nos últimos anos era uma “supervalorização do Estado” no trato de questões da infância.

Por Thiago Herdy

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