Lobby religioso ameaça direitos da mulher, alerta relator da ONU

03 de março, 2020

O Brasil é citado em um relatório submetido ao Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) entre países onde a religião é usada como justificativa para impedir que meninas e mulheres tenham acesso à educação sexual, assim como direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual.

(Blog Jamil Chade/UOL, 03/03/2020 – acesse no site de origem)

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, o país modificou sua política externa e de direitos humanos para levar em conta valores religiosos, conforme destacado pela ministra Damares Alves em visita recente a Genebra, na Suíça.

De acordo com o informe, consultas realizadas na América Latina em 2019 chegaram à constatação de que programas de educação sexual e saúde reprodutivas foram cortados no Brasil. Isso, segundo as pessoas ouvidas nas consultas, teria uma relação direta com a “pressão de grupos religiosos”. Países como Paraguai, Equador e Colômbia também estariam registrando tais tendências.

Procurada pela reportagem, o Ministério dos Direitos Humanos não deu uma resposta sobre o conteúdo do informe.

Em declarações à coluna, o relator da ONU para Liberdade Religiosa, Ahmed Shaheed confirmou sua preocupação e indicou que, em suas consultas na América Latina, recebeu relatos de como as ameaças aos direitos de meninas e mulheres são realidades em diversos locais.

Segundo ele, os estados da região continuam com leis seculares. “Mas as pessoas me relatam que existe uma visibilidade cada vez maior de grupos religiosos em espaços públicos que argumentam que alguns direitos de mulheres podem ser limitados com uma justificativa religiosa”, disse.

“Meninas e mulheres têm tido dificuldades em ter acesso a direitos reprodutivos, com a consequência para a saúde e muito mais que isso”, alertou.

Na ONU, a delegação brasileira afirmou num discurso nessa segunda-feira que a liberdade religiosa era uma prioridade do governo de Jair Bolsonaro e que Brasília estaria particularmente preocupada com a intolerância diante de cristãos.

O Itamaraty ainda apontou que “o governo brasileiro condena todas as formas de violência religiosa e discriminação, incluindo contra mulheres, meninas e minorias”.

Questão mundial

As reuniões na América Latina ocorreram em Buenos Aires e contaram com representantes de agências da ONU, vítimas, defensores de direitos humanos, acadêmicos e religiosos.

Se o Brasil é citado nas consultas explicitamente, o informe destaca que a situação do país não é a única.

“Participantes das consultas, nas quatro regiões, também notaram o uso crescente da religião ou crença para negar saúde reprodutiva ou direitos sexuais”, alerta.

Ao longo dos últimos meses, o Itamaraty tem adotado uma postura que vem causando choque entre delegações estrangeiras. Em projetos de resolução na ONU, o governo tem alertado que não aceitaria referências a termos como educação sexual ou direitos reprodutivos.

Aborto

Em Nova York em setembro de 2019, o governo ainda se somou a uma declaração liderada pelos EUA em que países insistiam sobre a necessidade de se evitar a “criação” de novos direitos. Entre eles, mais uma vez estavam os direitos reprodutivos e sexuais. O argumento é de que tais referências poderiam abrir caminhos legais para o aborto.

Na semana passada, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, esteve na ONU para reuniões e, entrevistas para a imprensa estrangeira, acenou para o papel das igrejas na “nação”.

Damares insistiu na “defesa da vida”, uma forma encontrada para declarar a oposição do governo brasileiro a qualquer brecha que pudesse ser aberta em resoluções internacionais para o aborto.

Sempre fazendo referência às consultas regionais, porém, o relatório da ONU citou como leis “limitaram seriamente o acesso das mulheres ao aborto”. “Três quartos do total de abortos na região (latino- americanas) são alegadamente inseguros devido a impedimentos legais ao acesso seguro, resultando em altas taxas de mortalidade materna evitável na Argentina, Venezuela, Brasil, Paraguai, Peru e Bolívia”, destaca.

LGBT+

O texto ainda cita campanhas contra “ideologia de gênero” na região latino-americana e alerta como, em certos casos, a posição pode significar um encorajamento à discriminação contra a população LGBT+.

Mas a mesma consulta faz um elogio ao Brasil, citando o país como um dos locais onde o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo está garantido.

De uma forma geral, porém, o documento insiste em alertar para o risco de que crenças e a fé se transformem em políticas discriminatórias.

O relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU também expressou profunda preocupação com o aumento das campanhas políticas e religiosas, que invocam a liberdade religiosa para buscar o retrocesso dos direitos humanos que são fundamentais para a igualdade de gênero, tanto em nível nacional quanto internacional.

Por Jamil Chade, colunista do UOL

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