‘Lente de gênero’ é necessária no combate ao coronavírus, diz representante da ONU Mulheres

19 de abril, 2020

Desde o final de 2019, Anastasia Divinskaya ocupa o posto no Brasil. Ao HuffPost, ela fala sobre efeitos da pandemia para as mulheres.

(HuffPost, 19/04/2020 – acesse no site de origem)

Diante do surto do novo coronavírus no Brasil, é imprescindível que o governo federal esteja empenhado em barrar a contaminação, esteja alerta ao aumento de casos e que também coloque uma “lente de gênero” em suas ações.

“No Brasil, infelizmente, há essa carga desproporcional de trabalho para as mulheres, que muitas vezes estão fora do mercado formal, sem segurança em seus empregos, à sombra da economia”, afirma, ao lembrar que elas também são maioria no sistema de saúde. “As mulheres que estão na linha de frente da resposta ao vírus precisam de suporte prioritário.”

Temos que ter um olhar sobre gênero nos gabinetes de crise, incluindo assim a dimensão das mulheres nos planos de resposta ao vírus. Anastasia Divinskaya, representante da ONU Mulheres no Brasil

Pesquisa da Fiocruz aponta que o processo chamado de “feminização” da área da saúde permite “perceber o aumento da participação feminina nas faixas etárias mais jovens em profissões ligadas à saúde”. Enquanto elas representam 36% do total na área, 48% está abaixo de 29 anos.

Sobre quem está na linha de frente, de acordo com o estudo Perfil da Enfermagem, publicada pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 84,6% da equipe é feminina.

“Quando um sistema de saúde está sobrecarregado – o que é o caso do Brasil – um fardo ainda maior se coloca sobre o cuidado em casa e esse fardo está nas costas das mulheres. Temos que levar em consideração que, em algumas famílias, há uma expectativa de que a mulher tomará conta de todos seus familiares, assim como das crianças”, diz Anastasia.

Em março, logo após a OMS (Organização Mundial da Saúde) decretar a pandemia do novo coronavírus, a ONU Mulheres publicou um estudo sobre as dimensões de gênero na resposta ao vírus, em especial, na América Latina. O documento ressalta que “as mulheres continuam sendo as mais afetadas pelo trabalho não remunerado, principalmente em tempos de crise” e especifica que é preciso garantir que mulheres façam parte dos comitês de decisão estabelecidos pelos países.

No Brasil, o comitê de crise criado pelo governo de Jair Bolsonaro conta com 16 ministros, sendo Damares Alves, titular do MMFDH (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos), a única presença feminina, de acordo com o decreto que criou o colegiado.

“Temos que ter um olhar sobre gênero dentro dos gabinetes de crise, incluindo assim a dimensão das mulheres nos planos de resposta ao vírus. Assim garantimos que teremos uma questão, de fato, observada”, aponta.

No documento, a ONU também destaca a importância da produção de dados desagregados por gênero, com taxas diferenciadas de infecção sejam coletados e que é preciso que governos atendam às necessidades imediatas das mulheres que trabalham no setor da saúde.

“Não esperem. Mesmo com os dados estando incipientes,eles devem ser levados em consideração. Durante a crise, temos que garantir que os governos tenham responsabilidade sobre os dados desagregados, mas é importante olhar para eles através dessas ‘lentes de gênero’”, diz Anastasia.

Dados do Ligue 180 divulgados pelo MMFDH apontam aumento de 18% entre as denúncias de violência contra a mulher recebidas entre os dias 17 e 25 de março – período em que políticas de isolamento foram intensificadas -, comparado aos dias 1 e 16.

Detalhamento da pasta aponta que 829 denúncias foram registradas no início do mês, entre os dias 1 e 16 de março. Já entre os dias 17 e 25, foram registradas 978. Em ambos os períodos, respectivamente, o sistema notou aumento nos atendimentos em geral; de 3.045, o número de ligações subiu para 3.303, apontando aumento de 8,5%.

Natural do Quirguistão, Anastasia tem 19 anos de experiência profissional nas Nações Unidas e conversou com o HuffPost Brasil por telefone. Antes de ser designada para a representação no Brasil, no final de 2019, ela foi representante da ONU Mulheres na Ucrânia e também no Timor-Leste.

Na entrevista, ela falou sobre mulheres e coronavírus, as expectativas para as as eleições municipais de 2020 e sobre os 25 anos da Conferência de Pequim – que, em 1995, lançou uma plataforma de ação considerada visionária para agir no que diz respeito aos direitos de mulheres e meninas no mundo.

“Embora nós tenhamos, ao longo destes 25 anos, experimentado melhoras expressivas, nenhum país no mundo alcançou a totalidade da igualdade de gênero e ainda há muito trabalho a ser feito”, pontua.

Leia a entrevista completa:

HuffPost Brasil: Atualmente, o Brasil é um dos países que enfrenta uma crise tanto de saúde quanto econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus. De que forma essa crise afeta a vida das mulheres e o que é preciso fazer para minimizar danos? 

Anastasia Divinskaya: A resposta para o coronavírus no Brasil é um lembrete da contribuição das mulheres brasileiras em todos os níveis – inclusive na linha de frente, como socorristas, por exemplo; como profissionais de saúde, cuidadoras, voluntárias e líderes em suas comunidades, na logística, como cientistas, como pesquisadoras e mais.

Mulheres estão nos lugares de resposta às necessidades básicas. Globalmente, as mulheres são 70% das trabalhadoras nos setores sociais e da saúde. Globalmente, as mulheres fazem três vezes mais trabalhos não remunerados do que homens.

Quando um sistema de saúde está sobrecarregado – o que é o caso do Brasil – um fardo ainda maior se coloca sobre o cuidado em casa e esse fardo está nas costas das mulheres. Temos que levar em consideração que, em algumas famílias, nas famílias tradicionais, há uma expectativa de que a mulher tomará conta de todos seus familiares, assim como das crianças.

Ainda assim, as mulheres são afetadas duramente pelos impactos financeiros do coronavírus, porque no Brasil, infelizmente, há essa carga desproporcional de trabalho para as mulheres, que muitas vezes estão fora do mercado formal, sem segurança em seus empregos, à sombra da economia. Sem estabilidade, as mulheres não conseguem se sustentar, tampouco prover as necessidades básicas de sua família. Aqui, eu falo especificamente das domésticas. Para elas é muito difícil essa situação.

O que temos aqui no Brasil também é a possibilidade do aumento dos casos de violência doméstica e exploração sexual. Não temos os dados precisos, exatos, mas é o que está se desenhando. Temos evidências vindo de outros países, onde a epidemia começou antes, que o isolamento nos lares, as medidas de segurança e o confinamento são elementos que colaboram para o aumento do índice de casos de violência doméstica.

Como somos partes da equação, o que a ONU Mulheres recomenda como uma resposta efetiva é refletir sobre esse viés de gênero da pandemia. Nós convocamos os governos, os que tomam as decisões, ao redor do mundo, que tomem ações radicais e positivas para reduzir a constante desigualdade presente nas várias áreas da vida de uma mulher, que levem elas em consideração. Façam isso, não esperem. Mesmo com os dados estando incipientes,eles devem ser levados em consideração. Durante a crise, temos que garantir a responsabilidade sobre os dados desagregados, mas é importante olhar para eles através de lentes de gênero.

A mobilização social e o papel importante das organizações de mulheres não podem ser subestimados. E gostaria de reiterar uma mensagem: mulheres não são um grupo homogêneo. Anastasia Divinskaya, representante da ONU Mulheres no Brasil

Precisamos de dados mostrando as diferenças nas taxas de infecção, diferenças nos impactos econômicos, diferenças no fardo do cuidado. E a incidência de violência doméstica e abuso sexual no Brasil. Temos que incluir um olhar sobre gênero dentro dos gabinetes de crise, incluindo assim a dimensão do gênero nos planos de resposta à crise do coronavírus. Assim garantimos que a questão de gênero é, de fato, observada. Temos que providenciar um suporte prioritário para mulheres nas linhas de frente da resposta à pandemia. Criar um acesso melhor para profissionais da saúde e do cuidado conseguirem equipamentos de proteção pessoal. E produtos de higiene menstrual, também, por exemplo.

[Essa resposta] requer promover um arranjo de trabalho flexível para mulheres com o fardo do cuidado. Isso é ainda mais importante para áreas que já estão em quarentena – o que agora vemos na maioria das cidades no Brasil. A experiência do zika, por exemplo, mostra como organizações de mulheres, a nível comunitário, podem ter um papel decisivo nestas questões.

A mobilização social e o papel importante das organizações de mulheres não podem ser subestimados. E gostaria de reiterar uma mensagem: mulheres não são um grupo homogêneo. Então, ao fazer uma análise de gênero, ela deve vir sempre acompanhada de raça e classe. Certos grupos de mulheres na sociedade brasileira são ainda mais afetadas, ainda mais marginalizadas porque elas estão sujeitas à discriminação racial além da de gênero.

Por enquanto, ainda teremos eleições municipais no Brasil, mas fala-se em adiá-las. As mulheres são muito pouco representadas nos estados e municípios pelo País e superam uma série de dificuldades, como, por exemplo, falta de recursos para campanha. Como promover, de forma efetiva, a participação feminina na política?

Mulheres devem ser igualmente representadas na política e isso é algo que está dado, não é algo difícil de entender. Considerando a estatística de que mulheres são metade da população do Brasil, logo elas deveriam ser igualmente representadas em espaços de poder. Faz muito sentido – um sentido prático – que levemos isso em consideração e aceitar como um objetivo que temos que atingir; para isso, podemos nos nutrir dos exemplos positivos que o Brasil já teve.

A eleição para o Congresso, em 2018, nos deu alguns exemplos positivos, certo? Tivemos um aumento considerável na bancada feminina – incluindo mulheres negras, certo? A análise destes casos, destas abordagens, o que foi diferente no contexto dessas eleições parlamentares que permitiu esses sucessos, é algo que podemos nos apoiar, por um lado. Por outro, sim, não é o suficiente; mas houve, sim, uma grande mobilização, uma nova abordagem de fazer as campanhas.

A base para as ações está fornecida neste espectro de um aumento que foi construído e que vem caminhando nos últimos 25 anos. Eu não estou falando apenas sobre cotas, mas sobre outras medidas afirmativas que incluem todo o espectro. Estas medidas afirmativas têm de ser implementadas para que nós possamos atingir uma maior representação na esfera municipal de poder.

Além disso, deve-se construir uma grande conscientização que deve ser abraçada pelos partidos políticos sobre as mulheres que estão concorrendo – eu tendo a descartar a prerrogativa de que “ah, faltam mulheres que sejam candidatas altamente qualificadas”. Não é assim. Nós temos muitas delas. Estou no Brasil há pouco tempo, mas estou muito impressionada e digo com confiança: há mulheres com uma enorme capacidade política. Então, é preciso enfrentar normas sociais discriminatórias contra mulheres que concorrem a cargos públicos e encorajá-las, fazer com que elas acreditem que podem ultrapassar qualquer impedimento – tanto legal ou cultural.

Em 2020, completa-se 25 anos da conferência de Pequim. Como a ONU Mulheres avalia o desempenho dos países ao longo desses anos, tendo em vista que nenhum país conseguiu atingir as metas integralmente? Na sua avaliação, o que piorou e o que melhorou? 

Embora nós tenhamos, ao longo desses 25 anos, experimentado melhoras expressivas, nenhum país no mundo alcançou a igualdade de gênero na totalidade e há muito trabalho a ser feito. Mais de 75% dos membros dos parlamentos em todo o mundo são homens. Em todos os lugares elas ainda trabalham mais horas e ganham menos, têm menos opções, são sub-representadas e sofrem violência em casa e em espaços públicos.

Esse ano, aparentemente, está sendo muito mais do que apenas a comemoração do que consideramos ser o nosso projeto piloto e o mais importante [Plataforma de Ação de Pequim]. Este também é o ano em que o movimento global das mulheres, a ONU e os estados-membros eram esperados para comemorar o vigésimo aniversário deste projeto. Nós também estávamos preparadas para comemorar o quinto aniversário das Metas de Desenvolvimento Sustentável [da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável], que joga luz sobre a igualdade de gênero. É uma frustração que esse momento coincida com a pandemia da covid-19.

O que foi a chamada “Conferência de Pequim”

Em 2020, a Conferência de Pequim completa 25 anos. A 4ª Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas foi realizada na China em 1995 e construiu uma plataforma de ação que, ainda hoje, é considerada visionária e progressista no que diz respeito aos direitos e o empoderamento de mulheres e meninas ao redor do mundo. O acordo firmado, como forma de orientar o que países deveriam fazer internacionalmente para combater estas mazelas, deveria ser cumprido por todos os 189 países signatários.

No evento, a “Plataforma de Ação de Pequim” estabeleceu 12 áreas fundamentais de ação para que os países lançassem seu olhar de forma estratégica: pobreza, educação, saúde, violência, economia, poder e meio ambiente. Mesmo depois de 25 anos e de pouca efetivação, ela continua sendo o modelo para o avanço da igualdade de gênero no mundo.

Em março de 2020, a Comissão da ONU sobre a Situação das Mulheres discutiria esforços feitos pelos países para implementar a Plataforma. Mas, devido à pandemia de coronavírus – declarada no mesmo mês – os estados membros da ONU realizaram apenas uma sessão no dia 9 de março.

 

Nós antecipamos a Comissão da Mulher neste ano e, por conta do coronavírus, realizamos uma única sessão e nela o secretário-geral da ONU apresentou o relatório ‘Gender Equality: Women’s rights in review 25 years after Beijing’ (Equidade de Gênero: Uma revisão dos direitos das mulheres 25 anos depois de Pequim, em tradução livre), com muitos detalhes dos pontos positivos que alcançamos neste período. Eles demonstram preocupação porque o progresso geral não foi ágil nem profundo o suficiente; e que, em algumas áreas, o progresso quase não aconteceu.

Os países-membros reconhecem que barreiras estruturais, práticas discriminatórias e feminização da pobreza persistem. Enquanto os líderes reafirmam sua vontade política para agir, eles também reconhecem que novos desafios surgiram, e que isso exige esforços que devem ser intensificados.

Por Andréa Martinelli

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