“Me trataram como criminosa”, diz gestante obrigada a sair de Noronha

12 de maio, 2020

Com medo de ser infectada pelo novo coronavírus, a empresária Alyne Dias de Luna, 30, grávida de 34 semanas, se recusava a sair do arquipélago de Fernando de Noronha (PE), mas foi obrigada por decisão judicial a deixar o local no último domingo para dar à luz no Recife.

(Universa, 12/05/2020 – acesse no site de origem)

A medida atendeu um pedido da administração do local cumprindo um protocolo médico, que pede que as grávidas deixem a ilha a partir da 28ª semana de gestação, pois Noronha não tem maternidade e o único hospital (São Lucas) não tem estrutura para realização de partos. A administração alega que havia alertado Alyne sobre o protocolo, que ela não havia deixado a ilha após 32 semanas e, por isso, ingressou com o pedido de tutela antecipada.

No último domingo (10), ela foi levada, sob escolta policial, para o aeroporto de cidade e embarcou para a capital pernambucana em um avião de pequeno porte.

Alyne afirmou que se sentiu uma criminosa ao ser alvo da polícia, durante o fim de semana, para cumprir o mandado judicial. Ela alega que preferia ficar em Fernando de Noronha, que não tem mais casos de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, enquanto Recife lidera o número de casos no estado. Após 1h50 de viagem, ela chegou à capital pernambucana, onde espera a chegada de Helena, a sua primeira filha.

“Me trataram como se eu fosse uma criminosa, uma fugitiva. A polícia foi três vezes à minha casa. Depois, uma equipe ficou de prontidão na minha porta. Me senti constrangida, coagida e amedrontada com a situação. Ficar grávida e ser mãe agora virou uma ameaça na ilha”, afirma Alyne em entrevista a Universa.

“Somos perseguidas porque não há estrutura mínima para partos e não podemos ter nossos filhos na paz, na tranquilidade de estarmos perto de casa, de estarmos com nossos familiares”, relata a gestante, afirmando que não teve como organizar a mala dela, almoçar e tomar um banho em casa porque foi detida na delegacia enquanto prestava esclarecimentos. “Pedi que fosse uma policial comigo e não deixaram. Fui da delegacia para o aeroporto”, diz.

Questionada sobre o motivo de não ter atendido o pedido da gestante, a Polícia Civil de Pernambuco não respondeu à reportagem e explicou que cumpriu decisão da Justiça. “A gestante descumpriu ordem judicial na qual determinava sua vinda à Recife em um voo que sairia da ilha no sábado (09). A gestante compareceu na Delegacia de Fernando de Noronha, onde foi ouvida e responderá pelo crime de desobediência”, disse a entidade.

Protocolo médico x desejo da gestante

Alyne alega que ela e a família decidiram que o nascimento de Helena ocorreria na ilha de Fernando de Noronha, com assistência de uma doula, devido à pandemia do novo coronavírus. Ela afirma que está com medo do risco de exposição dela e da filha à covid-19 em maternidade do Recife, pois a capital pernambucana é uma das cidades brasileiras com maior número de infectados e mortos durante a pandemia.

Na ilha não há mais pessoas infectadas pelo novo coronavírus e nem doentes por covid-19. As 26 pessoas infectadas já se recuperaram e o fechamento da ilha acabou com a transmissão comunitária pelo novo coronavírus. Realidade diferente do continente, pois Pernambuco ocupa o quarto lugar na lista de estados mais afetados pela pandemia. O estado tem 13.768 infectados pelo novo coronavírus e 1.087 pessoas mortas por covid-19, segundo boletim do Ministério da Saúde divulgado ontem.

A partir de 28ª semana de gestação, as grávidas são obrigadas a saírem da ilha para terem seus filhos no continente devido à precariedade do serviço de saúde pública em Noronha. O arquipélago não tem maternidade, já que o único hospital de Noronha (São Lucas) desativou a instalação em 2004. No pedido judicial contra Alyne, a administração do distrito estadual de Fernando de Noronha alegou que a interrupção do serviço foi tomada após análise da SES (Secretaria Estadual de Saúde) apontar baixa demanda de partos (média de 40 por ano), inviabilizando assim os custos de manutenção da estrutura.

Ainda segundo o texto, grávidas que realizam o pré-natal em Noronha são alertadas de que na 28ª semana de gestação precisam ir para Recife para não colocar em risco a saúde e a vida da gestante e do bebê pela limitação do hospital São Lucas, que não tem bloco cirúrgico, equipe mínima para parto (um médico anestesiologista, dois obstetras e um pediatra) e UTIs (Unidade de Terapia Intensiva) adulto e neonatal em caso de intercorrência. Também não há nenhuma unidade privada na ilha, que poderia ser alternativa para as moradoras grávidas que optassem por dar à luz no local.

Alyne afirmou que entrou em desespero no último sábado (9) ao saber que existia uma ordem judicial expedida pelo juiz Raimundo dos Santos Costa para obrigá-la a deixar a ilha. Ela ainda esperava ter sucesso com uma liminar, mas teve de ir à delegacia no domingo para prestar esclarecimentos. Ao chegar no local, foi informada da sentença judicial que determinava que fosse enviada para Recife imediatamente e de forma coercitiva, caso ocorresse reação. Uma aeronave já estava a caminho para buscá-la.

“O parto está previsto para 20 de junho e eu fui retirada da ilha para Recife, me expondo ao risco de ser contaminada. Antes, as mulheres que tinham gestação saudável podiam optar por ter seus bebês em casa, mas por pensar assim fui tratada como uma criminosa porque quem engravida em Fernando de Noronha é obrigada a sair da ilha”, relata a grávida, que pretende realizar parto natural.

No voo, Alyne alega que não estava acompanhada de um médico para receber uma eventual assistência e lamenta estar agora hospedada em um hotel no Recife, usado pelo governo estadual para abrigar pessoas que moram em Noronha e precisam de tratamento médico na capital.

“Gostaria que respeitasse a minha decisão. Foi constrangedor e estressante passar por tudo isso. Ainda vou passar pela aflição de estar aqui no Recife com medo de ser infectada pelo novo coronavírus ou a minha filha”, destaca a empresária.

O marido de Luna não pôde ir com ela, pois o casal tem uma locadora de veículos e, mesmo parada devido ao fechamento do turismo na ilha, os bugues precisam ser ligados para não ter problema no motor. Além disso, o casal decidiu vender álcool 70% para se manter no período que está impedido de trabalhar com a locação dos veículos. “Ele vai vir em junho, quando estiver próximo de o parto ocorrer”, conta.

Ela critica o argumento da administração da ilha em não ter maternidade porque a quantidade de partos é insuficiente para manter a estrutura. Para ela, o serviço deve existir, tendo ou não alta demanda. “Não se pode engravidar porque no fim da gestação não somos respeitadas. Uma cultura está se perdendo, pois os partos não podem ocorrer em Noronha. O que o turismo movimenta economicamente para o governo, além da quantidade de dinheiro de taxa de preservação ambiental, não justifica uma unidade de saúde sem estrutura para casos de média e alta complexidade”, avalia.

Administração diz ter informado Alyne de protocolo

A administração do distrito estadual de Fernando de Noronha se manifestou, por meio de nota, afirmando que “o protocolo médico durante o acompanhamento do pré-natal em Fernando de Noronha inclui o devido esclarecimento às gestantes sobre a necessidade de encaminhamento ao continente a partir da 28ª semana de gestação”.

“A gestante, que está na 34ª semana, compareceu a sete consultas realizadas na Unidade de Saúde da Família Dois Irmãos, durante as quais foi orientada acerca da importância do término do pré-natal no continente. Foi esclarecido e orientado durante as consultas sobre os riscos à sua saúde e à do feto, decorrentes de sua permanência em Noronha após a 28ª semana de gestação”, informa a nota.

A administração diz ainda que foi necessário que a administração ingressasse com o pedido de tutela antecipada porque a grávida “recusou-se a deixar a ilha, tendo inclusive descumprido duas decisões judiciais determinando seu encaminhamento imediato ao Recife, sob pena de remoção compulsória e coercitiva”.

O órgão alega que presta “completa assistência às gestantes quando do encaminhamento ao continente, oferecendo hospedagem, passagens aéreas, alimentação, assistência social para apoio psicológico e todo suporte quanto à unidade de referência onde se realizará o parto”.

A Secretaria Estadual de Saúde (SES) disse que a assistência médica para moradores, turistas e trabalhadores em Fernando de Noronha é feita exclusivamente pelo hospital São Lucas, que tem serviço de urgência e emergência, com “estrutura semi-intensiva.” “Quando há necessidade de um atendimento mais especializado, o paciente é transferido para o continente. Caso necessário, inclusive, em UTI aérea”, diz.

A pasta alega que a recomendação dada às grávidas para não dar à luz no arquipélago visa uma melhor condição a elas, já que o local teria complicações para estruturar o hospital para procedimentos deste tipo.

“É importante destacar que a não realização de partos em Noronha é uma orientação estabelecida com o único objetivo de garantir assistência qualificada às gestantes por ocasião do trabalho de parto, já que existe uma grande dificuldade de manter equipes completas na Ilha, assim como a estrutura necessária para realização de partos”, informa a secretaria.

A SES não explicou o porquê da falta de investimento para construção de uma maternidade e a falta de estrutura de UTI no hospital São Lucas para atender pacientes que necessitem dos cuidados intensivos.

Por Aliny Gama

Colaboração para Universa, em Maceió

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