Perdido na tradução: relacionamento abusivo é violência, mas não necessariamente crime, por Beatriz Accioly Lins, Arielle Sagrillo Scarpati e Silvia Chakian

15 de setembro, 2020

Para você estar em um relacionamento abusivo, você só precisa ser uma pessoa e estar sendo manipulada, enganada, sob mentiras, sob pressão, sob o desejo do outro a qualquer custo.”
Mayra Cardi, influencer, 2020.

Nos últimos tempos, profissionais que trabalham no atendimento a mulheres em situação de violência têm esboçado certa curiosidade (e alguma preocupação) em relação à crescente proliferação de relatos na internet que descrevem situações problemáticas, dolorosas e nocivas vividas em interações afetivo-amorosas nas redes sociais. Especialmente comuns no Instagram e no Twitter, esses desabafos, geralmente descritos como histórias de “relacionamentos abusivos”, costumam ser permeados por experiências de muito trauma e sofrimento.

Nesse cenário, alguns relatos recentes ganharam bastante repercussão pública, em especial quando envolviam mulheres famosas que usaram as redes para vocalizar suas próprias experiências, como o ocorrido com a influencer digital e coach Mayra Cardi, que em meados de 2020 compartilhou com seus milhões de seguidores as aflições vividas no “relacionamento abusivo” com o pai de sua filha.

Inspiradas por Mayra, outras brasileiras também resolveram contar o que viviam ou já tinham vivido em seus “relacionamentos abusivos”. Movimento semelhante já estava acontecendo, também, a partir da mobilização das hashtags #exposed, em que usuárias da rede publicizam violências vividas na condição de mulheres, muitas delas em relações amorosas.

O compartilhamento coletivo digital parece trazer um alívio considerável para quem escreve e lê, uma vez que o reconhecimento da gravidade das situações descritas por parte de outras pessoas bem como o contato com outras vivências semelhantes trazem uma maior percepção de que este não seria um problema individual e sim coletivo, que acometeria muitas mulheres e meninas.

O uso do termo “relacionamento abusivo”– que aqui é propositadamente colocado entre aspas,tanto por se tratar de uma expressão recente quanto porque seu entendimento ainda gera alguma confusão –denuncia uma disputa social pela inclusão de certos comportamentos e práticas no rol de condutas consideradas violentas, indesejáveis, tóxicas e condenáveis.Um processo que, apesar de legítimo e saudável, ainda carece de melhor elaboração. Propomos, aqui, um início de conversa.

Para a maioria das pessoas, noções de violência ainda são muito associadas a situações de agressões físicas, a contextos em que a marca da violação extrapola a intimidade da relação e torna-se pública por meio de machucados, hematomas e cicatrizes. Já as noções de abuso, por sua vez, parecem denunciar que, para além daquilo que é acessível a olho nu, existem outras camadas de disputas de poderes que precisam ser reconhecidas e legitimadas.

O termo abuso advém da área da saúde e dos saberes psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise), designando uma dinâmica não saudável de relacionamento em que há imposição de desejos e vontades, assim como desrespeito a limites e ao bem-estar alheio. Nesse sentido, o uso do termo “relacionamento abusivo” reivindica, como mencionado, que nem todas as violências são visíveis nos corpos e que contextos de maus-tratos emocionais, desqualificação moral e ataques à autoestima também devem ser compreendidos enquanto experiências de violação. Arriscamos dizer que o “relacionamento abusivo” se aproximaria da noção de violência psicológica, sem necessariamente restringir-se a ela.

É nessa área cinzenta, entre tentativas de definição e compreensão das experiências vividas, que muitas meninas e mulheres procuram na justiça o espaço para dar vazão aos conflitos e frustrações advindos dessas relações, mencionando para isso, e não raramente, a Lei Maria da Penha. O que acontece, entretanto, quando relatos de “relacionamento abusivo” chegam à polícia ou ao sistema de justiça? A resposta para essa questão é bastante complicada.

De fato, a Lei Maria da Penha define cinco tipos de violências domésticas contra mulheres: física, psicológica, patrimonial, sexual e moral. Contudo, a lei não define tipos penais e isso faz muita diferença. No mundo do Direito e das leis, violências e infrações penais (gênero do qual crimes e contravenções penais são espécies) não são sinônimos, e o não são sinônimos, e o abuso nos relacionamentos é sequer mencionado.

Definições de violência e infrações penais são instáveis e mudam constantemente ao longo da história, pois derivam de debates, disputas entre diferentes grupos sociais e de transformações nas mentalidades. Esses debates costumam envolver legisladores/as (responsáveis por elaborar as leis), coletivos ativistas e militantes, a imprensa (que noticia e circula diferentes pontos de vista), pesquisadores/as e especialistas (que fazem levantamentos, estudos e estatísticas), bem como profissionais do Direito e do sistema de justiça, como promotores/as e juízes/as (que fazem as leis acontecerem na prática).

Caracterizar algo como violento é dizer que essa conduta ou esse comportamento deve ser socialmente condenável. Já a infração penal, por sua vez, é algo estabelecido como ilícito pela lei penal, isto é, algo que é juridicamente repreendido e inaceitável, sendo por isso passível de punição por parte do Estado.

Por conta dessa diferença –que parece residual, mas não é– nem todas as situações consideradas violentas em uma dada sociedade ganharão, necessariamente, o status jurídico de crime ou mesmo de contravenção penal (uma infração de menor gravidade e punida de forma mais branda). Basta lembrar que, por décadas, mulheres brasileiras organizadas na luta por direitos demandaram que a violência doméstica fosse tratada como um crime grave e merecedor de maior atenção da justiça, uma vez que parte da população ainda acreditava na antiga máxima de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

Da mesma forma, nos últimos anos, os debates acerca do assédio a meninas e mulheres em espaços públicos, por muito tempo considerado um comportamento masculino normal ou até mesmo desejável, trouxeram a pauta para o campo do criticável e do condenável. Porém, a definição do assédio como violência por parte da sociedade não foi o suficiente para o tratamento dessas situações como crimes, então foi organizada uma demanda para sua criminalização, isto é, sua inclusão no rol de tipificações penais.

Dito de outra maneira, para acionar a justiça criminal, é preciso que determinada ação seja considerada infração penal, isto é, crime ou contravenção penal. No “juridiquês”, os crimes são previstos pelo Código Penal e as contravenções, pela Lei de Contravenções Penais, sendo que ambos trazem tipificações descritas em termos de condutas e punições.

Quando uma mulher busca os serviços da Polícia Civil para registrar um boletim de ocorrência referente a algo que viveu em uma relação afetivo-amorosa, como um namoro ou um casamento, o papel do/a policial que a atende é traduzir sua fala em tipificações penais presentes na legislação brasileira.

Via de regra, situações de agressões físicas são comumente registradas como “lesão corporal”, quando deixam marcas aparentes, e “vias de fato”, quando não há vestígios ou eles desapareceram; intimidações à integridade física são traduzidas no tipo criminal da “ameaça”, quando há promessa de mal injusto e grave, e na contravenção de “perturbação da tranquilidade”, quando há perseguição; já ofensas e xingamentos são frequentemente registrados como “injúrias”e “difamações”. Feitos os registros, os casos são investigados por meio de diligências realizadas pela Polícia Civil que, concluindo, encaminha o apurado ao Ministério Público para as providências de denúncia (que dá início à ação penal em juízo), arquivamento ou requerimento de novas investigações.

Muitos relatos de“relacionamento abusivo” não envolvem necessariamente situações de agressões, ameaças ou ofensas. Com frequência, meninas e mulheres descrevem situações sutis de chantagens, julgamentos, controle, domínio, pressões, manipulações e desqualificações emocionais que não se enquadram nesses tipos penais hoje existentes. Desse modo, parte dos relatos de “relacionamento abusivo” não é considerada crime pela lei brasileira.

Isso significa que “relacionamentos abusivos” não são violência? Não. Então isso significa que nossas leis são deficientes ou precárias? Também não.

Não há como negar que,no processo de evolução da proteção jurídico-penal da mulher, a categoria “violência de gênero” passou por grandes transformações, repercutindo na eleição de novos bens jurídicos a serem resguardados, a exemplo da já citada criminalização de comportamentos de assédio, traduzidos no tipo da importunação sexual.

No entanto em um Estado de Direito como o nosso, o princípio da intervenção mínima exige que o Direito Penal (e sua ameaça de sanção) seja sempre a última ratio, isto, é, o último recurso, sempre subsidiário, que só deve se fazer presente quando todas as demais barreiras de controle social possíveis forem ultrapassadas.

Não por outra razão o Direito Penal costuma ser o retrato histórico-cultural de uma sociedade, refletindo inclusive sua carência de valores éticos e morais que seriam capazes do controle social, sem necessidade de coação. Uma sociedade com maior deficiência desses valores se voltará sempre mais para o sistema penal em busca de controle social e acabará arcando com os impactos negativos de suas medidas coercitivas.

Portanto, o Direito Penal, aquele que lida com os crimes e contravenções penais, não tira o caráter de violência da situação vivida, nem mesmo deslegitima o sofrimento e os danos causados por uma relação em que se reproduzem as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Não é porque algo não é uma infração penal que deixa de ser ruim, repugnante, imoral ou antiético. Exemplo disso são traições em relações amorosas, situações consideradas moralmente condenáveis, mas que não constituem um crime.

Aliás, o uso do Direito Penal no passado para tutelar a moral sexual da sociedade –com a criminalização do adultério, a categorização de vítimas divididas entre “honestas”, “não honestas”, “virgens” ou “públicas” nos crimes sexuais, então denominados “contra os costumes”, dentre outras práticas– só contribuiu para o legado de discriminação na aplicação do Direito para as mulheres, com reflexos até hoje.

Entretanto, se não pela via legal, como responder a esse chamado por cuidado? E como negociar com essas meninas e mulheres soluções que permitam um sentimento de reparação pelo que elas mesmas definem como “tempo perdido”? Mais ainda: como abarcar, acadêmica e politicamente, a produção de moralidades e subjetividades advindas dessas dinâmicas em que os limites parecem ser inexistentes ou atravessados categoricamente?

Ainda sem respostas ou soluções, este ensaio lança luz sobre a urgência de se considerar o que compõe a categoria “relacionamento abusivo” e, mais ainda, quais os efeitos de sua mobilização por aquelas que se reconhecem vítimas da imposição de vontades alheias, em geral a partir do uso da manipulação ou do controle.

Beatriz Accioly Lins é doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do NUMAS (Núcleo de Estudos Sobre os Marcadores Sociais da Diferença) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Arielle Sagrillo Scarpati é doutora em Psicologia Forense pela Universidade de Kent (Reino Unido), consultora e psicóloga clínica.
Silvia Chakian é promotora de Justiça do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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