Reflexões a partir do artigo “Perdido na tradução: relacionamento abusivo é violência, mas não necessariamente crime”, por Wânia Pasinato

21 de setembro, 2020

Artigo recentemente publicado pela Agência Patrícia Galvão sobre “relacionamentos abusivos” toca em um tema atual, pouco discutido e que aparentemente tem desafiado profissionais que trabalham em áreas relacionadas com a violência de gênero contra as mulheres.

O texto me agradou pelo desenvolvimento do argumento, mas a conclusão a que as autoras chegaram me estimulou a escrever algumas reflexões que organizei neste artigo. São reflexão preliminares, nem tão organizadas como deveriam, mas têm o objetivo de seguir problematizando sobre pontos ainda pouco nítidos nesse imenso universo de atos, gestos e comportamentos que a cada dia segue sendo rotulado, visibilizado, percebido e sentido como “violência contra as mulheres em razão de gênero”.

Primeiramente, devo dizer que compartilho da curiosidade presente no texto com a emergência da expressão “relacionamento abusivo” e sua relação com a violência de gênero. Compartilho também da preocupação das autoras sobre a relação entre a expressão “relacionamento abusivo” e a violência e o crime. Acho muito pertinente fazer, tal como fizeram, a distinção entre violência e crime. É importante explicitar essa diferença e estimular o debate.

Concordo também com as autoras em suas ponderações sobre a inadequação do Direito Penal – e do sistema de justiça criminal – para resolver todas as questões que se apresentam como “relacionamento abusivo”. Na minha opinião, muito do que se classifica como violência de gênero, inclusive nas modalidades previstas na Lei Maria da Penha, poderia “pegar carona” nessas ponderações e serem deslocadas para outros espaços de resolução em que seguramente encontrariam respostas muito mais adequadas.

Poderia me alongar sobre a instigante distinção entre violência e crime que foi apresentada, sobretudo à luz do conceito de gênero que hoje se encontra tão maltratado pelos debates ideológicos e usado de forma tão superficial e distante de toda a riqueza que oferece para a compreensão das desigualdades sociais entre homens e mulheres. Sem mencionar a questão das interseccionalidades de raça/cor e as camadas de adensamento conceitual e metodológico que são necessárias para tratar de qualquer tema relativo à violência de gênero contra as mulheres considerando as experiências vividas por mulheres negras e não-negras, tanto no campo do Direito Penal quanto fora dele. Mesmo sem aprofundar o tema, essa interseccionalidade está no meu radar, junto com todas as marcas e formas de opressão e desigualdade que afetam a vida das mulheres.

Passo então às questões que motivaram minhas reflexões e que organizei em dois pontos: no primeiro trato da expressão “relacionamento abusivo” e seu reconhecimento como violência de gênero. No segundo ponto tento pensar respostas para a indagação final das autoras que, após discorrerem sobre as diferenças entre violência e crime e concluírem pela inadequação do recurso às arenas judiciais para resolver os “relacionamentos abusivos” e seus impactos, concluem:

Entretanto, se não pela via legal, como responder a esse chamado por cuidado? E como negociar com essas meninas e mulheres soluções que permitam um sentimento de reparação pelo que elas mesmas definem como ‘tempo perdido’? Mais ainda: como abarcar, acadêmica e politicamente, a produção de moralidades e subjetividades advindas dessas dinâmicas em que os limites parecem ser inexistentes ou atravessados categoricamente?”

Como a mulher sente a violência

A leitura desse desfecho provocou a incômoda sensação de que não existe resposta para a violência de gênero contra as mulheres fora do sistema de justiça criminal ou, o que seria quase o mesmo, resposta que não seja construída a partir dele. Fiquei também pensando sobre a dificuldade em lidar com eventos que não se encaixam nas definições já conhecidas de violência de gênero e que, consequentemente, podem ficar sem nenhuma resposta.

Há alguns anos, participando de uma avaliação de uma tese de doutorado, ouvi um dos colegas da banca, o professor Paulo César Endo, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, dizer: “a melhor definição de violência é aquela que passa pelo subjetivo possível”. E completou: “quando uma pessoa consegue dizer ‘isso é violência’, essa afirmação permite romper com o ciclo violento de uma relação abusiva”. O colega tratava da inexistência de um conceito único para violência. Estávamos examinando uma tese sobre as formas nomeadas de violência doméstica na Lei Maria da Penha e sua fala coincidiu com o debate sobre outro conceito central para o tema – gênero –, que assim como violência não pode ser apreendido sob uma definição única.

A arguição daquela tarde reverberou profundamente ao encontrar a forma como entendo e tenho tentado trabalhar com a violência de gênero contra as mulheres. Compreendo que qualquer definição de “violência de gênero contra as mulheres”, para além das descrições como “violência contra a mulher pelo fato de ser mulher” ou “violência causada pela desigualdade de poder”, quando aplicada a um atendimento ou ao desenvolvimento de uma política, deve contemplar aquilo que as mulheres enunciam como violência. Ainda que os marcos teórico-conceituais de poder, submissão e desigualdade estejam ali, moldando o entendimento que temos sobre o problema e suas causas, e que os serviços e as políticas públicas sejam circunscritas por atribuições, competências, códigos e procedimentos que delimitam sua capacidade de atuação e intervenção, a escuta do que é enunciado pelas mulheres deve ocorrer sem categorizações preestabelecidas, sem rotulações e, principalmente, sem juízos de valor. Se uma mulher diz que determinados atos, palavras ou comportamentos são sentidos como violência, precisamos entender por que ela considera dessa forma e tentar ajudá-la a encontrar caminhos para obter o apoio necessário.

Esse pode ser um exercício interessante para tornar operacional o conceito de gênero ou de violência de gênero, mas não é simples de fazer. E isso tem a ver com minha curiosidade para entender o que define um relacionamento abusivo, uma vez que estamos no terreno das relações íntimas de afeto em que a subjetividade de cada um e cada uma define as expectativas em relação ao parceiro ou parceira. Além disso, existem também os contornos do que será considerado como intimidade, afeto e abuso. E tudo fica mais complexo quando colocado sob o enfoque de gênero, pois todos esses componentes da relação e até mesmo a subjetividade deixam de ser compreendidos como “naturais” e passam a ser entendidos como resultado de processos sociais, históricos e culturais. E sem esquecer os enfoques interseccionais, é claro, e que imediatamente me levaram a pensar como as meninas e jovens negras se sentem ao ouvir ou ler os relatos da influencer mencionada no artigo. Será que se reconhecem naquela fala ou o abuso na perspectiva interseccional também não assume outras características que precisam ser compreendidas?

Para evitar as abordagens psicologizantes ou até patologizantes, lendo o artigo pensei na utilidade do modelo ecológico de gênero como modelo teórico para compreensão da forma como dimensões pessoais (psicológicas, emocionais etc.) interagem e mutuamente se modificam nas dimensões familiares, comunitárias e sociais, produzindo sujeitos moldados por papéis sociais femininos e masculinos, estereótipos de gênero e, principalmente no caso das mulheres, por idealizações de realização pessoal associadas ao amor romântico, todos convergindo para a ideia de que as mulheres devem ser submissas aos homens e aceitar formas de controle, ciúmes e até humilhações como expressões de amor e cuidado.

Se as mulheres estão se sentindo intimamente violentadas por alguns desses comportamentos e se isso as mobiliza a pedir ajuda, rompendo com os padrões esperados de intimidade e subserviência no relacionamento afetivo, isso significa que as dimensões do modelo ecológico estão se mexendo e, como camadas tectônicas, as mudanças estão ocorrendo e devemos entender como aproveitá-las para promover transformações sociais mais profundas.

Uma das inegáveis contribuições da Lei Maria da Penha foi tornar possível o debate público e o reconhecimento das diferentes formas como a desigualdade de gênero se manifesta na vida das mulheres e meninas, incluindo a violência que tem formas mais graves, como as agressões físicas e sexuais que “deixam marcas”, até as formas mais sutis de controle, menosprezo, discriminação, intimidação, humilhação e constrangimento que ferem a autoestima e afetam capacidades de viver com autonomia, liberdade e felicidade.

É importante notar que a Lei Maria da Penha não cria um tipo penal nem hierarquiza as violências como graves ou leves. Ao contrário, ao classificar essas violências como violência de gênero (e não como crime de gênero, para seguir na distinção que as autoras bem pontuaram) e como violação de direitos humanos (artigo 6º) a lei ensina que todas as formas de violência de gênero são igualmente importantes e devem ser tratadas na medida da gravidade ou do risco que representam para as mulheres.

A inclusão do rol de formas de violência – física, psicológica, moral, sexual e patrimonial – na Lei Maria da Penha contribuiu para esse processo de dar visibilidade para atos, gestos e comportamentos que já faziam parte da vida das mulheres (sempre fizeram!) e que desde os anos 1980 estavam presentes nos relatos sobre abandonos ou ameaças de separação, ciúmes, traições e humilhações que chegavam às delegacias e, da mesma forma como os “relacionamentos abusivos” de hoje, também não encontravam resposta no limitado rol de soluções que dependia do que estava escrito no Código Penal.

Sem saber como responder às mulheres, a solução oferecidas pelas delegacias passava por: a) mandar as mulheres de volta para casa com a recomendação de que deviam se arrumar mais, cuidar melhor da casa e dos filhos, agradar o marido, entender que “homem é assim mesmo”; ou b) oferecer tratamentos psicológicos para os maridos abusadores ou aconselhamentos para o casal, algumas vezes com vieses religiosos, mobilizando os valores da fidelidade, sacralidade e proteção da família, tudo muito distante de qualquer tentativa de entender o que as mulheres estavam vivendo e muito menos precisando.

Existe suficiente literatura sobre essa interação entre mulheres-polícia e suas limitações, mas há um aspecto cuja problematização segue sendo necessária: muitas vezes, essas formas de violência chegaram à polícia, não porque as mulheres viam na resposta judicial a solução do problema, mas porque era o único caminho oferecido a elas para buscarem ajuda. E parece que isso continua acontecendo quando, no artigo, as autoras escrevem que “muitas meninas e mulheres procuram na justiça o espaço para dar vazão aos conflitos e frustrações advindos dessas relações, mencionando para isso, e não raramente, a Lei Maria da Penha”.

Estou bastante convencida de que esse percurso é motivado pela mensagem de que a violência deve ser “denunciada”. Tenho insistido sobre as palavras que usamos para comunicar alternativas de enfrentamento à violência contra as mulheres e acho urgente abolir a mensagem de “denúncia” substituindo-a por “peça ajuda”. A mensagem certa pode redirecionar os percursos e tornar menos críticas as rotas traçadas pelas mulheres. Talvez essa mudança possa ajudar a responder à pergunta “Entretanto, se não pela via legal, como responder a esse chamado por cuidado?”. Mas é claro que o redirecionamento de percursos implica assegurar as oportunidades de atendimento e acolhimento adequados. Esse é um problema ao qual voltarei mais adiante, mas antes quero passar ao segundo ponto da minha reflexão.

Para além da via legal: outras respostas possíveis

Quando, em 1993, as Nações Unidas declararam que a violência de gênero contra mulheres e meninas constitui violação de direitos humanos, um novo entendimento sobre o problema foi colocado. Sob esse reconhecimento, a relação entre violência e crime passou a ser problematizada. A responsabilização criminal de quem comete a violência passou a ser considerada como parte da reparação do direito violado – uma parte necessária e que deve ser garantida nos casos que podem ser tratados pela aplicação de leis penais. Daí também houve a recomendação para que as leis fossem revisadas para contemplar ou oferecer medidas adequadas para alguns crimes na perspectiva de gênero. (Antes de prosseguir, uma ressalva: não quero promover a ideia de que precisamos de uma lei para punir “relacionamentos abusivos”. Estou de acordo com o argumento de que esta não é nem de longe a resposta mais adequada para o problema!) Mas o reconhecimento da violência de gênero como violação de direitos humanos também colocou em relevo a interdependência entre os direitos humanos e a importância de se pensar a reparação de forma integral, abrangendo medidas que respondam de forma ampla aos impactos que a violência de gênero pode ter causado para a mulher que viveu aquela situação.

Em decorrência dessa nova compreensão vieram as recomendações para a formulação e implementação de políticas públicas abrangentes e integradas. No Brasil, desde 2003, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República elegeu trabalhar com a premissa da rede de enfrentamento à violência, que abrange também a rede de atendimento por serviços especializados com abordagem intersetorial e multidisciplinar.

Apesar de algum avanço no entendimento sobre as redes, na sua composição e funcionamento, ainda temos inúmeros desafios para sua implementação e para que possa cumprir com seus objetivos de universalizar o acesso ao direito de viver sem violência para todas as mulheres. São muitos os desafios, mas para ficar no tema deste artigo, entre os principais, na minha opinião, estão: a) a dificuldade em compreender que o sistema de justiça, incluindo os órgãos de segurança pública e justiça criminal, faz parte da rede de atendimento, mas a existência da rede e seu funcionamento não dependem apenas desse sistema nem podem se organizar a partir dele; b) que a rede de atendimento especializado depende dos órgãos de segurança e justiça tanto quanto depende de serviços nas áreas da saúde, da assistência social, do atendimento psicossocial especializado e das casas abrigo, sendo cada um responsável por organizar e oferecer o atendimento especializado que compete às respectivas áreas de atuação; c) que a rede de atendimento deve ter várias portas de acesso, que são tão importantes quanto as delegacias, entendendo também que quem escolhe por onde entrar são as mulheres e elas só serão direcionadas ao sistema de justiça se houver necessidade de proteção ou desejo de reparação na esfera civil e/ou criminal.

Se olharmos para a rede de enfrentamento à violência de gênero a situação se torna ainda mais complexa, pois devem ser também contempladas as políticas de educação, saúde sexual e reprodutiva, habitação, cultura, trabalho e emprego, previdência, segurança/desenvolvimento urbano e tantas outras que correspondam à promoção de direitos das mulheres

Voltando para a pergunta “se não pela via legal, como responder a esse chamado por cuidado?”, entendo que a resposta deve necessariamente incluir a rede de atendimento e as políticas de enfrentamento à violência. E aqui relembro duas medidas importantes que já existem e devem ser recuperadas e valorizadas e implementadas onde ainda não existam.

A primeira medida é a educação de gênero e diversidade. Não haverá mudança possível na sociedade se não pudermos abordar gênero no processo de formação de crianças, adolescentes e jovens. A previsão está nas recomendações internacionais e na Lei Maria da Penha e foi parte importante da parceria entre a Secretaria de Políticas para as Mulheres e o Ministério da Educação entre 2003 e 2015, com desenvolvimento de cursos sobre gênero e diversidade nas escolas. Nos últimos anos, os ataques orquestrados pelo movimento Escola sem Partido contra uma suposta “ideologia de gênero”, em um ambiente político e social cada vez mais conservador, fizeram com que as iniciativas de trabalhar gênero e diversidade a partir dos currículos escolares perdessem apoio e condições de execução. Com as recentes decisões do STF que revertem as leis que tentam impedir o ensino de gênero nas escolas, precisamos retomar o planejamento dessas ações.

Faço aqui uma ressalva sobre o que estou chamando de “educação de gênero”. Não estou falando de distribuir cartilhas, nem de projetos do tipo “Lei Maria da Penha nas escolas”. Ainda que sejam válidas, essas iniciativas são insuficientes para enfrentar o cerne do problema da violência de gênero – e dos relacionamentos abusivos –, o que exige a compreensão e a reflexão sobre os mecanismos sociais que convertem diferenças entre homens e mulheres em modelos rígidos de sexualidade heteronormativa e em desigualdades de poder.

Ao falar sobre o tema em recente webinário realizado pelo Consórcio Lei Maria da Penha em comemoração aos 14 anos da Lei Maria da Penha, Ingrid Leão, especialista em Direitos Humanos e integrante do CLADEM – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, explicou que falar sobre gênero nas escolas não significa que a escola vai substituir o papel da família, nem vai ensinar sobre sexo ou “converter” sexualidades. Para Ingrid, falar sobre gênero na escola significa ter compromisso ético e responsável com a igualdade e os direitos humanos, é falar sobre respeito a si próprio e ao outro, respeito à diversidade, é trabalhar a desconstrução de estereótipos prejudiciais ao desenvolvimento saudável de crianças e jovens para que se tornem adultos mais conscientes de seu papel na sociedade.

A inclusão de gênero nos currículos ajuda as equipes de gestão escolar e o corpo docente a compreender o papel da escola na rede de proteção e enfrentamento da violência contra meninas e mulheres. Uma consideração importante: a proibição de falar sobre gênero nas escolas afeta a aplicação integral da Lei Maria da Penha, e quando a escola deixa de falar de gênero o Estado está sendo omisso na proteção da vida. Precisamos estar atentas a isso e também perceber que projetos que se limitam a falar da Lei Maria da Penha ou sobre a violência doméstica e familiar limitam a compreensão sobre a violência de gênero ao que está na lei e, consequentemente, limitam a resposta ao problema.

Retomando o modelo ecológico de gênero, é possível compreender o papel que a educação formal escolar desempenha para a reprodução de valores e estereótipos de gênero, tanto na esfera macrossocial (produção de ideologias dominantes, estereótipos de gênero etc.) como também na esfera comunitária, pois é na escola, na fase da infância e da adolescência, que o sentimento de pertencimento a grupos molda comportamentos, expectativas de reconhecimento e sentimentos de realização pessoal. Se pensarmos a educação de gênero como parte dos currículos escolares será possível problematizar e talvez responder algumas das angústias das meninas que se reconhecem em relacionamentos abusivos a partir da construção de novos entendimentos sobre os fatores históricos, sociais e culturais que colocam as mulheres em condição de submissão em relação ao parceiro, que alimentam expectativas nas relações afetivas sem questionar o necessário respeito, igualdade e liberdade que devem ser a sustentação das relações humanas. Será possível oferecer instrumentos conceituais e dados empíricos para a desconstrução dos lugares e papéis tradicionais de gênero que moldam as relações íntimas, as escolhas profissionais, as oportunidades de trabalho e participação política na sociedade e tantas outras. Remodelar o processo educacional torna-se, então, urgente e a defesa da educação de gênero e diversidade é uma obrigação cidadã que cabe a todas nós.

A segunda medida envolve a atenção psicossocial e está relacionada com os centros de referência especializados de atendimento às mulheres, compreendidos como serviço estratégico de acesso à rede de atendimento e ao atendimento integral. A origem dos centros de referência está nos anos 1970/1980, com os SOS Mulher, coletivos feministas que de forma voluntária atendiam mulheres em situação de violência para oferecer apoio psicossocial e orientação jurídica. Nos anos 1990 essa experiência de acolhimento foi incorporada aos serviços de atendimento às mulheres em alguns municípios – a Casa Eliane de Grammont, em São Paulo, e o Centro de Referência Benvinda, em Belo Horizonte, são dois exemplos que me ocorrem – que, juntamente com as DEAMs (delegacias especializadas de atendimento a mulheres) e as casas abrigo, durante mais de uma década formaram o embrião do que posteriormente viria a ser desenvolvido como rede de atendimento especializado e que, a partir de 2006, foi ampliada para acolher outros serviços criados pela Lei Maria da Penha.

Com suas equipes multidisciplinares de psicólogas, assistentes sociais e advogadas, e atribuições para o atendimento psicossocial e orientação jurídica, os centros de referência são espaços privilegiados para acolher casos de violência de gênero que não encontram definição nos códigos legais nem nos manuais de saúde. A violência de gênero nesses espaços é entendida na forma como ouvi de meu colega naquela banca de doutorado: “é aquela que passa pelo subjetivo possível”. Sem o constrangimento de prazos, exames e procedimentos complicados e demorados, nos centros de referência o acolhimento, a escuta técnica e o acesso a informações e orientações podem ocorrer em tempos que são decididos entre a mulher e as equipes que, dessa forma, podem construir melhores entendimentos sobre o problema e buscar alternativas para sua superação.

Voltando à pergunta “se não pela via legal, como responder a esse chamado por cuidado?”, penso que promover a educação de gênero e valorizar os centros de referência podem nos ajudar a repensar as mensagens e reorganizar as redes, para além do sistema de justiça e com múltiplas formas de acesso, e assim, quem sabe, responder essa demanda, substituindo a alternativa dos desabafos impessoais e super midiáticos nas redes sociais por outras que concretizem ações que ajudem a construir a autonomia e a emancipação das mulheres como parte de um verdadeiro processo de empoderamento, que poderá ajudar meninas e mulheres a reverterem o sentimento de “tempo perdido” em aprendizado para uma vida com mais autonomia, liberdade e capacidade de realizar encontros felizes e relações de afeto e respeito.

É claro que nada disso é simples, mas depende de protocolos, preparo e um profundo conhecimento sobre gênero e violência. Exige de quem atende um esforço de escuta técnica (a tal “escuta qualificada”) e capacidade de apreender as experiências e reconhecer a condição que a mulher tem para falar sobre o que está vivendo e de quais recursos – materiais, emocionais, cognitivos – dispõe para sair daquela situação. Exige também um bom entendimento de que ninguém é capaz de dar resposta para todos os problemas que possam vir nesse pacote “violência de gênero” e por isso é preciso estar disposto e informado sobre como encaminhar os casos através da rede, direcionando de acordo com o que é necessário e o que é prioritário para a mulher, pois a melhor ajuda possível deve contemplar as condições possíveis para cada mulher.

Contudo, todas essas mudanças nas políticas educacionais e de enfrentamento à violência contra as mulheres, com o fortalecimento dos centros de referência e de toda a rede de atendimento dependem da articulação e engajamento dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário nos níveis federal, estadual e municipal para serem formuladas, implementadas e executadas e só podem existir se houver compromisso dos governos com a vida das mulheres, um compromisso que garanta orçamento e planejamento para sua execução e equipes preparadas e dedicadas a trabalhar as políticas públicas de forma transversal, incluindo a perspectiva de gênero e raça no desenho, planejamento e implementação de serviços e políticas para a composição das redes intersetoriais, integradas e multidisciplinares.

Wânia Pasinato é socióloga, mestre e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Pagu/Unicamp) e consultora especializada em gênero e políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, Lei Maria da Penha e Feminicídios.

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