Quem, afinal, diz que defender direito ao aborto é imoral e contrário aos bons costumes?, por Ela Wiecko

08 de fevereiro, 2021

No atual contexto, é importante que o Estado mantenha sua imparcialidade em relação a todas as manifestações religiosas ou não religiosas, ou seja, a sua laicidade

(Celina/O Globo | 08/02/2021 | Por Ela Wiecko V. de Castilho | Acesse no site de origem)

Causa perplexidade o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, de outubro de 2020, que impôs à Sociedade Civil Católicas pelo Direito de Decidir a adequação do estatuto social para excluir a expressão “católicas”, sob pena de, não o fazendo, ser compulsoriamente dissolvida após o trânsito em julgado da decisão.

O fundamento do acórdão é que a referida associação, ao defender o direito de as mulheres decidirem pelo aborto, atua de forma incompatível com os valores adotados pela Igreja Católica. Viola o cânone 1.398 do Código de Direito Canônico.

Daí o estranhamento. Como se justifica que tribunal de um Estado laico decida  controvérsia sobre a aplicação de uma norma da Igreja Católica? Ciente dessa incongruência o Tribunal elaborou a seguinte construção argumentativa: (i) a finalidade associativa de Católicas pelo Direito de Decidir de defender a descriminalização e legalização do aborto é incompatível com os valores da Igreja;(ii) equipara-se a conduta de provocar o aborto, uma conduta passível de excomunhão;(iii) a sociedade não pode utilizar a palavra “católicas” em sua denominação social; (iv) se o faz, viola o art. 115 da Lei dos Registros Públicos que protege a moral e os bons costumes, e ainda o art. 187 do Código Civil, porque comete um ilícito.

Essa construção ao estabelecer um fundamento na lei do Estado brasileiro, na verdade reafirma a lei da Igreja Católica, pois a premissa é de que moral e bons costumes são o que a Igreja diz que é. Assim, uma suposta incompatibilidade com a religião católica foi qualificada de imoral e atentatória aos bons costumes, infringindo a lei brasileira.

Quem afinal diz o que é imoral e contrário aos bons costumes? No jogo de palavras fica evidente que a doutrina das autoridades eclesiásticas é superior à doutrina produzida por autoridades laicas em diversos campos do conhecimento. Tanto que dois terços do acórdão correspondem à transcrição de textos de doutrina católica.

No esforço de estabelecer a interseção da lei canônica com a lei estatal, é  também invocado o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. De conformidade com ele, aos lugares de culto da Igreja Católica, a suas liturgias, símbolos, imagens e objetos culturais é garantida a proteção pelo Estado brasileiro contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo. A redação do Acordo não assegura, porém, a proteção da doutrina católica pelo Estado brasileiro. E é disso que se trata quando o acórdão intervém numa associação de mulheres que se assumem católicas.

Não cabe ao Estado afirmar que elas não são católicas e que, por isso, violam a moral e os bons costumes ou cometem ilícito. É importante que o Estado mantenha sua imparcialidade em relação a todas as manifestações religiosas ou não religiosas, ou seja, a sua laicidade.

Outro espanto provocado pelo acórdão é a sua inconformidade e rejeição ao objetivo social das Católicas de estimular a mudança dos padrões culturais vigentes em nossa sociedade, que dificultam a autonomia das mulheres no campo da sexualidade e da reprodução, de promover debates pela equidade de gênero e cidadania das mulheres.  Entretanto, a mudança dos padrões culturais, que  produzem e reproduzem as desigualdades entre mulheres e homens em prejuízo das mulheres, é um objetivo acordado pelo Brasil ao incorporar no seu direito interno, entre outros instrumentos normativos internacionais, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

Em posição diametralmente oposta ao direito estatal, o acórdão afirma que pretender mudar padrões culturais vigentes, os quais foram estabelecidos em grande medida ao longo da história, pelo Cristianismo e pelo Catolicismo ou por sua influência, “nem de longe se alinha com o espírito da Igreja Católica, que prega a unidade e a obediência”. O recado é claro: mulheres devem obediência e submissão aos homens.  A Igreja Católica reserva às mulheres “um papel sublime, mas específico e próprio”. Dos textos de Cartas Papais transcritas no acórdão entende-se que é o papel da reprodução. Daí o anátema a toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez, tenha sido ela forçada, esteja a mulher em risco de morte ou de agravos em sua saúde, esteja o feto morto ou se saiba de sua inviabilidade extra-uterina.

Os dilemas das mulheres grávidas –  porque foram estupradas, porque são pobres e que verão seus filhos morrer por falta de acesso à alimentação adequada, à assistência médica e a medicamentos, porque sofrem violência doméstica e familiar, porque precisam interromper os estudos ou perdem o emprego e oportunidades de ascensão profissional, entre tantas outras situações – são desconsideradas. São “seus problemas”.

Dessa forma, a decisão judicial alinha-se à reação organizada do patriarcado nacional e internacional contra as mulheres, as quais, de forma crescente e consistente, a partir da segunda metade do século XX vêm contestando a desigualdade de gênero que as oprime, cala sua voz, as menospreza e objetifica, e se manifesta por diversas formas de violência, inclusive pela mais radical: o feminicídio.

Ela Wiecko V. de Castilho é coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPeM/UnB) e ex-Vice Procuradora Geral da República

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