Conceição Evaristo: “A questão do negro não é para nós resolvermos, é para a nação”

20 de novembro, 2019

Consagrada no Brasil e no exterior, a escritora mineira critica a “intelectualidade branca”. Filha de empregada doméstica e mãe de uma única mulher, defende o direito à interrupção de uma gravidez indesejada, mas provoca: “Quando uma mulher negra e pobre realiza um aborto é porque ela sabe que é dona do corpo dela ou porque ela não tem outra saída?”

(Maire Claire, 20/11/2019 – acesse no site de origem)

O ventilador de chão está ligado. É um dia quente no Rio de Janeiro. E Conceição Evaristo está com calor. Mas pede à assistente para desligar o aparelho. “Depois meu cabelo vai ficar bagunçado para as fotos”, diz. Aos 72 anos, não faz tanto tempo que a escritora cumpre essa rotina de entrevistas. Mas vem se acostumando desde que se tornou um nome incensado no mercado editorial, meio em que a representatividade não só enfim começou a dar as caras e a ocupar espaços como tem vendido muito. “Nós nunca tivemos tanta fertilidade no campo das artes. Cinema negro, teatro negro, autoria negra e, é impressionante, tudo cheio”, diz ela, citando, entre outros, a cineasta Yasmin Thayná, a slammer e atriz-MC Roberta Estrela D’Alva e a escritora e filósofa Djamila Ribeiro.

Conceição Evaristo receberá este mês o título de personalidade literária do ano pelo prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira. Autora de obras que orbitam em sua “condição de mulher negra” e pela história de seus ancestrais, como Beco das Memórias, Insubmissas Lágrimas de Mulheres e Ponciá Vicêncio, ela é um dos nomes mais reverenciados das letras. No Mês da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro, data atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, um dos maiores símbolos da luta contra a escravidão, Conceição sublinha que os tempos voltaram a ficar mais difíceis, mas que o espírito da resistência “não vai nos faltar”.

“Essa precariedade que estamos vivendo no Brasil não vai nos impedir. Tem muito pouco tempo que a gente aproveita dessa possibilidade”, afirma. “Nessas horas, gosto de lembrar a história dos africanos e de seus descendentes. Quando fugiam pro quilombo, eles não tinham certeza nenhuma se alcançariam a liberdade. O que fortalecia esse sujeito? O desejo da liberdade e a crença nesse direito. Só isso, mais nada a favor. Pelo contrário. Se fosse recapturado, o castigo era pior. E, no entanto, ele fugia. Estamos numa situação de vulnerabilidade muito grande, mas, enquanto a gente tiver a certeza do direito à vida, isso nos mantêm de pé.”

Estamos numa situação de vulnerabilidade muito grande, mas, enquanto a gente tiver a certeza do direito à vida, isso nos mantêm de pé

Hoje consagrada escritora, Conceição nasceu e se criou numa favela de Belo Horizonte. Filha de empregada doméstica, chegou a prestar o mesmo serviço ainda criança, quando morava com tios que viviam em condições melhores que a mãe. Viu seu destino girar a partir da mudança para o Rio em meados dos anos 70. Lá, formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trabalhou na rede pública como professora e se tornou mestre em literatura brasileira.

Seu espaço dentro de um meio predominantemente branco, “como toda instituição brasileira”, ela demorou a encontrar. Deu os primeiros passos ainda no ínício dos anos 90, quando passou a publicar contos e poemas na série Cadernos Negros. Mas só foi lançar o primeiro romance, Ponciá Vivêncio, em 2003, quando já tinha 57 anos. O reconhecimento de fato veio sentir aos 68, quando foi destacada no Salão do Livro de Paris de 2015. O Brasil, que até então pouco conhecia Conceição Evaristo, foi o país homenageado e assistiu, na França, uma escritora brasileira ser ovacionada, primeiramente, pelos estrangeiros. No ano seguinte, endossou um manifesto que questionava a ausência de negros na programação da Festa Literária de Paraty – Flip. No ano passado, desafiou os ritos da Academia Brasileira de Letras e se lançou candidata independente ao posto de imortal, incentivada por uma imensa campanha popular nas redes sociais nunca vista na história da Academia. Sem ceder a supostos lobbys, com direito a jantar para os imortais, Conceição terminou a disputa em terceiro, com apenas um voto dos 35 possíveis.

Aos 72 anos, pretende transformar essa história em livro, para que ela “não seja esquecida”. “Se você pensa a Academia como a casa que guarda uma literatura nacional, essa representação está manca. É preciso que essa história mude.” Na literatura e na vida, gosta de falar sempre a partir de suas experiências e exalta os que têm conseguido fazer o mesmo. “Hoje a gente tem um movimento de falar com a nossa voz. Me perguntam se falo pelas mulheres negras. Eu não falo pelas mulheres negras, falo como mulher negra, com as mulheres negras.”

Sua lente de aumento para o racismo estrutural confronta aqueles que dizem não existir discriminação no Brasil. Diante de mortes recentes de crianças e jovens negros atribuídas às operações policiais nas comunidades, Conceição afirma haver uma política de eugenia implementada pelo Estado. “Em qualquer regime que há supressão da democracia, as camadas populares sofrem muito mais e é um sofrimento que não vem à tona. Isso comprova que, dependendo da sua posição social, o seu lugar de denúncia é muito menos possível.”

Após 1h30 de entrevista, a escritora nos levou para caminhar pelos arredores do Morro da Conceição, bairro carioca que coincidentemente leva seu nome. Ali, na região conhecida como Pequena África, onde escravos chegaram ao Rio pelo Cais do Valongo e em que muitos deles foram enterrados, ela estabeleceu seu escritório e lar quando tem compromissos na capital fluminsese e prefere adiar a volta a Maricá, cidade a cerca de 60 quilômetros do Rio, onde mora com a única filha, Ainá. Entre grafites de Tia Ciata e “Quem mandou matar Marielle?”, afirma que o lugar lhe inspira. Seu próximo romance (ainda em desenvolvimento), Flores de Mulungu, remete à diaspora por meio de uma matriarca de 107 anos. “Coincidência ou não, chamar Morro da Conceição tem tudo a ver com uma história subterrânea que pode ser ressuscitada na ficção.”

MC O debate de relações amorosas interraciais está muito presente nas redes. A cantora Karol Conka, por exemplo, foi chamada de “palmiteira” por namorar um menino branco. Como vê isso?
CE Tenho uma história de amor pra contar: tive um casamento feliz com um homem negro [Oswaldo Santos de Britto]. Paixão não se determina. Ao mesmo tempo, se vivemos numa sociedade pautada pelos valores brancos, isso de certa forma determina seu gosto. A escolha do negro pelo branco é uma situação muito subjetiva. Até que ponto essa atração é natural ou produzida por aquilo que o sujeito branco representa? Numa relação interracial é difícil medir isso de fora. Acho que é um ato muito mais de questionamento que a própria pessoa tem de fazer e não o entorno. Mas essas questões têm de ser discutidas, sim, porque estão no fundo dos modos de relações raciais numa sociedade.

Me perguntam se eu falo pelas mulheres negras. Eu não falo pelas mulheres negras, falo como mulher negra, com as mulheres negras

MC Como vê políticas afirmativas como a Lei de Cotas? Em 2008, quando ela foi aprovada, dividiu a sociedade e até intelectuais progressistas se posicionaram contra.
CE Tem uma intelectualidade brasileira que fez carreira acadêmica em cima de estudos negros e foram contra as cotas raciais. Fiquei assustada, mas não muito, na medida em que é uma intelectualidade branca querendo manter seus privilégios. Estuda a questão negra, sabe das injustiças sociais, frequenta religião afrobrasileira, mas na hora das políticas públicas, é contra. E isso me faz lembrar que aqui no Brasil toda vez que a gente vai discutir as questões raciais, tem sempre uma pessoa branca que levanta e fala: “Não tenho preconceito racial, fui criado por uma mãe negra, tive uma babá preta”. E a gente se pergunta: E daí? Os modos de relações raciais brasileiros, e isso muito devido ao mito da democracia racial, se escondem atrás de uma afetividade que politicamente não adianta nada. Pelo contrário, atrapalha na medida em que durante muito tempo esse mito da democracia racial imperou. E imperou ainda com pessoas que a gente esperava que tivessem uma visão política mais profunda. É decepcionante, principalmente quando uma atitude dessa parte de um artista, que em tese é uma pessoa além do seu tempo.

MC Quais são os nomes da cultura negra que você tem acompanhado?
CE A primeira pessoa, até como mulher, é a Djamila Ribeiro e a evolução que ela está provocando. Ela pegou pensadoras que leu, incluindo afro-americanas, e tornou esse texto mais palatável. Com isso, é lida hoje por mulheres brancas e negras, homens brancos e negros. Mas não dá pra falar dela sem falar de Sueli Carneiro. Ela é a grande pensadora, matriz do que a Djamila fala. Mas Djamila está num momento que as redes sociais têm um alcance muito grande. Ainda em literatura, outras mulheres que têm idade pra serem minhas filhas ou netas: Lívia Natália, de Salvador, Roberta Estrela D’Alva, do Slam, Mel DuarteJenyffer Nascimento. Sem falar nos homens. Um que é exemplo desse intelectual que vem das bases é o MV Bill. Ele questiona a nação a partir de lugares que antes não tinham voz ou que outras pessoas tentavam representar. Hoje, a gente tem um movimento de falar com a nossa voz. Me perguntam se falo pelas mulheres negras. Não falo pelas mulheres negras, falo como mulher negra, com as mulheres negras.

MC Você é filha de uma mulher que trabalhou como empregada doméstica, chegou a ser doméstica antes de se tornar professora e escritora. Há uma frase que circula por aí que diz “a casa-grande surta quando a senzala aprende a ler”. O que ela diz pra você?
CE Para mim essa frase diz justamente da nossa força de vencer essas interdições e do incômodo que isso causa. Um dos medos que alguns defensores do abolicionismo tinham era de que “a escravaria se revoltasse e pusesse fogo na casa-grande”, como se revela em As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manoel de Macedo. Ele foi um abolicionista e esse era o medo dele.

MC A que atribui esse medo?
CE Medo de disputa de espaço e racismo. Talvez o racismo esteja até na raiz disso tudo. Competir com o branco é uma coisa, competir com o negro é outra.

MC A cada duas horas uma mulher morre no país de aborto inseguro e isso é mais verificado no estrato da mulher jovem e negra e pobre. Como pensa essa questão?
CE Tem algumas questões para pensar. E vou ser até um pouco cruel. Quando a classe média precisa de fortalecimento do discurso, sabe muito bem utilizar as classes populares. Pensar o aborto somente na perspectiva de que a mulher é dona do seu corpo é incompleto pra mim. Quando precisa ou provoca o aborto, uma mulher negra e pobre não parte da premissa de que ela é dona do seu corpo, mas em como é difícil para ela ter mais um filho, alimentar e educar esse filho. Minha mãe teve nove filhos. Quando estava na décima gravidez, o médico disse que ela tinha um problema de útero e receitou uma pílula. Ela não tomou porque achava que era pecado. Aborto é uma questão de saúde pública. E a saúde pública não é preventiva, ela cuida do que chega ali. A mulher tem o direito de decidir se quer ter filho ou não, mas tem que ter condições para essa decisão. E aí fica a pergunta: quando uma mulher negra e pobre realiza um aborto é porque ela sabe que é dona do corpo dela ou porque ela não tem outra saída? Se ela não tem outra saída, já está sendo vítima da violência do Estado. Pode ser ficção minha, mas hoje uma juventude negra está sendo dizimada – e a gente sabe que tem um plano de eugenia atrás quando o Estado permite que isso aconteça –, será que essa mãe negra que perde um filho, não teria desejo de ter outro? Não sei se hoje não seria muito mais necessário pensar uma política que permitisse um planejamento familiar do que uma política que permita esse aborto.

A questão do negro não é para o negro resolver, é para a nação brasileira
MC Você acredita que a criminalização da maconha seria parte do processo para promover essa política eugenista?
CE Já me perguntaram se criminalização da maconha é uma medida racista. Pode até ser, também. Mas esse não é o único dado que criminaliza o jovem negro. Com maconha ou não, ele já é um “sujeito”. E aí volto a dizer: é muito fácil para a classe média trazer esse discurso para ser encampado por nós, porque fortalece o discurso. Não sei se, liberando a maconha, o jovem negro deixa de ser vulnerável. Certa hora, nossa posição legitima determinados grupos que foram mais ou menos aliados. E na hora do pega para capar, a gente que acaba sendo o capado. Então precisa de uma sinceridade muito grande, muito grande para as pessoas brancas reconhecerem que ainda estão em situações privilegiadas.
MC Como pessoas brancas podem fazer isso?
CE Primeiro, que façam o reconhecimento sincero de privilégios. E ver no dia a dia em que momento ou em que situações abrem mão desse privilégio. Em que momento efetivamente um sujeito branco se alia ao negro? Em que momento é capaz de ir pra rua engrossar uma manifestação nossa? Você como chefe de um setor, é capaz de contratar negros pra trabalhar com você? As coisas não acontecem no abstrato, tem ações que o sujeito branco pode fazer no cotidiano para mexer na estrutura. A questão do negro não é para o negro resolver, é para a nação brasileira. Claro que você vai estar em determinadas lutas que te falam mais de perto, mas, se estamos todos num território nacional, o problema de um grupo não é dele, é nosso. É muito fácil ficar discutindo na internet e, na hora de ir para uma marcha contra a morte de um jovem negro ou de um índigena, a gente não vai.
MC Você parece ser uma mulher muito forte. Algum evento recente te desmoronou?
CE O evento que me desmoronou foi a morte de Marielle Franco. Estava em Paris a trabalho e, no dia seguinte, a gente tinha uma palestra. Não consegui falar de esperança. A morte de Marielle [para, dá um suspiro longo]… Para mim é uma menina. Eu a vi menina. Algumas pessoas me pedem para falar, dar depoimento, mas ainda é uma coisa que não gosto de falar.
Por Pedro Henrique França
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