Em nome da lei: entrevista com Maria da Penha

04 de abril, 2019

A vítima de tentativas de feminicídio que inspirou a criação da legislação para defender mulheres se diz espantada com a forma como alguns ainda culpam os alvos das agressões pelos ataques

(Veja, 04/04/2019 – acesse no site de origem)

Maria da Penha Maia Fernandes ganhou notoriedade quando, em 2006, viu seu nome batizar a lei que tipificou o crime de agressão a mulheres. Por trás da homenagem há a história de uma vítima de duas tentativas de feminicídio – ambas em 1983 e protagonizadas por seu então marido, o economista colombiano Marco Antonio Heredia Viveros (o casal se conheceu na USP, enquanto ela concluía o mestrado em bioquímica). Na primeira vez, Viveros atirou na esposa enquanto ela dormia – e foi em consequência desse atentado que ficou paraplégica. Na segunda oportunidade, o plano era eletrocutá-la no banho, mas a babá de suas três filhas, que nunca mais falaram com o pai, socorreu-a. Maria da Penha lutou por quase duas décadas na Justiça até a condenação do agressor, em 2002 – a apenas dois anos de prisão. Sua traumática experiência – relatada no livro autobiográfico Sobrevivi… Posso Contar(1994) – motivou mudanças substanciais na legislação brasileira, que deram origem às delegacias de mulheres e às punições a ataques contra elas. Maria da Penha tornou-se, então, um símbolo da causa feminista, o que lhe rendeu prêmios e levou à criação de um instituto com o seu nome. Na entrevista a seguir – concedida em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, quando selou uma nova parceria com a ONG americana Visão Mundial, de ajuda humanitária global -, Maria da Penha diz ficar assombrada com uma parcela da sociedade que ainda insiste em culpar as vítimas de crimes misóginos.

Após casos recentes de violência contra mulheres – como o da paisagista espancada em seu próprio apartamento no Rio e o de uma moça de 19 anos estuprada pelo cunhado e queimada pelo namorado em São Paulo -, espalharam-se nas redes sociais posts culpando as vítimas, dizendo que elas teriam feito algo de errado para “merecer” a punição. Por que isso ainda ocorre? Quando meu caso ganhou a mídia, tanto jornalistas quanto pessoas que me abordavam tinham interesse em saber maiores detalhes. O comum era que incluíssem a pergunta: “O que a senhora fez para merecer o tiro?”. Há um machismo tão encravado na sociedade que permite ao homem julgar a mulher como alguém que pediu pela agressão. Para alguns, se um marido tenta assassinar a mulher, é porque ela necessariamente o traiu ou algo nessa linha. A verdade é que a maioria das vítimas é morta simplesmente por não querer continuar um relacionamento. No caso da paisagista (Elaine Caparroz, 55 anos, do Rio de Janeiro, espancada pelo advogado Vinicius Batista Serra, 27 anos, de quem se aproximou pela internet), ela confiou na boa índole de um rapaz que queria conhecer melhor. Não há o que ela poderia ter feito para fugir da fatalidade à qual sobreviveu. No exemplo da garota queimada (Isabela Miranda de Oliveira, morta pelo namorado, William Felipe Alves, de 21 anos, em Franco da Rocha, SP), culpá-la é conversa de machista. E conversa para boi dormir. Bater em alguém, queimar alguém, é fruto de uma mentalidade doentia.

Visto que as mulheres vão continuar a procurar relacionamentos afetivos, como evitar o encontro com mentalidades doentias? Os homens agressivos não costumam, em seus meios sociais, ser tidos como pessoas ruins. Normalmente, é o contrário. São indivíduos que batem na esposa em casa, mas, em sociedade, se fingem prestativos e bondosos. Tanto que usualmente os ataques vêm de maridos, amigos, familiares, homens próximos da mulher. Quantas pessoas namoraram, casaram e, no momento em que o casal passou a morar junto, a vivência trouxe à tona a violência daquele com quem a mulher se envolveu? Uma forma de tentar evitar os agressores é observar como eles agem em sua casa, com suas irmãs, com a mãe, e ainda quem são aqueles que os cercam, como os amigos. Mesmo assim, quando o crime ocorre, nunca é culpa da vítima. E para coibir, é necessário denunciar e punir esses homens.

Mesmo com uma lei, que leva seu nome, exclusiva para punir tal tipo de violência, registros de agressões contra mulheres continuam a ser frequentes. Por quê? Por uma série de motivos. Falta, por exemplo, orientação precisa de como se deve denunciar. Na maioria das vezes, a vítima não sabe como avisar o poder público local, nem como se defender após a acusação. Em algumas situações, a morosidade do processo judicial também desmotiva; uma denúncia não leva o agressor para a cadeia, e ele fica livre para voltar a atacar e matar a mulher. Repito: falta orientação.

“Só podemos falar em melhorar a legislação quando ela for de fato implementada. A lei só não tem ajudado todas nós porque existe um descaso do governo. Ainda há muitas falhas”

 

Qual seria a orientação? Para começar, deve-se mostrar à mulher que as desculpas de quem a ataca não devem ser consideradas. Existe um ciclo típico dessa violência. Depois de cada soco, o homem procura se mostrar arrependido. Um tempo depois, volta a agredir, para logo pedir desculpas. No meio disso, a vítima se vê cada vez mais presa a um relacionamento abusivo. E continuará esse ciclo até culminar no homicídio. Então, torna-se necessário quebrá-lo, com a denúncia.

Por que a denúncia por vezes não é efetiva? A agredida tem de sair da delegacia da mulher com alguma providência tomada. Por exemplo, é preciso incentivá-la a deixar a casa do marido, com seus filhos, e ir para outro lugar, como uma unidade da Casa Abrigo, que existe para isso. Parte do problema é quando elas são atendidas por delegados. Quando a autoridade é uma mulher, a compreensão dessa situação costuma ser maior. Já quando é um homem, não. Algumas delegacias regulares são tomadas pelo machismo e pela falta de conhecimento da lei. Em municípios nos quais não há uma delegacia especializada, o delegado nem sempre tem sensibilidade para atender a vítima. Esses delegados não costumam obrigar o agressor a se afastar e, quando um juiz emite um habeas-corpus, nem sempre avisa a vítima que o criminoso está à solta novamente. Há histórias em que o homem sai da prisão com o intuito de já matar imediatamente quem o denunciou. Esses são apenas alguns dos reflexos da falta de conhecimento e aplicação da lei.

Algo deve mudar na lei? Só podemos falar em melhorar a legislação quando ela for de fato implementada na sua totalidade. O problema não está na lei, tida como exemplar em todo o mundo. A questão é que ela não é aplicada para valer. Na prática, há casos de demora acima de 48 horas para conceder uma medida protetiva à vítima. A lei só não tem ajudado todas nós porque existe um descaso do governo. Demorou oito anos entre a lei ser sancionada e a criação de políticas públicas que visem efetivá-la. Ainda há muitas falhas. Onde se procura ajuda, por exemplo, numa cidade que nem conta com uma delegacia da mulher? Alguns prefeitos constroem, em substituição, centros de ajuda. No entanto, numa medida marqueteira, eles ficam localizados na área central da cidade É difícil alguém tomar coragem para ir até um local no centro para denunciar o marido, expondo o rosto para conhecidos, amigos. Falta um trabalho eficiente para resguardar todas aquelas que querem denunciar.

“Estamos muito temerosas em relação a como Bolsonaro encara o porte de armas. Não por acaso, alguns homens estão gostando tanto da ideia. Querem se sentir mais autoritários”

Contudo, houve evolução desde que a senhora foi agredida? Finalmente temos alguma visibilidade. A mídia e a população têm dado maior atenção ao tema do feminicídio, e as punições não são mais tão raras. Na minha época, era tudo desprezado. Tratava-se mais ou menos assim: “Fulana é casada com um homem muito bom, mas quando ele bebe, bate nela”. Evitava-se culpar o homem.

A senhora lançou, no último dia 8, uma parceria com a ONG Visão Mundial. No que ela consiste? A ideia é educar meninos e meninas, desde a infância, em escolas, sobre os malefícios do machismo. Por meio de contação de histórias, música, cordéis e outras atividades lúdicas, queremos ajudar as crianças a identificar quando há agressões dentro de casa e a compreender que o único culpado por isso é o pai. Além disso, esperamos que os filhos compartilhem o que ocorre com professoras capacitadas para orientá-los, junto com as mães.

O presidente Jair Bolsonaro é conhecido por falas misóginas, como quando disse a uma colega deputada que ela não “mereceria” ser estuprada. Em que medida esse tipo de atitude do governante prejudica as discussões? Nós estamos muito temerosas, por exemplo, em relação a como Bolsonaro encara o porte de armas. Não por acaso, alguns homens estão gostando tanto da ideia. Eles querem se sentir ainda mais autoritários com uma pistola em mãos. É claro que há homens e homens. Entretanto, aqueles agressores que não conseguiram até hoje o porte acham que podem agora, com o novo governo. É evidente que eles vão usar desse poder para reprimir ainda mais suas esposas. Mas falta também um posicionamento mais direto do movimento das mulheres para obrigar Bolsonaro a refletir melhor sobre tudo. O nosso representante máximo tem de criar políticas públicas que nos defendam e investir em educação fundamental e de ensino médio para conscientizar os meninos de suas responsabilidades e as meninas, de seus direitos. Ouvi o presidente dizer em uma entrevista que ele é apaixonado pela filha. Isso em um país que é tido, como comprovam diversas pesquisas, como um dos piores para se nascer mulher. Um cenário que só vai mudar se o presidente fizer algo para reverter as estatísticas. E esse “algo” tem origem em maiores investimentos em políticas públicas de educação.

Por que a solução vem de um ensino adequado? O que leva à violência contra a mulher? É uma combinação. A índole, os vícios, a cachaça, são elementos disso. Porém, no centro está o aprendizado que o homem teve na sua infância. Pois ele replica a educação que recebeu. É preciso ensiná-lo desde pequeno a respeitar as mulheres.

Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou, como voz do governo, que quer ensinar meninos a entregar flores a meninas. Esse é o caminho?  Entregar flores não é um problema. A questão é que isso deve estar associado a informar meninos e meninas da importância de respeitar os direitos das mulheres. É preciso antes mostrar às garotas que elas podem dialogar com quaisquer garotos. Também é preciso ensinar a elas como fazer para denunciar, se forem vítimas de violência e mostrar que serão protegidas pelo poder público. Caso uma mulher seja atacada por um colega, amigo ou namorado, é necessário mostrar que ela tem a sociedade ao seu lado para resguardá-la e punir quem a agride. Antes de falar sobre flores, temos de educar meninos e meninas e reeducar quem já agride.

Para além de tudo isso, não podemos também já falar das flores, como propôs Damares? Ainda não estamos nesse estágio e há muito a ser resolvido antes disso.

Jennifer Ann Thomas

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